De Shelley Duval a Santo Agostinho, Talyta Carvalho arrisca o improvável: explicar como os dilema morais perdem seu lugar de destaque na formação de nossa juventude quando contaminamos por ideologia, correção política ou o que quer que seja os "Contos de Fadas". Eles deveriam se preservar como uma reserva do bom e do justo... mesmo nos programas de TV.
Por Talyta Carvalho
Pois é, meu mestrado acabou. E digo isso sem a menor tristeza, como todos devem supor. Recebi, além do óbvio alívio e da paz de espírito tão esperada, muitas congratulações dos amigos e familiares. Mas algo especial ocorreu: não sei se já comentei antes, mas tenho uma irmã gêmea. Sim, ela é idêntica fisicamente a mim e se chama Thais. A Thais é uma mocinha doce e atenciosa, orgulho da família, estudante de Medicina em uma faculdade altamente conceituada de São Paulo. Thais é o sonho de qualquer pai e de qualquer mãe.
Mais ainda, Thais é o sonho de qualquer irmã.
Sou uma garota que tem lá suas obsessões banais na vida, como quase todo mundo. Uma de minhas obsessões é com uma lembrança vaga da infância que sempre tive o anseio de recuperar. Quando pequena, eu era uma dessas crianças geeks que passavam seus dias a ler livros de gente grande e a resolver problemas de matemática. Mas havia um ou outro dia da semana em que eu era uma criança como todas as outras, e esses dias eram os dias em que eu assistia um programa de TV acompanhada de meus pais e da Thais. Havia uma história que era minha preferida: “A rainha da neve”. O programa saiu do ar há muitos anos atrás, mas mesmo assim eu havia crescido obcecada por esta história.
Na última semana, Thais me entrega um presente por eu ter concluído a pesquisa. Quando abri o pacote não pude conter minha empolgação e alegria. Graças a minha irmã eu estava prestes a entender, finalmente, o motivo de minha obsessão. Obviamente, assisti ao DVD na mesma hora. O que eu achei? Bem, na realidade a história e a produção eram infinitamente melhores na minha imaginação. Contudo, ao final, Shelley Duvall (idealizadora e da série) narra a moral da história dizendo a importância da amizade. Aí então eu entendi minha obsessão.
Era uma obsessão com a moral da história agora finalmente relembrada. E digo “moral” em todos os sentidos. Percebi que esse era o motivo primordial do meu fascínio com os Contos de Fadas, afinal, eles são a maneira pela qual costumava-se ensinar sobre virtude e vício para as crianças.
Quando se discute moral sempre está se discutindo a relação entre liberdade e o mal. Inevitável recordarmos aqui Santo Agostinho. Tenho em mente o texto “A natureza e a graça” em especial (Paulus, 1999). Evidente que é impossível fazermos uma abordagem detalhada e profunda da questão, portanto, apenas lançarei alguns pontos para discussão.
Agostinho escreve este texto para debater o humanismo avant la lettre de Pelagius. O que está em jogo é a dicotomia “autonomia X insuficiência”. Para Agostinho, o homem tem uma disfunção, a natureza humana é doente desde a queda. Ou seja, no momento em que o homem amou mais a si mesmo que a Deus houve a cisão entre Criador e criatura (pecado original). Neste momento, a vontade do homem foi corrompida, a soberba o domina. “Orgulho” é o nome da doença que acomete o homem desde então. Lembrando que Agostinho fora parte do Maniqueísmo antes de se converter, pode-se entender que o problema do mal sempre estará posto.
O mal encontrará em Agostinho uma explicação psicológica (corrupção da vontade) e não ontológica. Para ele, ao contrário do que pensa Pelagius, não é possível que o homem saia dessa estrutura por sua própria força, o homem não tem autonomia para superar esse estado decaído. Para Pelagius, o homem detinha todos os elementos racionais para ser um agente moral perfeito. Já para Agostinho, a fala de Pelagius manifestava mais uma vez o orgulho humano de se crer auto-suficiente. De acordo com Agostinho, a única forma de sair desta estrutura disfuncional é pela graça de Deus. Ora, o próprio nome já diz tudo: “graça”. Ou seja, Deus a dá gratuitamente para alguns (teoria da predestinação). Ela é contingente, de modo que não é possível enquadrá-la em uma economia de méritos:
Mas esta graça, sem a qual nem as crianças nem os adultos podem ser salvos, não é dada em consideração aos merecimentos, mas gratuitamente, o que caracteriza a concessão como graça (p. 115). Deus precisa esconder o critério de concessão da graça justamente em razão do orgulho do homem. Se a salvação pela graça fosse recompensa do esforço humano em fazer o bem, inevitavelmente, o homem cairia de novo no mesmo erro: orgulho por se achar merecedor.
Portanto, se em algum momento de sua vida encontrar alguém a fazer o bem sem que possa detectar qualquer motivação egoísta sinta-se privilegiado: você estará a presenciar um milagre. Eu, por minha vez, convivo com um milagre, e ele se chama Thais.
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