Saiba mais

sábado, 25 de setembro de 2010

Entre utilitários e resentniks


Qual é a "utilidade" daquilo que classicamente deveria continuar sendo objeto de estudo nas faculdades de humanas? Qual é a "utilidade" de passar anos a fio estudando as construções formulaicas em Homero? A teoria do conhecimento em Platão? O cânone de Bach? Em seu texto de estréia para o Ocidentalismo.org, Rodrigo de Lemos analisa essa situação de fogo cruzado em que vive o conhecimento humanístico.

Por Rodrigo de Lemos

Os resultados de um mestrado na minha vida mental até agora foram os seguintes: a) passei a entender um pouco mais de latim, um pouco mais de poesia latina, um pouco mais de poesia francesa e aprendi a escrever num francês um pouco menos botocudo do que há dois anos; b) desenvolvi a virtude búdica da paciência para explicar aos outros como alguém pode se interessar por esse tipo de coisa.

Claro, Deus me abençoou com amigos aos quais não preciso explicar nada disso, que entendem scholarship autofágica e até aspiram a uma vaguinha nesse pequeno Olimpo. Mas, digamos que the man in the street, que o homme de la rue não tem a mínima idéia do que acontece (e por que acontece) numa faculdade de história, de literatura ou de filosofia. Dias atrás, encontrei uma ex-colega de segundo grau (MBA terminado em 2008) muito gentil, muito queridinha (óbvio que ela me pediu o celular para “a gente marcar alguma coisa”), que, quando respondi qual era o tema da minha dissertação, me olhou quase com piedade “Mas para que serve isso?”. Curiosamente, eu mesmo não perguntei qual era a missão divina que o MBA dela viera cumprir na Terra.

O problema não está no fato de essas pessoas ignorarem as faculdades de humanas. O preocupante é que a ignorância de gente razoavelmente escolarizada em torno das faculdades de humanas dá mostras da ignorância geral com relação aos próprios temas que se estudam (ou que se deveriam estudar) nas faculdades de humanas, e até mesmo quanto à importância de ter algum conhecimento sobre esses assuntos. Ninguém precisa estar por dentro dos últimos lançamentos em matéria de teologia da Sorbonne, mas um “para que serve isso?” ao ouvir a palavra “soterologia” certamente não dá provas de uma inteligência lá muito fina.

Valéry (e quantos mais?) escreveu certa vez que nos dirigíamos para uma sociedade técnica, uma sociedade que só legitimaria um savoir que pudesse transformar-se num pouvoir, em que os homens saberiam adiar a morte, mas não saberiam morrer, em que (Pascal diria assim, acho) o conhecimento das coisas exteriores sobrepujaria o das coisas internas. Não sei o quanto dessa previsão antipática se tornou verdadeira (é difícil fazer julgamentos taxativos sobre o mundo intelectual a partir do Brasil), mas, creio, não muitos negariam que vivemos numa época descrente em conhecimento desinteressado, pouco dada a construir catedrais de conceitos que, como as catedrais de pedra, tenham como único propósito contemplar a verdade e espelhá-la na terra. Por que entender o que Kierkegaard fala sobre a morte quando há tantas vidas a serem salvas? Para que perder tempo com filosofia política se há uma campanha eleitoral pela frente? Num ambiente mental desse tipo, não surpreende que alguém que estude ícones medievais ou lírica grega se sinta um herói ou um exilado, e mais provavelmente os dois ao mesmo tempo.

Quero acreditar que a culpa disso não está num espírito abstrato do tempo, num gênio malvadinho conspirando sem descanso para emburrecer a espécie humana. O funcionamento concreto da universidade, e sobretudo da política na universidade, tem uma responsabilidade que não é pequena; não é raro encontrar gente no ensino superior que oscila entre duas tendências opostas e igualmente erradas: de um lado, uma obsessão pelo estudo profissionalizante, pela transformação da universidade numa espécie de entidade emissora de diplomas de terceiro grau (acesso fácil, graduações rápidas, currículos restritos a disciplinas “úteis”); de outro, o pessoal da universidade-instrumento-de-transformação-social, da educação-formadora-de-cidadãos, não menos pragmáticos que os anteriores, mas piorados pelos bons sentimentos resentniks. E muitos desses utilitários e resentniks estão aí, formando jornalistas e professores e pesquisadores, e são esses jornalistas e professores e pesquisadores que divulgam ideologias utilitárias e resentniks.

Não consigo ver lugar para scholarship séria nessas duas visões: entre os profissionalizantes, porque existem (para eles, ao menos) opções economicamente mais produtivas que isso de estudar a Política em grego; entre os politiqueiros, porque estudando a Política em grego talvez tu possas chegar à conclusão de que a transformação social que eles mesmos querem não é tão desejável assim. A nenhum deles ocorre que a tentativa de entender a algo a sério está um nível acima dos dois outros objetivos: é um interesse real por alguma coisa que pode fazer alguém se tornar um “profissional competente”; é buscando saber como é o homem e como dever viver o homem que alguém pode decidir se uma mudança social é necessária, e não com palavras vagas e bons sentimentos.

6 comentários:

Tiago Cardoso disse...

Leitura agradável conferida pelo texto. Um questionamento possível, como contribuição à reflexão proposta, seria o seguinte: por que esse estudante, que ocupa um lugar na "scholarship" séria, estaria preocupado com o "homme de la rue" e com a percepção que ele tem em relação a essas faculdades de humanas? Outro: Esse "conhecimento desinteressado" está desinteressado pelo quê? Um último, agora, comentário. Não cairia mal ao texto de alguém que preza por uma "scholarship" séria, definir, especificamente, aquilo que parece fundamental para o autor: que modelo (sério) de universidade ele propõe, e no que esse modelo se diferencia das propostas utilitárias e ressentniks?

Joel Pinheiro disse...

Você diz algumas verdades, Rodrigo (só não sei até que ponto nosso tempo é diferente do passado. Pode ser apenas que, antes, o homme de la rue não estava nas faculdades, que eram muito mais restritas).

Agora, proponho um terceiro tipo de visão de universidade, ainda mais aterrorizante e abismal: aquela na qual a área de humanas tornou-se um estudo arqueológico e uma construção de sistemas sem nenhuma preocupação com as questões reais (sim, incluo aqui metafísicas e espirituais) da existência humana; onde as big questions e a formação do caráter são deixadas de lado em prol de um academicismo centrado em si mesmo.

Rodrigo de Lemos disse...

Tiago, não penso que o problema de que tratei no artigo seja a ignorância com relação às faculdades de humanas especificamente, mas o desinteresse geral por qualquer tema que não esteja imediatamente ligado à vida econômico-sentimental (e de que tratam, ou deveriam tratar, as faculdades de humanas). Quanto ao modelo de universidade, seria difícil defender um para áreas de estudo que não conheço, mas acho que alguns axiomas gerais do conhecimento universitário são bastante óbvios (despolitização, assunção de objetividade, conhecimento do passado, etc.).

Joel, meu palpite é de que no passado não foi exatamente assim; a importância social que tinha, por exemplo, o cristianismo colocava para o homme de la rue a necessidade de alguma reflexão moral e espiritual, hoje (me aprece) bem mais rasa, com uma mistura estranha de hedonismo e politicamente correto tendo se transformado na moraldiade por assim dizer oficial do nosso tempo e com a forma de conhecimento mais prestigiada sendo a científica, justamente aquela em que (como dizia Valéry) o savoir se justifica na medida em que pode transformar-se num pouvoir. Há, claro, a teoria da evolução e a astronomia, duas ciências sem (ainda) grandes consequências práticas, mas me pergunto se o prestígio de que essas disciplinas gozam não vem exatamente do fato de elas (ou o que delas é divulgado na imprensa) partem de uma visão materialista que, por sua vez, só reforça o utilitarismo.

Alê: o Pereira disse...

Lindo! Maravilhoso!
Ao mesmo tempo em que detestável.
Hahahahah
Sem querer banalizar a questão, mas achei mais interessante a formulação sobre o cristianismo no teu último comentário, Rodrigo, mesmo que não tenha tido espaço do post em sí.
Bacana, teu texto deu vontade de ver o resto do blog!
abraços!

Unknown disse...

Interessante o teu texto. Mas eu gostaria mesmo que esse pensamento, que busca as funçoes mecanicas para os fenomenos humano deveria funcionar, expressado na pergunta da tua amiga, mais vezes. Por exemplo:
- Para que serve eu assistir esse Big Brother?
- Porque fico horas vendo o Panico na TV?
- Porque entro numa livraria somente quando quero comprar um livro especifico?
- Porque saio de um filme e critico que "só teve ação e efeitos especiais, achei mais ou menos", mas continuo vendo o mesmo genero?

Ou seja, se essa pergunta serve para uma reflexao ética sobre o fazer, ela pode abrir diversos caminhos.

Até Narciso fica divertivo dessa forma! ;)

Anônimo disse...

Very enlightening and beneficial to someone whose been out of the circuit for a long time.

- Kris

Related Posts Plugin for WordPress, Blogger...