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quinta-feira, 23 de setembro de 2010

Especial Poa Em Cena II - A Beleza dilacerada


Talyta Carvalho arrumou uma boa maneira de passar férias - diretamente do Porto Alegre EM CENA, o festival internacional de teatro. Ali assistiu a adaptação de "O Idiota" de Fiódor Dostoievski realizada por Eimuntas Nekrosius, o mais importante diretor báltico da atualidade. A produção foi a primeira incursão do encenador no universo do maior romancista russo. Talyta fala do contexto do romance e aquilo que move seu protagonista. Na seqüência, Eduardo Wolf vai nos falar da grande montagem lituana.

Por Talyta Carvalho

Fomos assistir a uma montagem belíssima de O idiota (de Fyodor Dostoievski) feita por lituanos. Tenho um amor platônico pelo escritor russo - não raro sonho acordada em ser Anna Dostoiévskaia... Tento evitar mas é mais forte do que eu. O idiota é o meu romance preferido de Fiódor (notaram a intimidade?) em sua fase de “anos milagrosos”, como diria Joseph Frank. Os anos milagrosos foram o período pós-Sibéria em que o escritor produziu seus grandes romances como Crime e castigo, Os irmãos Karamázov, Os demônios, Memórias do subsolo, além de O Idiota, claro.

O tal "idiota" do título é um príncipe de nome Míchkin, que a julgar por suas reações e posturas diante da vida, de fato, parece um doente...um idiota. Mas seria isso mesmo?

Antes de tudo, o leitor deve ter em mente que os romances de Dostoiévski são permeados por uma forte religiosidade que não se pode, de forma alguma, desprezar. Uma das idéias mais caras ao autor é justamente uma ideia cristã: a de amor incondicional (caritas). Quase sempre esse amor aparecerá encarnado em algum personagem (por exemplo, na Sônia em Crime e castigo), e a partir dele estará a redenção em seus romances.

(Disse "quase sempre" porque há um romance sem redenção alguma que é Os demônios.)

Em O idiota, essa figura tomada de caritas é justamente o príncipe Míchkin; e como um sujeito que é arrastado por tal amor sempre parecerá “estranho” para nós, a impressão de Míchkin é de um doente: não reage quando lhe passam a perna, é o alvo mais fácil de enganação e, a julgar pelo trajeto de sua vida, aquele que deveria ser a pessoa mais completamente amargurada e rancorosa. E, no entanto, não é: parece mesmo um caso clássico de um completo imbecil...

Contudo, o que o autor quer nos mostrar é justamente o contrário: os doentes somos nós que achamos o príncipe um bobo e coitado. Na realidade, Míchkin em sua aparente idiotia é o único dotado de sanidade porque apenas ele soube conduzir sua vida de modo saudável, pleno do amor cristão, livre de todo egoísmo. Amor cristão traduzido em sua ausência de egoísmo, de necessidade de retorno, um amor que tira a pessoa de seu centro e a leva a não se preocupar consigo mesma. Nesse sentido, patológico seria estar voltado para si mesmo, preso em um movimento entrópico do qual não consegue sair.

Isso não significa que haja algum tipo de "recompensa divina" para tais sujeitos, pelo menos no que diz respeito às recompensas terrenas. Assim, tais personagens nunca experimentarão o sucesso no mundo, sempre serão os “desgraçados”. O mundo não recompensa a virtude, e se fosse essa a motivação para o Bem, o próprio Bem já seria corrompido em sua natureza por tal motivação.

Como dizia o sábio russo, temos que deixar a beleza salvar o mundo.

Um comentário:

Pedro Sette-Câmara disse...

Tivesse eu tempo, faria uma comparação entre Shakespeare e Dostoiévski (de quem só li "O eterno marido" e "Memórias do subsolo"), para averiguar até que ponto a "redenção" só pode vir de um agente de, digamos, "fora do sistema". Em "Rei Lear", Cordélia recusa a hybris do pai, apega-se ao dever e aparece como possibilidade de redenção. Em "Conto de inverno", Paulina chega a antagonizar Leontes.

Dostoiévski poderia colocar um elemento de fora do mundo cão / vale de lágrimas por já partir de uma concepção cristã, mas creio que Shakespeare foi experimentando e experimentando até ver que não era possível que um personagem trágico se redimisse a si próprio - ele sempre necessita de alguém que já optou pelo Bem *desde o início*.

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