Saiba mais

segunda-feira, 20 de setembro de 2010

Diário de Bordo 2 - Amsterdã


A cidade dos canais foi a penultima parada de Érico Nogueira. Mais uma vez, generosamente para nós do Ocidentalismo.org, Érico deixa mais do que impressões de ponto turísticos, uma singela descrição daquela "paisagem humana" muito particular.

por Érico Nogueira

De trem, a viagem de Berlim a Amsterdã dura 6 horinhas... Tranqüilo; eu ia lendo As confissões de Agostinho de Hipona, então nem vi o tempo passar; desembarcamos em Amsterdam Centraal, e, como sempre, sem mapa nem nada - só com as indicações do google maps anotadas num pedaço de papel -, saímos desbravando a cidade, rumo ao hotel Adolesce.

Saí da estação, e fiquei de queixo caído; era a cidade mais linda que eu já vira, sem dúvida, e o povo, bem, o povo era uma espécie de alemão alegre e afetuoso (que, pois, deixou de ser alemão, ah ah), a cuja sociedade os imigrantes das Antilhas, do Suriname, da África do Sul e da Indonésia, principalmente - ex-colônias holandesas -, estão muito bem integrados; o holandês se lixa pra cor da sua pele, e pro lugar donde você vem: não há mau-cheiro de xenofobia no ar. Cidade moderníssima, portanto, aberta, multicultural e multirracial; e linda, linda linda linda. Pensei logo em Gilberto Freyre, e no conceito de democracia racial: lá sim, em Amsterdã, a coisa funciona...

Depois de nos perder um pouquinho - sempre acontece também -, chegamos, enfim, ao hotel, uma antiga casa à beira de um canal, totalmente reformada e modernizada, mas com um não sei quê de atávico, de tradicional. O proprietário, um senhor dos seus 50, 55 anos, estava ouvindo Simon & Garfunkel quando entramos, e foi muito simpático, como, aliás, todos os holandeses com que tratei. Perguntei-lhe por uma livraria, pelo poeta flamengo Karel van de Woestijne (1878-1929), citado pelo nosso Carpeaux e recomendado por Márcio José Silveira Lima. Spreek je Nederlands?, ele perguntou. Not yet, respondi, e soltei uma risada. Ele riu; e nós, agora com um mapa na mão, saímos turistar.

Se Amsterdã tem um ponto controverso, ele se chama coffeeshops. Eu visitei dois deles; o clima, nos dois, era pesado, e os dois estavam cheios de loosers, junkies e drogadictos em geral. Aliás, se há um turista, em Amsterdã, que causa a tal "vergonha alheia", esse é sem dúvida o brasileiro, que, em geral, vai lá só pra fumar maconha nos coffeeshops, e sair gritando e causando pelas ruas; seguido de perto, nisso de "vergonha alheia", pelo italiano, claro, outro bicho escandaloso. Adriana e eu fugíamos desses bichos como o diabo foge da cruz. Enfim, eu tenho know-how pra falar do tema, creiam-me: coffeeshop não é legal.

Fomos almoçar, e descobrimos a "Amstel", um clássico da cerveja. P'ra variar eu tomei todas, e... bem, nos perdemos de novo. Ao pedir-lhe informação na rua, um holandês dos seus 60 anos, só p'ra puxar papo, respondeu perguntando de onde eu era. "Brazil", respondi -- e o cara se pôs a falar português, a me explicar em português aonde tínhamos de ir!

O dia seguinte era 30/08 -- o aniversário da Adriana. Fomos então comprar presentes... p'ra ela e p'ra mim. Não vou falar aqui em sapatos e blusinhas; mas na gramática de neerlandês, e no dicionário de verbos que comprei pra mim. O neerlandês - que varia, grosso modo, em holandês e em flamengo, na Holanda e na Bélgica respectivamente, algo como a diferença entre o português de Pernambuco e o do Rio Grande do Sul, se tanto - é uma língua muito sonora, delicada e rude a um só tempo, e com um complexo sistema de vogais abertas e fechadas, longas e breves. Mal-comparando: está o neerlandês para o alemão como o português para o espanhol: mais irregular, com muito mais exceções e assimilações e inflexões, mas com muito menos projeção... Quando os alemães, porém, ainda não tinham escrito nada que prestasse em Hochdeutsch (excetue-se a Bíblia de Lutero, claro), já Corneliszoon Hooft (1581-1647), Joost van den Vondel (1587-1679) e Constantijn Huygens (1596-1687), entre outros, elevavam o neerlandês à categoria de língua clássica, ou língua de alta cultura: o primeiro, seguindo o modelo de Tácito, notabilizando-se por sua prosa histórica, o segundo -- considerado o Racine holandês, e também o maior poeta da língua --, celebrizando-se por suas tragédias (destaque-se "Lúcifer") e traduções de Virgílio, Horácio e Ovídio, e o terceiro, enfim, destacando-se por sua poesia lírica, e por suas traduções de John Donne. Diante de tantas e tais evidências, aprender neerlandês não é esquisitice não, não é excentricidade de lingüista amador; é necessidade do poeta, de renovar, por meio da neerlandesa, a nossa própia tradição.

E era cerveja atrás de cerveja, uma marca melhor que a outra, e tudo variando entre 2 e 4 euros - o preço de São Paulo, pois. Fomos ao Rijksmuseum ver algum Rembrandt, e a exposição "Miró & Jan Steen". E conhecemos, por fim, no bar da esquina do hotel, a querida mevrouw Prost, uma senhora dos seus oitenta anos que bebe todos os dias nesse bar (sempre um vinho doce ou um licor; "uma dama holandesa", dizia ela, "nunca bebe cerveja"). Ela conversou a noite toda conosco - em holandês. Eu respondia como podia, ora em alemão, ora em inglês, e por incrível que pareça entendia boa parte do que ela falava. Mevrouw Prost vai ficar para sempre nos nossos corações e na nossa memória, vai ser sempre o emblema da hospitalidade, do bom humor, e da vida, enfim, que até arde, de tão intensa, na bela Veneza do norte.

Retirado de Ars Poetica.

Um comentário:

Giulia disse...

Érico, belo texto e bela homenagem a esta intrigante cidade. Nunca vou esquecer dos prédios vergados pela umidade dos canais e do trânsito caótico, onde as bicicletas e não os pedestres nem os carros têm a preferência!
Com um mapa na mão, ou mesmo sem ele, guiando-se pela orientação radial da cidade, dá pra conhecer toda ela a pé, não é? Nada melhor.
Também faço parte do clube de brasileiros que foram a Amsterdã e passaram longe de coffeeshops!

Related Posts Plugin for WordPress, Blogger...