Existe uma mudança radical no papel cultural da comida nos últimos tempos. Poderíamos fazer análises políticas, econômicas e até morais das relações da alimentação na vida do Homem moderno - pois sabemos que sentar à mesa não é apenas abastecer de combustível o corpo, é antes, uma cerimônia social e um ato de gratidão e prazer. Para nos lembrar destes pequenos presentes da vida, nossa nova editora, Maria Celina Gordilho, compartilha a partir desta semana suas saborosas impressões gastronômicas.
Culinária afetiva. Em tempos de alta gastronomia, culinária ortomolecular, fusion food e "javali selvagem ao molho de chocolate de algum lugar obscuro", sentar em uma mesa a dois, escolher um vinho e experimentar um prato que lhe evoca lembranças afetivas – semelhante àquela cena de Ratatouille na qual o crítico, ao colocar o garfo na boca, rapidamente se recorda da infância e da comida de maman – é a melhor coisa que se pode fazer em semanas.
Foi isso o que me proporcionou o simpático e lotado "Ici Bistrot", um dos restaurantes da dupla Benny Novak e Renato Ades (os outros são uma hamburgueria gourmet e um italiano; ainda bem que eles separam as coisas). Em um sábado à noite encalorado, fui, sem reservar (desaconselhável, a não ser que você esteja sozinho, ou em casal; faça a reserva na hora do almoço, se quiser ir jantar), a esse bistrô recomendado por várias revistas que classificam restaurantes em São Paulo. Recomendado, também, por uma grande amiga, que repetia sem cessar a ladainha “mas foi super bem-recomendado pela revista tal” enquanto eu não conseguia reservas.
É um bistrot francês com todos os clássicos; lá estavam, no cardápio, cassoulet, confit de canard, omeletes, molho béarnaise. Escolhi um magret de canard (também conhecido por Inspetor Maigret de canard, quando não conseguia diferenciar o -ai do -a em francês), acompanhado de figo, folha verde cujo nome desconheço, molho doce (aliás, todo magret vai bem com molho doce; já provei um ao molho de mel que mora no meu coração até hoje) e um purê de batata com trufas.
Enquanto aguardava o pedido, pude observar o ambiente. Mesas pequenas, daquelas que só os franceses sabem como montar um jogo completo de jantar num espaço mínimo, garçonete simpática cheia de tatuagens e com óculos enormes de aros finos, um senhor ao nosso lado, cego, mas sem cão-guia, que, mesmo sozinho, sentou-se à mesa, fez os pedidos, comeu de tudo e foi bem simpático com os garçons.
Eis que chega uma panelinha do estilo "Le Creuset" com o purê e o prato do magret, fatiadinho, com os seus acompanhamentos. Pratos quentes, essenciais para manter a comida quente por mais tempo – e são poucos restaurantes que conhecem esse truque.
Foi uma delícia. Fazia tempo que não comia um magret que combinasse tanto com seu molho, e tão macio e tostadinho em cima. Fazia outro tempo que não comia um purê bem macio (alguma mãe ainda faz purê de batata?) e com o toque especial da trufa. A lembrança afetiva e gastronômica me levou a recordar jantares com minha família em bistrôs deliciosos – os bistrôs considerados, atualmente, como o lugar da verdadeira cozinha francesa, freqüentados por franceses e gente que conhece bem essa idéia.
Parece-me que essa é também a idéia do chef Benny Novak, de criar um restaurante de rua simples, mas delicioso – a própria concepção de bistrô. E funcionou, naquela noite encalorada de sábado, que só o vinho e a estadia no "Ici Bistrot" aliviaram, ao me lembrarem de jantares em noites friorentas com a família.
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