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domingo, 19 de setembro de 2010

A infância que não podemos ter



Por Leandro Oliveira

Neymar, para quem não sabe, é o novo prodígio do futebol brasileiro, um jovem que com 18 anos encanta a todos pela sua agilidade, visão de jogo, malemolência, etc etc: e no etc, tudo aquilo que gostamos de ver no nosso futebol e que a cada dois anos permite despontar um ou mais fenômenos com tais aptidões.

O caso é que Neymar parece estar - com pouco mais de um ano de sucesso - com muito dinheiro e fama, dinheiro e fama que, obviamente, não acompanham sua maturidade emocional, intelectual e espiritual. E isso, pelo que tudo aponta, nos fará ver, de modo trágico pois costumeiro, a formação diante de nossos olhos de mais um marginal dos gramados, mais um prodígio perdido pela vacuidade do dinheiro fácil e poder desproporcional. Ou, como a história não terminou, qual um bildungsroman, a transformação do herói.

Torço sinceramente por Neymar e a superação desta tentação terrível. Torço não por ser santista, amar o futebol ou por tê-lo como um sujeito extraordinário. Torço por saber da beleza que tem a vida humana quando que não se deixa sucumbir qual um animal aos afetos e desejos imediatos, mas, fazendo-se moldar por eles, ultrapassá-los, educá-los: e faz despontar do animal, um Homem. Sua vitória é nossa vitória, pois tudo pelo que passa Neymar não deixa de ser um drama atávico, e seu dilema é aquele de todos nós em nossos sucessos diários; como diz o o velho adágio, "dê-lhe ouro e poder e então veremos do que verdadeiramente será feito".

É neste sentido que gostaria de contextualizar os comentários da psicóloga Rosely Sayão, publicados no jornal de esportes da Folha de São Paulo desta sexta-feira. Com o título "Eis o preço: quem não tem infância não amadurece", a psicóloga escreve um artigo onde, partindo de uma hipótese que ninguém ousaria dizer pouco original, identifica Neymar como "uma criança que precisa ser educada".

A originalidade da tese de Rosely evidentemente não está no diagnóstico de falta de educação do jovem astro. Isso qualquer criança de oito anos sabe. A originalidade da doutora Rosely está em caracterizá-lo - um marmanjo de 18 anos - como uma criança.

Com esta prerrogativa, para entender a assombrosa conclusão de Rosely, devemos seguir seu argumento em suas demais premissas: atualmente, as crianças não viveriam como crianças, e a falta de criancice as teriam feito os adolescentes infantis que temos, e que, por sua vez, transformam-se nos adultos infantis e trogloditas de hoje - tais como parte significativa dos jogadores de futebol brasileiros e a maior parte do público adulto mundial.

Tudo se justificaria pois, nas palavras de Rosely, "desde pequeno [as crianças] assumem o mundo adulto e vivem como se fossem gente grande. Em tudo: do vestuário às atitudes e preocupações." E por fim acusa: "temos roubado a infância de nossas crianças." Então, tautologicamente, ela chega a conclusão extraordinária sobre o mau comportamento do menino milionário:

Culpa do Neymar? Ah, como seria bom chegar a essa conclusão. A responsabilidade é toda nossa, caro leitor.

A peça nos remete a um dos mais escandalosos e cruéis efeitos da correção política no debate público. Escandalosos pois rotineiros. Cruéis pois, de tão rotineiros, tornam-se arraigados e orgânicos, de maneira que precisamos de um certo treinamento para ler coisas como essas e tomar consciência que afinal, com perdão da palavra caros leitores, estamos sendo sacaneados.

Sacaneados todos nós. Nós quem? Quem simplesmente gosta de futebol, assiste ou joga sua peladinha nos finais de semana para distrair um pouco sua semana difícil e todos os outros que torcem a favor ou contra o time de Neymar? Não, muito além disso: todos nós, mesmo aqueles que sequer gostam de futebol. Sacaneados não pela doutora Rosely, evidentemente, mas pelo tipo de cultura que ela tão bem expressa nas palavras deste artigo.

Pois é assim, com artigos ligeiros como o da doutora Rosely, sobre assuntos menores como o futebol e seu último enfant terrible, que nos habituamos a cultivar um universo mental doente e tirânico. Doente pois nos excita a tirar de nós mesmos, permanentemente, as culpas de nossos atos (afinal, Neymar nada tem a ver com aquilo que faz); tirânico pois, ao mesmo tempo, imputa-nos a culpa daquilo que jamais nos disse respeito (os culpados por aquilo que faz Neymar somos nós, "adultos que habitam este mundo"). A desresponsabilização individual e a culpabilização coletiva é a maior perversão do politicamente correto e talvez o maior estigma de nossa cultura pós-moderna. Se assim lidamos com o drama de Neymar é por que assim lidamos com a maior parte dos dramas que vivemos: a culpa é do ambiente e não do assaltante, a culpa é das mídias e não do estuprador, a culpa é da escola e não do preguiçoso idiota.

Isto que Julio Lemos chama de "a culpa da classe média" tem inclusive já suas narrativas próprias, seus dramas e tragédias - no sentido estrito, grego - e criam o folclore do homem digital, sua mitologia.

Neymar não é criança - ele tem dezoito anos. Legal e biologicamente, deve ser responsável pelos seus atos. Mas mesmo se o tomássemos como um alguém mentalmente retardado, e portanto uma criança aos 18 anos, a última coisa que deveríamos imputá-lo é a falta de oportunidade de ser criança. Pois Neymar faz o que toda criança quer fazer: jogar bola. E é um privilegiado, pois ganha muito bem para isso. Apenas no universo muito particular dos nossos psicólogos, uma criança que joga bola não está fazendo o que uma criança deveria fazer.

O que falta a Neymar não é que seu agente, seu público e suas vítimas - ele xingou técnico e companheiros de time - admitam suas culpas. O que falta a Neymar é tornar-se Homem. É tomar para si os efeitos de seus atos. E isso nem mar, nem céu, nem terra podem fazer por ele: depende apenas de Neymar.

Querer educar-me é algo que apenas eu posso fazer por mim mesmo. E quando algum doutor diz o contrário, o que ele está fazendo é um desservico à minha consciência.

Um comentário:

Antonio Araujo disse...

Essa discussão sem fim do caso Neymar está passando dos limites. Ele errou, mas muitos erram. O moralismo em torno do caso é de assustar. Só falta aparecer um padre dizendo que ele tem que rezar no milho, um muçulmano dizer que ele é um infiel e lançar uma fatwa, ou um monge budista expor o quão longe ele está da iluminação ao fazer o que fez. Um saco. Não é de hoje, ele já deu uma entrevista dizendo que não queria tirar título de eleitor e foi um escândalo para alguns jornalistas. O problema é que todos têm uma opinião a respeito de como o Neymar deveria se comportar e não têm a menor vergonha de expô-la em público.

O blogue de vocês é muito bom, já está no meu reader.

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