por Fernanda Vaz
Johan Huizinga, "O Outono da Idade Média", Cap. II, p. 63:
Um pouco antes da batalha em Crécy, quatro cavaleiros franceses reconheceram a ordem de ataque dos ingleses. O rei, que aguarda impaciente o relatório deles, vai avançando lentamente pelo campo e para quando os vê voltar. Eles atravaessam a multidão de guerreiros até estarem diante do soberano. O que há de novo, senhores?, ele pergunta. Eles se entreolharam sem dizer uma palavra sequer, pois nenhum queria falar antes do companheiro. E ficavam dizendo de um para o outro: "Dizei vós, senhor, falai com o rei. Não falarei antes de vós". E assim ficaram se debatendo por algum tempo, pois nenhum queria "ter a honra" de começar a falar. Até que o rei ordenou que um deles falasse. A objetividade teve de recuar mais ainda diante da beleza da forma no caso do Messire Gaultier Rallart, o chevalier du guet de Paris, em 1418. Esse chefe de polícia nunca costumava fazer a ronda sem que três ou quatro músicos seguissem à sua frente, soprando alegres seus instrumentos, levando o povo a dizer que, na verdade, ele estava avisando os malandros: fujam, pois estou chegando.
p. 65:
Alguém a quem se destina um beijo na mão a esconde para escapar dessa honra. Assim, a rainha da Espanha esconde sua mão diante do jovem arquiduque Filipe, o Belo; este aguarda por algum tempo e, assim que vê uma oportunidade, agarra a mão de surpresa e a beija. Dessa feita a séria corte espanhola explodiu em gargalhadas, pois a rainha já não esperava por aquele gesto.
(Filipe, o Belo e Joana de Aragão. c. 1505) |
Não é preciso dizer que essa minuciosa ornamentação da vida tem seu lugar sobretudo nas cortes dos soberanos, onde havia tempo e espaço pra isso. Mas também permeavam as esferas inferiores da sociedade - algo comprovado pelo fato de que essas formas sociais continuam preservadas hoje justamente na pequena burguesia (sem se falar nas próprias cortes). O convite reiterado para servir-se de mais comida, a insistência para que a pessoa fique mais um pouco, a recusa em passar na frente de alguém desapareceram em grande parte do comportamento social da alta burguesia na última metade deste século¹. No século XV, essas formas estão em pleno vigor. Ainda quando penosamente observadas, são objeto de sátira mordaz. Encontra-se sobretudo na Igreja o teatro das cerimônias longas e belas. Durante o ofertório, ninguém quer ser o primeiro a levar sua esmola ao altar.
Pode passar. - Ah, não, obrigada. - Por favor!
Sem dúvida vós ireis, prima.
- Não, eu não. - Chame a vizinha.
É melhor que oferte primeiro.
- Vós não deveis tolerar,
Diz a vizinha: Nem me passa pela cabeça:
Oferecei logo, pois depende só de vós
Para que o clérigo continue ².
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¹ Huizinga viveu na transição do século XIX para o XX. Se estes costumes desapareceram mesmo nessa época, hoje acho que ainda dá pra dizer que estão é bem vivinhos - talvez o último fora de São Paulo.
² Eustache Deschamps (séc. XIV).
Retirado de Apfelsaft.
7 comentários:
Falou bem do último. Acrescento que em São Paulo, especialmente na hora de entrar no metrô, sua prática é impossível.
Mas o costume de dizer "já vai?", "tão cedo?", "mal chegou!", "fique um pouco mais!", esse mesmo aqui é vivinho.
No metrô de São Paulo é preciso ser menos cavalheiro e mais cavaleiro - e as vezes até cavalo! -, temo...
Geralmente concedo as honras de passagem à frente.
Por tal, já ouvi até que sou "otário" e "estranho", mas, por ora, lendo esses trechos, concedo a mim mesmo o prazer de sentir-me um fidalgo.
Renan, se você conceder a passagem a muita gente à minha frente na hora de entrar no metrô, teremos de duelar! hehehe
Muitas vezes quero fazer as coisas com mais beleza, mas simplesmente não há tempo! É preciso encerrar logo uma tarefa porque outra já devia ter sido terminada...
A propósito, já leram o texto abaixo?
http://www.midiasemmascara.org/artigos/conservadorismo/11739-sobre-a-defesa-da-beleza.html
Ops... agora chegou ao meu Google Reader o post com referência ao artigo que linkei aqui. Mais uma vez me atrasei! :)
Pois é, w, um dos trechos aí bem fala que esse embelezamento da vida só podia acontecer em cortes, onde havia tempo e espaço de sobra. O problema é que as regras de etiqueta e a sprezzatura chegavam a tal exagero que os objetivos nobres se perdiam e todas essas coisas viravam só rituais vazios.
Eu particularmente acho que um bom modo de deixar a vida mais bonita é se cercar de coisas belas - boas conversas, boa música, boa arte. Disso o Huizinga também fala - da beleza da arte contrastando com a visão pessimista de mundo que era usual ter, mas eu estou falando demais e isso é assunto pra mil outros posts ; )
"essas coisas viravam só rituais vazios."
O que me lembra onde abandonei a releitura d'O Idiota: na recepção em que o "noivo" Michkin é apresentado à sociedade. Ele se deslumbra que altos dignitários dêem atenção a ele, um jovem, sem perceber que toda aquela delicadeza de maneiras é vazia, mera aparência, não tendo correspondência alguma no íntimo dos presentes.
Aguardo os seus mil posts.
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