Aqueles que acompanham o Ocidentalismo.org sabem que não evitamos perguntas difíceis, ou mesmo improváveis: exatamente aquelas necessárias e infelizmente ausentes em nossas revistas culturais ordinárias. Agora, excitados pelo entusiasmo da mídia sobre o mais recente livro de Stephen Hawking, retomamos internamente os debates sobre "Causa Primeira", origem do Universo, existência de Deus. Leibniz dizia que "todo estado presente de uma substância simples é uma continuação natural do seu estado passado"; Leonardo Valverde nos sugere uma leitura original sobre a discussão - e parte para isso da tradição vedānta.
Por Leonardo Valverde
Semanas atrás, um dos físicos mais conhecidos e respeitados hoje, Stephen Hawking, voltou a considerar a idéia de um universo não criado por Deus. E com esta declaração, o físico entrou num dos pontos cruciais da tradição vedānta - já estudado há milênios.
Para o físico e cosmólogo, os universos não precisariam de intervenção divina para serem criados, e mais, surgiriam do nada (ou do Nada?). O que chamam de Teoria-M.
A notícia - por conta do lançamento de seu novo livro "The Grand Design" - deixou-me com uma curiosidade enorme para rever o que a obra Vedānta Sūtra expõe a respeito.
E lá fui eu conferir...
Os aforismos abaixo estão no tópico 7, da sessão 4, do capítulo 1, este tópico é chamado de prakṛtyadhikaraṇam, ou o substrato da matéria.
प्रकृतिश्च प्रतिज्ञदृष्टान्तानुपरोधात्
prakṛtiśca pratijñadṛṣṭāntānuparodhāt (1.4.23)
Da não contradição de exemplo e proposição, (o Absoluto é) também (a causa) material.
prakṛtiśca pratijñadṛṣṭāntānuparodhāt (1.4.23)
Da não contradição de exemplo e proposição, (o Absoluto é) também (a causa) material.
अभिध्योपदेशाच्च
abhidhyopadeśācca (1.4.24)
Da referência ao desejo.
abhidhyopadeśācca (1.4.24)
Da referência ao desejo.
साक्षाच्चोभयाम्नानात्
sākṣāccobhayāmnānāt (1.4.25)
É (causa) direta, por conta da menção de ambos (criação e dissolução).
sākṣāccobhayāmnānāt (1.4.25)
É (causa) direta, por conta da menção de ambos (criação e dissolução).
आत्मकृतेः परिणामात्
ātmakṛteḥ pariṇāmāt (1.4.26)
Autocriado por causa da transformação.
ātmakṛteḥ pariṇāmāt (1.4.26)
Autocriado por causa da transformação.
योनिश्च हि गीयते
yoniśca hi gīyate (1.4.27)
E é chamado, certamente, a origem.
yoniśca hi gīyate (1.4.27)
E é chamado, certamente, a origem.
Detalhe: os sūtra são como “mensagens de telegrama”, temos de compor o sentido.
1) No primeiro sūtra, o Absoluto (braḥman) é colocado como causa material. E o que se entende por causa material é: a condição de que uma coisa é feita. Assim, a condição aqui é a intervenção divina. E o aforismo nos alerta para uma suposta não-contradição, a partir de exemplos e proposições dos textos (śastra), da causa ser dita de outros modos também (ca). Nesta parte é exposta a causa material.
2) Neste segundo aforismo, é dito por que o Absoluto criou o universo. Simples, os universos foram criados porque Deus assim o desejou. Na verdade, por causa do desejo. Já por que o Absoluto desejou, bem, aí temos um mistério.
3) Agora, neste terceiro aforismo, diz-se que a causa é direta, ou seja, este desejo é quase que um toque, aliás, não um toque, mas um olhar. Isso porque os śruti, os textos revelados, mencionam o Absoluto como causa direta de ambos (ubhaya), criação e dissolução dos universos. Aqui estaríamos falando de um momento de grande importância (e dúvidas) para os cientistas: o momento antecedente ao tal do Big Bang - tipo “o que gerou esta explosão?”. Resposta vedantina: o olhar de Deus - o único que estaria de início fora da matéria e, portanto, possível de dar o início à sua criação.
Antes de entrar na explicação dos 4º e 5º sūtra, pois o 4º talvez seja o que melhor toque a tal da Teoria-M, é bom que se diga que o ponto principal tocado pelo físico nesta nova descoberta é a lei da gravidade. Diz o cientista que por ela existir “o universo pode e irá criar a ele mesmo do nada”. Mas vejamos: esta lei não é uma lei da matéria? Não é uma lei que gera força entre dois objetos? Não faz parte do universo, do espaço? Acho que é fácil concordar que sim. Então, é uma lei que só existe na matéria. E se é uma lei que só existe na matéria, ela não pode explicar o “pontapé inicial” - ou a primeira olhada - que determina a matéria, ou seja, que está antes da matéria. Porque se existe uma criação da matéria, existe algo (ou um momento) antes que não é matéria, e neste algo ou momento naturalmente não existe a lei da gravidade. Na linguagem do físico: não pode haver a lei neste “nada” de onde ele acredita que os universos podem ser criados. Assim, a lei não é (nem pode ser) prova de que os universos não são criados pelo Absoluto. E voltamos de novo a velha questão dos cientistas: o que fez com que o Big Bang acontecesse? Porque não precisa ser físico para saber que uma explosão não acontece do nada.
Ele também fala da possibilidade de múltiplos universos - os multiversos. Mas isso está exposto nos śruti, os primeiros textos revelados, com uma riqueza de detalhes enorme e corroborados, inclusive, por cálculos matemáticos - será que eles nunca foram consultar textos antigos que não fossem os gregos?
Voltemos aos 4º e 5º sūtra.
4) Já expliquei sobre a palavra ātmā aqui. Neste 4º aforismo ela significa “auto”, o que forma autocriado, ou seja, o mundo cria-se por ele mesmo. Mas aqui, é bom lembrar, estamos falando da criação num segundo estágio, digamos; a olhada de início - que na física seria o que originou o tal do Big Bang - já foi dada. Este é o sūtra que nos traz a evidência do Absoluto não mais participar da criação logo depois de ter olhado para ela. Ou seja, o Absoluto primeiro olha para a matéria e depois esta matéria começa a se criar, ou autocriar, e isso vem da transformação que acontece na própria matéria, da não-forma para a forma. Mas sem esse olhar direto (sākṣāt) nada acontece. Também temos aqui - importante - uma segunda leitura, caso vemos a palavra ātmā não mais como o pronome “auto”, mas como o substantivo "alma"; aí teríamos o aforismo nos dizendo que a criação é dada pela alma, ainda a partir da transformação. Esta leitura é justa porque a "alma" seria, no contexto vedantino, um segundo desdobramento do Absoluto e o responsável, na verdade, de dar vida à matéria. Sem alma a matéria não vive, não se forma. Num contexto mais mitológico, a alma seria este olhar de Deus.
Assim, podemos dizer que quando o Stephen Hawking afirma que criação espontânea é a razão pela qual algo existe ao invés de não existir nada, em parte ele está certo, mas o fato de não saber - e os cientistas não sabem - em que fase acontece este tipo de criação e determinar esta fase como a fase inicial, não nos diz que ela seja realmente a inicial.
5) Já este 5º aforismo é claro, e conclusão dos outros quatro antecedentes; colocado em pormenores, depois do mencionado, é certo (hi) que o Absoluto é a origem.
Não sei quanto a vocês, leitores, mas eu, certamente, prefiro acreditar nas palavras dessa obra antiga, analisada, meditada e corroborada através dos milênios por uma tradição de conhecimento, hoje em paridade com muitas descobertas da física quântica, do que ter a palavra do senhor Stephen Hawking como verdadeiras e definitivas.
Um comentário:
A ciência jamais poderá explicar a origem última do universo pois ela está baseada no conhecimento da realidade mediante modelos verossímeis, que não alcançam o conhecimento completo da natureza e portanto formam um saber em contínuo desenvolvimento do qual está eliminada a causalidade final. Hawking, se o fez pois não li o livro, tropeçou e acabou cainda fora da fronteira epistemológica da cosmologia. Mesmo a regularidade das leis físicas é um fato admitido pelos cientista que não pode ser explicado pela física. Aprendi estas e outras com Sergio Rondinara, professor que tem publicado trabalhos relevantes nesta área de diálogo entre teologia e ciência moderna. Vide:http://books.google.com/books?id=_eu7dyCFYmIC&lpg=PA94&ots=kbIV6es9QQ&dq=Sergio%20Rondinara&hl=pt-BR&pg=PP1#v=onepage&q&f=false
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