"O que eles fazem é legal - mas não muito. Vamos dizer assim: tem lugar pra todo mundo, mas cada um no seu lugar. (...) A gente vem de outro conceito, esse é que o problema."
Zeca Pagodinho sobre o samba do bairro carioca da Lapa, feito por jovens que estudam o gênero e responsáveis parcialmente por sua revitalização recente.
Por Leandro Oliveira
O primeiro problema da crítica é o de realizar distinções. Antes de qualificar, recuperar ou mesmo combater – sim, um crítico é também um soldado – qualquer profissional que pensa a cultura deve saber discriminar joio e trigo, agulha e palheiro, alhos e bugalhos. E como não seria se, mesmo entre pessoas normais, ou seja, aquelas que não ganham para pensar mas simplesmente tentam entender as coisas, é assim? Fazemos todos sem exceção tais discriminações todos os dias. Não comparamos rock’n’roll com pizza, por exemplo.
Isso parece ridiculamente óbvio. Mas é fato: as crianças não fazem de forma tão bem acabada estas distinções, que podem ir se sofisticando com a experiência, e assim podemos nos ver quando entre elas na situação delicada de tentar responder: “tio, você prefere ouvir música ou comer a melhor comida do mundo?”. Nestes termos, o embróglio é claramente infantil. Matérias distintas, natureza de afeto distinta.
A Companhia das Letras acaba de lançar “Atravessar o Fogo – 310 Letras de Lou Reed”. São mais de setecentas páginas com textos traduzidos de músicas de Lou Reed – um dos grandes roqueiros das décadas de sessenta e setenta e figura decisiva na história do gênero, ao criar, a frente do Velvet Underground um dos sons mais viscerais do período. Até aí tudo ótimo, um petisco para os fãs. O problema? Lançar o calhamaço na mesma coleção onde estão contos de Truman Capote e Isaac Bashevis Singer, novelas de Pirandello, fábulas coletadas por Ítalo Calvino...
Agora, nós que amamos literatura poderemos comparar trechos como esse:
A anfitriã arrumou o elegante vestido preto e apertou os lábios, nervosa. Era muito jovem e pequena e perfeita. Seu rosto era claro e emoldurado pelo cabelo preto liso, e o batom era um pouquinho escuro demais. Passava das duas, e ela estava cansada e queria que todos fossem embora, mas não era tarefa fácil se livrar de umas trinta pessoas, particularmente quando a maioria estava encharcada do scotch de seu pai. O ascensorista tinha subido duas vezes para reclamar do barulho; então ela lhe dera um highball, que de qualquer modo é só o que ele quer. E agora os marinheiros... ah, eles que se danem.
...onde temos um exemplo notável da arquitetura sofisticada – embora ainda não completamente desenvolvida - de construção da psicologia de um personagem de Truman Capote, a tal pérola poética:
Oh oh oh, satélite do amor,
Oh oh oh, satélite do amor,
Oh oh oh, satélite do amor!
Satélite do...
Sem a música - que é uma balada despretensiosa -, parece coisa de idiota. É a geléia geral.
Borges comenta que organizar uma biblioteca é fazer crítica literária. Quando uma editora coloca figuras tão díspares lado a lado, ela iguala diferenças. Quando igualamos diferenças medimos a todos pelo mais medíocre – afinal, não será Bashevis Singer que passará a ser valorizado entre punks, ou ficará mais nobre ao lado de Lou Reed. Será a academia que passará a fazer notas de rodapé com citações pedestres e pseudo-cultas sobre o Legião Urbana.
O incrível é que tal selo de credibilidade literária, pelo que parece, nem o roqueiro imaginara para si. Tanto assim que à mesma falta de critério da Festa Literária de Paraty deste ano - o que, a propósito, apenas mostra o estado lastimável de nossos produtores culturais mais prestigiosos - Reed deu uma banana. Usando dos mesmos parâmetros para parte do resto de sua programação, a FLIP flopou com o cartunista Robert Crumb, que disse em alto e bom som não saber o que estava fazendo ali, e jamais se imaginaria sendo levado tão a sério.
No Brasil, a fábula é invertida: é o rei que sai gritando “estou nu! estou nu!”.
Erra quem imagina que realizar tais relações é coisa de elitista. Não realizar é que é coisa de acadêmico. Está lá o Zeca Pagodinho que não me deixa mentir.
7 comentários:
... é, um ponto de vista é sempre a vista de um ponto. Não concordo com o fato de que as editoras tenham uma responsabilidade a priori com critérios de qualidade artística, sejam eles literários, musicais, plásticos ou o que quer que seja, pois nem mesmo os artistas podem apontar ou enumerar tais parâmetros. Encontrar parâmetros para uma tentativa de qualificação artística me parece um exercício de um certo tipo de ingenuidade diante daquilo que misteriosamente é próprio à arte. Os caminhos que fazem com que a obra de arte venha a obrar, citando Antônio Jardim, não são passíveis de uma parametrização. Se assim fosse, cruzaríamos com os inúmeros Beethovens, Bachs, Sinatras, Picassos, Nijinskis, Saramagos, existentes em cada esquina.
Parece-me que cada vez mais as editoras estão interessadas em vender livros e não tanto em ditar estéticas. Se o Lou Reed atigir esse propósito, não creio haver padrão estético a ser seguido que faça a empresa vendedora do "produto livro" retirar das estantes seus campeões de venda. Essa postura reforçada também, por não ser possível de se estabelecerm tais padrões, que seria admitir uma hierarquização da obra de arte.
Com todo respeito ao maravilhoso Zeca Pagodinho, é verdade que tem muita coisa não muito legal acontecendo musicalmente como samba na Lapa, mas há também a maravilhosa diva, Teresa Cristina, linda, maravilhosa, e com inquestionáve "pedigree" no bamba, que também produz música lá. Da mesma forma que pode ter música não muito legal sendo produzida na Sala São Paulo, juntamente com performances maravilhosas de artistas incríveis. Proceder a essas comparações é um exercício bastante complexo.
Podemos tentar comparar também a descrição de Capote, com o poeta japonês Matsuó Bashô:
"Primavera não nos deixe
Lágrimas no olho do peixe"
Será impossível chegar-se a uma conclusão DEFINITIVA E ABSOLUTA do que é melhor ou pior, mais rico ou mais pobre, mais certo ou menos certo. Esse não me parece ser aquilo que buscam os caminhos do pensamento artístico. O que vale porém, é o exercício, esse sim graças ao que é misteriosamente próprio da arte, que pode e deve ser praticado livremente entre quaisqer obras de quaisquer cultura, ficando no fim submetido ao "obrar" de quem o avalia.
Muito legal o artigo, embora falte a assinatura. Não concordo muito com o pensamento exposto, mas reconheço a importância dele ser também colocado.
Lenine Vasconcellos (Doutorando em Artes Cênica, Professor do Departamento de Dança da UFRJ)
O comentário acima trouxe algumas considerações sobre a crítica em arte, especialmente a crítica da qualidade artística e a responsabilidade de uma editora de livros nessa decisão. Sobre esse assunto e a relativização que foi feita em torno da atividade crítica, eu lembro que sim, é verdade que a autoridade do que decida o que é "bom" ou "ruim" é tão frágil quanto a tal imparcialidade que dizem ser inatingível. Mas também é verdade que nem por isso abandona-se o tal exercício, a tal afinação da capacidade de se julgar o que seja "bom" ou "ruim" (e nisso o indivíduo aprende a se sofisticar) tanto quanto nem por isso a imparcialidade deixa de guiar (nem que seja como um ideal) os métodos interessados em resultados mais neutros, certo? O post mesmo lembra que julgar é o que se faz o tempo todo, e que tanto por isso não custa aprimorar esse instrumento de comparação e valoração.
Mas me importa perceber que o que o post questiona não é nem o critério de qualidade por parte da editora, e sim o critério comparativo que, sob a etiqueta de uma mesma coleção e apelo a um mesmo público, iguala Lou Reed a prosa literária. Há uma perda, uma abolição de uma noção mínima de gênero que, ao sugerir que "tudo é a mesma coisa", achata algumas distinções que aprendemos a fazer e que nos ajudam a perceber certos sentidos em arte.
E só pra terminar: sobre pensar em como se dá o processo da crítica na arte e o quanto ele pode ser relativizado por ser muito "subjetivo", ao menos uma coisa ainda é possível generalizar e observar em termos absolutos: que a mecânica da crítica, lembremos, é colocar em prática <>. E um critério nada mais é do que a medida para a aferição de um valor. E um valor nada mais é do que algo que merece ser destacada do todo por ter uma qualidade que as outras coisas não possuem E/OU por não compartilhar uma qualidade que todas as outras coisas possuem. A partir disso o baú do "bom", oportunamente, vai sendo argumentado pelo crítico, e resta o consenso intelectual pra que Shakespeare e Beethoven permaneçam no cânone.
Abraços e saudações ao projeto colocado em prática pelo Ocidentalismo!
Leonardo
Totalmente a favor do exercício da liberdade, ou da liberdade do exercício, como preferir. Porém, por defender essa mesma liberdade não considero intelectualmente honesto utilizar alguns conceitos de uma maneira pouco precisa e invertida para se defender uma dada crença, sem deixá-la explícita. Explico-me:
Um critério não é absolutamente uma medida. É antes o ato de medir que obrigatoriamente impõe o estabelecimento de critérios ou padrões, cuja escolha será sempre subjetiva e estabelecida a partir de uma dada convenção. Já surge aí o caráter relativo e subjetivo que qualquer medida possui em sua essência originária, mesmo dentro da maior crença científica de precisão. Está lá o Albert Einstein que não me deixa mentir.
Para o ato de aferir, vou recorrer ao cânone do dicionário para comentar:
a.fe.rir
(lat afferere, por afferre) vtd 1 Ajustar ao padrão, apurar a exatidão de, conferir, calibrar. vtd 2 Verificar, marcar a exatidão de (pesos, medidas, balanças e instrumentos de medição). vtd 3 Avaliar (glórias, responsabilidades). vtd 4 Julgar (a alma, a verdade): Por sua alma você não pode aferir a minha. vtd e vti 5 Comparar, cotejar: Afira minha opinião pela sua. vtd 6 Psicol Estabelecer, por cálculo estatístico, padrões para teste ou provas de laboratório; padronizar. (Conjuga-se como aderir.)
Onde fica bastante explícito, para um leitor não muito fundamentalista em suas crenças, o caráter relativo e sempre comparativo.
Outro ponto que considero bastante impreciso diz respeito ao conceito de valor. A coisa em si não possui valor merecendo-o por possuir determinada característica ou a ausência dela. Ofereça um copo de água e um diamante, ambos igualmente raros sendo portadores de características únicas, para um sedento em um deserto e pergunte a ele o que “merece” maior valor.
Agora sim, de forma bastante elucidativa das crenças do post, está a expressão “consenso intelectual”. Essa expressão me permite imediatamente perguntar “Consenso de quem???” Con-senso, ou sentir junto, ou ainda perceber um sentido comum, caminha lado a lado com o senso comum, que acredito estar bastante distante da linha de pensamento do blog Ocidentalismo. Aliás, o editorial do blog é muito feliz ao se colocar em uma postura de guerra santa – Jihad, ou guerra por uma crença.
No fim, são as crenças que nos movem e que constroem as nossas articulações de pensamento, nossas escalas de valores que nos permitirão exercer o legítimo e fundamental direito de TODO ser humano de aferir dentro de sua escala própria de valores construídos, a sua hierarquia que poderá colocar Lou Reed ao lado de Pirandelo, Beethoven ao lado de Zeca Pagodinho, os Gêmeos ao lado de Da Vinci, em um exercício de se desfazer cada vez mais uma posição canônica da crítica única, para coexistirem e dialogarem cedo ou tarde necessariamente várias críticas, revelando o caráter democrático intrínseco da arte.
Ainda sobre a crença, termino esse comentário com uma citação de Gandhi
“Suas crenças se tornam seus pensamentos.
Seus pensamentos se tornam suas palavras.
Suas palavras se tornam suas ações.
Suas ações se tornam seus hábitos.
Seus hábitos se tornam seus valores.
Seus valores se tornam seu destino.”
Vida longa ao Ocidentalismo, no livre exercício da defesa de suas crenças.
Lenine Vasconcellos (Doutorando em Artes Cênica, Professor do Departamento de Dança da UFRJ)
(Cof cof... No último comentário tentei destacar a palavra "critério" entre <>'s, e ela desapareceu...).
Certo, Indiano. Mencionei a parte menos objetiva da crítica não pra dizer que ela não era subjetiva de todo, mas pra dizer que parte importante da mecânica dela tenta se colocar de maneira necessariamente objetiva. O tal "consenso" que mencionei tem a ver com a ocasião em que certos critérios, ao associarem um valor a uma obra, acabam justificando o porquê de tal artista ter feito algo que outros não fizeram da mesma forma, e o que esse argumento acaba comprometendo de todos os críticos seguintes em levarem em conta esse critério. Se ele for acatado, acaba virando consenso, como costuma ser o caso do cânone que é respeitado à despeito de opiniões pessoais.
[]'s!
"Mencionei a parte *MAIS* objetiva da crítica (...)". Cof cof cof.
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