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sábado, 9 de abril de 2011

As piadas e a sociedade

por Academic Minute

Dr. John Capps é professor associado de filosofia do "College of Liberal Arts" do "Rochester Institute of Technology". Sua área de pesquisa é epistemologia e filosofia da ciência. Ele é co-autor, com seu pai, Donald Capps, de You've Got to Be Kidding!: How Jokes Can Help You Think.

Para o posto original em sua versão de áudio, clique aqui.

Freqüentemente o que faz uma piada engraçada é que alguém faz algo que é completamente irracional, e quando tornamos consciente o que se passa, podemos tentar não fazer o mesmo erro. Na vida real, ninguém quer ser o motivo de uma piada.

Todos provavelmente ouvimos aquela do advogado que defende um homem que assasinou seus pais, e o advogado pede clemência dizendo "meritíssimo, deixe-me lembrá-lo que este pobre rapaz é um orfão!" De fato, o que é irracional aqui é que o advogado está fazendo o que os filósofos chamam de "apelo à piedade" (appeal to pity, no original), sem que se coloque à luz que o motivo mesmo de sua orfandade é a responsabilidade pela qual ele está sendo acusado. E, de modo geral, precisamos estar cuidadosos para que não deixemos nossos sentimentos atrapalhem nossos pensamentos claros e nosso juízo do que é correto a ser feito. E esta piada é uma forma muito viva de lançar luz a este ponto.

Ainda, quando rimos de piadas mostramos que temos muito em comum, que concordamos sobre algumas coisas por serem simplesmente verdadeiras ou falsas, racionais ou não. Então, piadas podem ser importante referências sociais, que nos lembram de coisas que todos concordamos. Há uma que diz de uma mãe que acaba de ter seu filho, não pode dormir e vai ao médico dizer que está preocupada; ela teme não conseguir ouvir seu bebê caso ele caia do berço. Ela pergunta ao médico o que fazer e ele diz "ah, é fácil: tire o carpete!". Esta é uma piada engraçada porque todos sabemos que aquilo que o médico está dizendo é profundamente imoral e anti-profissional - e isto, por si só, mostra que concordamos com muitas coisas.

Então piadas dizem muito sobre nós: elas elevam nosso padrão de racionalidade e moralidade, e funcionam como uma espécie de "cola" social. Aristóteles disse que humanos são animais racionais, mas poderíamos também dizer que somos animais que fazem piada - e isto significaria quase a mesma coisa.


Retirado de Academic Minute Home.

quarta-feira, 6 de abril de 2011

Music and Emotion

As soon as the unexpected, or for that matter the suprising, is experienced, the listener attempts to fit it into the general system of beliefs relevant to the style of the work (...) three things may happen: (1) The mind may suspend judgment, so to speak, trusting that what follows will clarify the meaning of the unexpected consequent. (2) If no clarification takes place, the mind may reject the whole stimulus and irritation will set in. (3) The expected consequent may be seen as a purposeful blunder.

Whether the listener responds in the first or third manner will depend partly on the character of the piece, its mood or designative content. The third response might well be made to music whose character was comical or satirical. Beckmesser's music in Wagner's "Die Meistersinger" would probably elicit this type of interpretive understanding.


Leonard Meyer, "Emotion and Meaning in Music", p. 30 (1956).

terça-feira, 5 de abril de 2011

DAVID E JEAN-JACQUES


por Joel Pinheiro da Fonseca

Quando falamos no Iluminismo, é fácil esquecer que ele, assim como todos os outros movimentos, escolas e correntes filosóficos, foi formado por indivíduos, cada qual com o seu pensamento. Não pensavam todos da mesma forma. E nem sempre se davam bem.

Rousseau, exilado do continente, foi para a Grã-Bretanha, onde ficou hospedado sob os auspícios de David Hume. Acontece que o genebrês era um tanto selvagem, mas não era bom. Logo estava exigindo acomodação no interior e demandando que sua amante e seu cachorro fossem trazidos para morar com ele. Infelizmente para Rousseau, a sonhada pensão às custas da Coroa inglesa não veio, e ele passou a suspeitar que Hume fosse o responsável, o que resultou em inúmeras cartas difamatórias sobre seu anfitrião. Seis meses depois ele voltava para o continente, com um amigo a menos. Mais uma ilustração de como o moralismo exacerbado (seria Rousseau ele próprio a evidência de como a sociedade corrompe o espírito humano?) freqüentemente esconde os piores temperamentos.

Retirado de Dicta.com.br.

terça-feira, 29 de março de 2011

Literatura e filosofia online

por Leandro Oliveira

A idéia é de Juliana Perez (da Universidade de São Paulo) e Giovanni Maddalena (da Universidade de Molise, na Itália): construir uma base da dados, uma espécie de biblioteca virtual, que reúna textos de diversas épocas e autores sobre as relações entre filosofia e literatura. O site chama-se Philosophy of Literature e pode ser acessado aqui.

O trabalho será feito de forma cooperativa, e todos estão convidados a fazer o registro no site (é bem rápido!) e enviar sugestões de links, textos ou arquivos (respeitados os direitos autorais, claro: cada texto exige um tratamento, dependendo da data em que foi publicado).

sexta-feira, 25 de março de 2011

O anjo da canalhice


por Leandro Oliveira

O professor Luís Felipe Pondé - um dos padrinhos deste site - realiza nos dias 2 e 9 de abril, das 11hs às 13 hs, o curso "O anjo da canalhice: o gênio de Nelson Rodrigues". Trata-se de uma perspectiva inusitada sobre um dos maiores dramaturgos brasileiros.

Na Livraria Cultura do Conjunto Nacional. Para inscrever-se, clique aqui.

quarta-feira, 2 de março de 2011

Um programa sobre ética e Walter J. Ong

por Leandro Oliveira

"Ethics Talk" é o programa semanal de rádio produzido pelos estudantes do Center for Professional and Personal Ethics da Central Michigan University. É um programa de uma hora de duração dedicado à assuntos correlatos à ética - variados, incluem educação, depressão ou procrastinação: "ethics" do título deve portanto ser entendido no sentido lato, do cultivo de uma boa vida e do próprio crescimento pessoal.

Sempre com convidados de primeiro time, recomendo vivamente dois programas, ambos com o professor Tom Farrell, um dos grandes scholars da atualidade especialista em Walter J. Ong e com interesses em Bernard Lonergan, Marshall McLuhan e Eric Voeglin. Farrel discute dois aspectos importantes da obra de Ong: a tecnologização da palavra (onde de quebra é discutido um pouco sobre Teillhard de Chardin) e o livro "Ramus, Method and the Decay of the Dialogue".

"O que isso tem a ver com ética?", perguntaria um ou outro. Muito. Ouvindo Farrel - principalmente o segundo link - fica claro como as tecnologias de comunicação contribuiram para a construção do senso de "individualidade" que tanto nos é caro hoje em dia (e que certamente vem sendo transformado pelas novas ferramentas como a internet, mas isso é outra história).

São gravações de 2009. Quem quiser participar da discussão que vai ao ar atualmente, pode acessar a transmissão ao vivo do programa, pelo BlogTalk Radio.

quinta-feira, 17 de fevereiro de 2011

Cultura sem limites


por Leandro Oliveira

Bráulio Mantovani, Luís Felipe Pondé, Nivaldo Cordeiro, o papai aqui, Laís Bodansky... é parte da turma de gente buona que participa da primeiríssima edição do projeto "Cultura sem Limites" na Livraria Cultura do Conjunto Nacional.

Cursos sobre Dostoiévski, Ocidente, Nelson Rodrigues ou - meu assunto preferido - a cultura como negócio vão balançar as rochas da Avenida Paulista. Vagas limitadas: informem-se, divulguem, façam a inscrição: o primeiro curso já no final de Março.

Para saber mais do "Cultura sem limites", clique aqui.

sexta-feira, 28 de janeiro de 2011

Pergunte ao Julio Lemos


por Julio Lemos

Arrependimento é uma demonstração de burrice?
Não; é uma demonstração de civilização.

Vc acha possivel que, por meio dos teoremas Gödel, seja possível contestar (ou ao menos enfraquecer) a teoria dos sistemas do Luhmann?
Esses teoremas apontam o limite dos sistemas formais; mas a lógica de primeira ordem é completa, certo? Luhmann tinha consciência disso; e creio que isso não afete as suas teorias. É preciso ter em conta que os sistemas descritos por Luhmann descrevem um aspecto da vida social, deixando intactas coisas como o mistério, as origens, etc. Ele sabia que era apenas um Observador. Malgrado isso, há inúmeros pontos fracos nos seus livros -- mas prefiro ele a Habermas, por exemplo.

O que pensa da situação atual dos descendentes de escravos no Brasil?
Eu não ligo nada pra descendentes de escravos. Que coisa mais surreal, bicho. Se é boa gente, é boa gente. Não tem título de nobreza.

Em 2007 eu caia num marasmo intelectual sem fim, derivado da idéia (ridícula) de que já sabia muito e por ficar confinado na universo de referência de uns poucos autores. Você alargou meus horizontes e me fez mais feliz. Muito obrigado.
Você é bem vindo, you're welcome, my unknown friend.

Quero começar a me dedicar ao meu curso de direito, que venho levando na barriga e com desinteresse. Como despertar esse interesse? O que ler? Recomende-me obras, por favor.
Esse interesse tem de aparecer de algum modo. Um bom móvel é colocar a meta de ser o melhor aluno da classe sem parecer idiota como os almofadinhas do direito. Ler os autores clássicos de cada área: Pontes de Miranda, Francisco Amaral e Serpa Lopes (civil); Nelson Hungria (penal); Bandeira de Mello (administrativo); Augusto Becker (tributário); Baptista da Silva (processo civil); Canotilho e Konrad Hesse (constitucional); Alchourrón, Kelsen, Canaris, Larenz e Miguel Reale (filosofia do direito); Moreira Alves e Max Kaser (direito romano). Ler literatura. Enfim, se interessar pelo curso que você escolheu e não ser uma vergonha para o país :)

Quantos anos você tem?
Dez anos depois do assassinato de John Lennon, meu pai tinha o dobro da minha idade, mais seis anos; no ano do ataque às torres gêmeas meu pai fez 41 anos. Agora eu pergunto: que idade eu tenho? Há uma vírgula aí, estrategicamente colocada, que decide a questão.

Alguma dúvida? Pergunte ao Julio Lemos.

quarta-feira, 12 de janeiro de 2011

Ciência, consciência e criatividade

por Leandro Oliveira

Dr. Vilayanur Ramachandran é um neurocientista indiano, diretor do Centro do Cérebro e da Cognição da Universidade da Califórnia, em San Diego. Ele surge no meio científico internacional por seu trabalho sobre ilusões visuais e, logo depois, por pesquisas em amputados com sensações em membros fantasmas - que foi tema de uma série para BBC, "Emerging Mind".

Assim como Oliver Sacks, seus livros são dos mais estimulantes escritos de divulgação científica contemporânea. Em português há a publicação de "Fantasmas no Cérebro". Grande comunicador, Ramachandran torna acessíveis questões muito recentes da neurociência. Suas pesquisas por vezes nos aponta conclusões surpreendentes sobre o funcionamento do cérebro.

Este vídeo abaixo é um dos maiores sucessos do TED, sobre criatividade. Há possibilidade de disparar as legendas.


A palestra termina - vale a pena ver seus vinte minutos - com uma nova perplexidade do cientista: a sinestesia e sua relação, por assim dizer, poética. Explica onde o cérebro realiza nossas metáforas, e como estas metáforas, abstrações simbólicas, seriam algo definitivamente humano.

Quatro anos depois, ao apresentar suas conclusões, Ramachandran parece perder um pouco o fio da meada. É o que diz a resenha de seu último livro "The Tell-Tale Brain: A Neuroscientist's Quest for What Makes Us Human", feita pelo filósofo Raymond Tallis para o Wall Street Journal. A discussão, devidamente contextualizada, versa sobre as fronteiras do conhecimento científico, seus limites e suas reais aplicações. Comenta Tallis

The trouble begins when the neurologist turns philosopher and tries to use these insights to get closer to "what makes us human." He suggests that such cross-wiring underpins both humans' ability to enjoy metaphors and artists' capacity to create novel connections — an assertion that has scarcely any research to back it up. (What little has been done depends on laughably simplistic models of how metaphors and creativity really work.) Likewise, his explanation of how we became speaking animals has scarcely a toe-hold on empirical data. (...)

It is disappointing that Dr. Ramachandran is serially unfaithful to the initial vision he presents, of humans as a species that "transcends apehood to the same degree by which life transcends mundane chemistry and physics." "The Tell-Tale Brain," though it is engagingly written and often fascinating, reminds us how little cause we have to privilege what the neuro scientists tell us about what makes us human over the testimony of novelists, poets, social workers or philosophers


A dica é de Joel Pinheiro da Fonseca na Dicta. Para o artigo na íntegra, clique aqui.

terça-feira, 11 de janeiro de 2011

Tauromaquia


por Leandro OLiveira

Vinhos chilenos e a leitura de um dos clássicos da tauromaquia (que nostalgias guardará esta cepa?): Ortega y Gasset, "La Caza y Los Toros".

Ahora bien, el toro es el animal que embiste. Comprenderlo es comprender su embestir. Esto es lo que sonará a desesperante perogrullada, porque se da por supuesto que todo el mundo «comprende» la embestida del cornúpeta. Mas el aficionado que en un tentadero se ha puesto alguna vez delante de un becerro añojo saliendo casi indefectiblemente atropellado, si reflexiona un poco sobre su fiasco caerá en la cuenta de que la cosa no es tan perogrullesca. Porque sabe muy bien que no fue el miedo la causa de su torpeza. Un añojo no es máquina suficiente para engendrar temblores. La frustración fue debida a que no «comprendió» la acometida de la res. La vio como el avance de un animal en furia y creyó que la furia del toro es, como la del hombre, ciega. Por eso no supo qué hacer y, en efecto, si el embestir fiel del toro fuera ciego, no habría nada que hacer, como no sea intentar la huida. Pero la furia en el hombre es un estado anormal que le deshumaniza y con frecuencia suspende su facultad de percatarse. Mas en el toro la furia no es un estado anormal, sino su condición más constitutiva en que llega al grado máximo de sus potencias vitales, entre ellas la visión. El toro es el profesional de la furia y su embestida, lejos de ser ciega, se dirige clarividente al objeto que la provoca, con una acuidad tal que reacciona a los menores movimientos y desplazamientos de este. Su furia es, pues, una furia dirigida, como la economía actual en no pocos países. Y porque es en el toro dirigida se hace dirigible por parte del torero.

Uma amiga diria que nada disso, a batalha é entre Dionísio e Apolo - e contestaria, inteligente como ela e só, afinal, o que há de atávico em uma "embestida clarividente".

Talvez a própria fúria? Responderia embriagado. São tantas as narrativas...

segunda-feira, 20 de dezembro de 2010

Marsílio Ficino e DEUS: uma abordagem metafísica

Dando seguimento à apresentação do filósofo do renascimento italiano Marsilio Ficino, Talyta apresenta um problema metafísico da mais alta conta.

Por Talyta Carvalho

Como prometi no post anterior sobre Marsílio Ficino, este post tem a intenção de “pincelar” algumas noções do que poderíamos determinar como o conceito de Deus na obra intitulada Teologia Platônica pelo filósofo. O leitor já passou comigo pela etapa árdua da conversa, aquela dos constrangimentos de minha parte, estão lembrados? Consideremos aquele post inicial como preliminar (em todos os sentidos), agora cumpre levar a tarefa à cabo: falemos de metafísica. Serei gentil e delicada - prometo que não vai doer nadinha.

Gostaria que assumissem Deus como Unidade, Verdade e Bondade. Ficino faz a demonstração no livro II, mas aqui vamos fingir que tudo mundo sabe disso (que os Transcendentais formam o princípio universal, e que nele unidade, verdade e bondade são a mesma coisa), pois do contrário escrever este post seria uma tarefa impossível. Bem, o que significa dizer que Deus é o princípio universal? Para Ficino, significa dizer que Deus é o primum in aliquo genere (aquele que possui a essência do universal e a comunica aos outros membros do gênero). É aquele que existe por si mesmo, perfeito e causa de seu gênero. Deus é o primeiro princípio, portanto o primum por excelência uma vez que é o primum do gênero Ser. Daí não podermos aceitar a hipótese de que um politeísmo seja verdadeiro.

sábado, 11 de dezembro de 2010

Marsílio Ficino: Fé e Razão na Renascença


Talyta dedica este post às amigas Tati Ballan e Lou-Lou Wolf, "as quais, talvez por não estudarem filosofia, sempre que me ouvem falar de Ficino reagem com um encantamento que me supõe ser muito mais inteligente do que realmente sou." É resultado de sua defesa de dissertação de mestrado.

Por Talyta Carvalho

Sim, leitor do Ocidentalismo, realmente faz um bom tempo que não escrevo aqui. O motivo? Bem, passei os últimos dois meses estudando e me angustiando em razão daquela “malhação de Judas” acadêmica chamada “Defesa pública”. Aconteceu na semana passada (aliás, obrigada aos meus caros editores pela presença!) e com ela encerrou-se um ciclo de estudos que já vinha desde 2007. Uma das coisas que me ocorreu assim que a defesa terminou era de que havia uma pergunta em especial que eu não precisaria mais responder por um bom tempo: “O que você estuda no mestrado?” Perdi a conta de quantas vezes fiquei constrangida por causa dessa indagação. Por quê? Porque eu sabia qual seria a reação do interlocutor assim que eu respondesse “estudo Marsílio Ficino”: uma expressão facial blasé que, caso se fizesse verbal, diria “MARSÍLIO QUEM?”.

Não é um pecado intelectual uma pessoa (quer estude ou não filosofia) não saber quem é Marsílio Ficino. Meu constrangimento advinha do fato de nestes momentos eu me dava conta de que estava me tornando uma dessas pesquisadoras que não possuem interlocutor porque estudam um cara que ninguém conhece. Farei dois posts sobre Ficino. Este primeiro tem o objetivo de responder justamente a pergunta “Marsílio quem?”. O próximo deverá abordar o pensamento metafísico do autor.

Marsílio Ficino foi um filósofo neoplatonico nascido na Itália em 1433. Graças ao mecenato de Cosme de Médici pôde entrar em contato com toda a obra de Platão e de alguns neoplatonicos como Plotino e Proclo. Cosme havia adquirido manuscritos destes autores em grego (quando do Concílio de Ferrara e Florença) por meio de estudiosos bizantinos, e os entregou a Ficino para que os traduzisse para o latim. E foi justamente essa empresa de Cosme que nos legou um “primeiro” Ficino, o tradutor e divulgador das obras de Platão no Ocidente.

Em alguns anos todo o trabalho de tradução já estava concluído, e então, o filósofo passa a adicionar comentários dos textos às suas traduções. O ápice ocorre quando ele se propõe uma indústria própria e concebe sua maior obra, a "Teologia Platônica". Essa indústria a que me referi consistia, resumidamente, em provar por argumentos racionais a imortalidade da alma. A motivação de Ficino para tal projeto era por um lado religiosa e por outro intelectual. Ele identificava que em seu tempo o divórcio entre fé e razão caminhava para uma separação radical entre teologia e filosofia, o que ele considerava uma grande perda para as duas disciplinas, daí a motivação intelectual de reunir ambas em sua reflexão. Por outro lado, temos a motivação religiosa do autor. Ficino escreve para combater uma classe específica de pensadores: os averroístas, ainda bastante fortes e presentes no cenário intelectual da Renascença. o principal ponto de discórdia de Ficino com estes últimos era justamente a defesa da dissociação entre fé e razão, materializada conceitualmente na teoria da Dupla-Verdade.

A teoria da Dupla-Verdade não foi elaborada por nenhum averroísta, na realidade ela apenas ficou associada a estes pensadores. O que é, então, a teoria da Dupla-Verdade? Quando há dois corpos de doutrina (um deles elaborado teologicamente e o outro filosoficamente) que se propõem a analisar um mesmo objeto e as conclusões a que chegam são conflitantes, mas ainda assim ambas as doutrinas sustentam suas conclusões como verdadeiras, o resultado é uma teoria da Dupla-Verdade. Em suma, o que é válido nas bases da fé nem sempre vale nas bases da razão. Um averroísta do Renascimento (como p. ex. o paduano Pietro Pomponazzi) rejeita a razão como instrumento válido para reforçar os dogmas da fé. Daí não se poder provar, por exemplo, a imortalidade da alma individual. Marsílio Ficino supõe que a aceitação destes princípios desencadearia perda de fé e corrupção moral.

Ficino escrevia para um público específico que era o público erudito, por isso julgava necessário fazer provas racionais, pois se a fé não convence o letrado a razão deveria convencê-lo de que o caminho pelo qual se optava naquele momento poderia levar a consequências funestas.

sexta-feira, 12 de novembro de 2010

A escrita como uma tecnologia que reestrutura a mente - Parte I


Por Leandro Oliveira

A escrita, quer dizer, o evento histórico que permite este ato que faço agora e que o leitor tem a oportunidade de acessar quando dou enter no mecanismo do blogger, a escrita, como dizia, foi um desdobramento muito recente para a humanidade. O primeiro registro incontroverso de linguagem de fato que conhecemos foi desenvolvido entre os Sumérios na Mesopotâmia somente por volta do ano 3500 A.C - ou seja, mais ou menos 6.000 anos atrás; o alfabeto, esta inovação tecnológica extraordinária, menos de 4.000 anos. Se considerarmos que, em uma estimativa conservadora, o Homo Sapiens está na Terra há pelo menos 30.000 anos, temos a conclusão decisiva: é uma sorte estatística você estar aí enquanto eu aqui tomo um chá quente e batemos este papo - o mais provável seria que estivéssemos mostrando os dentes ou tentando fazer filosofia por sinais de fumaça (impossibilidade categórica, mas explico isso depois...).

Claro que não necessariamente seríamos tão bárbaros. Muito antes dos primeiros registros escritos da fala, havia a fala (rá!), e, com ela, podemos permitir dizer, algum tipo de comunicação elaborada entre seres humanos. A questão é que das mais de dez mil línguas que serviram ou servem para comunicação oral no curso da história humana, apenas uma parte ínfima - Munro Edmonson em seu estudo "Lore: An Introduction to the Science of Folklore and Literature" de 1971 calcula pouco mais de 100 - compromete-se de algum modo com a escrita de maneira a permitir produção de registros regulares escritos. A maior parte delas jamais foi registrada: mesmo entre as cerca de 4.000 línguas faladas hoje, estimamos cerca de oitenta com a disponibilidade para preservar algo que podemos chamar de literatura .

sábado, 6 de novembro de 2010

Entrevistas com e sobre filósofos


Por Julio Lemos

O número de temas que interessavam os filósofos -- ou "físicos" -- pré-socráticos já era muito grande. A composição do universo, o caráter da matéria, os elementos, a fluidez da realidade, a guerra, a ética, os deuses (e talvez até Deus), o sentido da vida... Enumerei esses exemplos pensando em fragmentos de gente como Heráclito, Demócrito e Anaxágoras, que li quando estava no colegial.

Pouco depois, ao tomar contato com a filosofia moderna e contemporânea, descobri que os temas são os mesmos, mas que há muito mais "fragmentos" e, por assim dizer, sub-temas, derivações, especializações, associações com outras áreas, como a biologia e a matemática. É difícil citar um tema que tenha ficado fora da discussão filosófica: de Deus à prática da medicina.

O excelente blog Philosophy Bites realizou muitas entrevistas nos últimos tempos. Lá estão nomes conhecidos e nem tão conhecidos a falar sobre muitos temas, literalmente de Deus à prática da medicina, se me permitem a repetição. Fica às leitoras e leitores uma alternativa inteligente para passar o tempo.

segunda-feira, 11 de outubro de 2010

...like a bridge over troubled watters...


Por Eduardo Wolf

Imagine a seguinte situação: você está em uma dieta de emagrecimento (as razões para isso podem ser variadas) e, dadas essas circunstâncias, você sabe que não deve comer certas coisas – digamos, doces, por exemplo. E eis que de repente você se depara com aquela extraordinária torta, com aquele chocolate suíço magnífico – insira aqui o doce de sua preferência, leitor. Você nunca fraquejou em uma situação como essa? Claro, os exemplos poderiam ser de outra ordem. Por exemplo, imagine que você, mesmo sabendo que não deve consumir bebidas alcoólicas, pois está dirigindo, acabe, mesmo assim, fazendo isso. O vinho era bom – e não precisa ser um Alma Viva – e você, hélas, fraquejou. Mas afinal, porque isso acontece? Como podemos explicar satisfatoriamente esse fenômeno que, salvo engano meu, é tão comum entre nós?

Antes de responder a essa questão, vejamos ainda um outro caminho: imagine que você comece a se perguntar sobre o que faz com que você precise obedecer aquela lei que diz que você não deve ingerir bebidas alcoólicas e dirigir. Você pode responder que, ora bem, trata-se de uma convenção: é a legislação vigente, e é assim que funciona a vida em sociedade. Mas por que respeitamos as leis convencionadas? E por que essas leis, e não outras? Você poderia ir ainda mais longe e se perguntar por algo que extrapola qualquer sentido de convenção no que diz respeito ao nosso comportamento. Por que, por exemplo, nos sentimos chocados com a idéia de torturar crianças (no meu caso e no de muitos, bastaria o “torturar”, mas forço o exemplo com fins didáticos)? Não é preciso que esteja escrito em nenhum lugar que isso é algo ruim para que pensemos que, de fato, é (salvo, é claro, casos patológicos) algo ruim. Mas de onde vem essa nossa compreensão das coisas boas e más que fazemos ou que não devemos fazer?

Se você acha que nenhuma dessas questões faz sentido, aconselho que pare de ler por aqui (embora duvide que quem pense assim tenha chegado até aqui). Agora, se você reconhece que essas questões ao menos fazem sentido, peço que estique um pouco mais a corda do raciocínio e me acompanhe.

quarta-feira, 22 de setembro de 2010

A causa material do universo. (se non è vero, è ben trovato)


Aqueles que acompanham o Ocidentalismo.org sabem que não evitamos perguntas difíceis, ou mesmo improváveis: exatamente aquelas necessárias e infelizmente ausentes em nossas revistas culturais ordinárias. Agora, excitados pelo entusiasmo da mídia sobre o mais recente livro de Stephen Hawking, retomamos internamente os debates sobre "Causa Primeira", origem do Universo, existência de Deus. Leibniz dizia que "todo estado presente de uma substância simples é uma continuação natural do seu estado passado"; Leonardo Valverde nos sugere uma leitura original sobre a discussão - e parte para isso da tradição vedānta.

Por Leonardo Valverde

Semanas atrás, um dos físicos mais conhecidos e respeitados hoje, Stephen Hawking, voltou a considerar a idéia de um universo não criado por Deus. E com esta declaração, o físico entrou num dos pontos cruciais da tradição vedānta - já estudado há milênios.

Para o físico e cosmólogo, os universos não precisariam de intervenção divina para serem criados, e mais, surgiriam do nada (ou do Nada?). O que chamam de Teoria-M.

A notícia - por conta do lançamento de seu novo livro "The Grand Design" - deixou-me com uma curiosidade enorme para rever o que a obra Vedānta Sūtra expõe a respeito.

E lá fui eu conferir...

Os aforismos abaixo estão no tópico 7, da sessão 4, do capítulo 1, este tópico é chamado de prakṛtyadhikaraṇam, ou o substrato da matéria.

प्रकृतिश्च प्रतिज्ञदृष्टान्तानुपरोधात्
prakṛtiśca pratijñadṛṣṭāntānuparodhāt (1.4.23)
Da não contradição de exemplo e proposição, (o Absoluto é) também (a causa) material.


अभिध्योपदेशाच्च
abhidhyopadeśācca (1.4.24)
Da referência ao desejo.

साक्षाच्चोभयाम्नानात्
sākṣāccobhayāmnānāt (1.4.25)
É (causa) direta, por conta da menção de ambos (criação e dissolução).

आत्मकृतेः परिणामात्
ātmakṛteḥ pariṇāmāt (1.4.26)
Autocriado por causa da transformação.

योनिश्च हि गीयते
yoniśca hi gīyate (1.4.27)
E é chamado, certamente, a origem.

Detalhe: os sūtra são como “mensagens de telegrama”, temos de compor o sentido.

quinta-feira, 9 de setembro de 2010

“Thais” ou Era uma vez...

De Shelley Duval a Santo Agostinho, Talyta Carvalho arrisca o improvável: explicar como os dilema morais perdem seu lugar de destaque na formação de nossa juventude quando contaminamos por ideologia, correção política ou o que quer que seja os "Contos de Fadas". Eles deveriam se preservar como uma reserva do bom e do justo... mesmo nos programas de TV.

Por Talyta Carvalho

Pois é, meu mestrado acabou. E digo isso sem a menor tristeza, como todos devem supor. Recebi, além do óbvio alívio e da paz de espírito tão esperada, muitas congratulações dos amigos e familiares. Mas algo especial ocorreu: não sei se já comentei antes, mas tenho uma irmã gêmea. Sim, ela é idêntica fisicamente a mim e se chama Thais. A Thais é uma mocinha doce e atenciosa, orgulho da família, estudante de Medicina em uma faculdade altamente conceituada de São Paulo. Thais é o sonho de qualquer pai e de qualquer mãe.

Mais ainda, Thais é o sonho de qualquer irmã.

Sou uma garota que tem lá suas obsessões banais na vida, como quase todo mundo. Uma de minhas obsessões é com uma lembrança vaga da infância que sempre tive o anseio de recuperar. Quando pequena, eu era uma dessas crianças geeks que passavam seus dias a ler livros de gente grande e a resolver problemas de matemática. Mas havia um ou outro dia da semana em que eu era uma criança como todas as outras, e esses dias eram os dias em que eu assistia um programa de TV acompanhada de meus pais e da Thais. Havia uma história que era minha preferida: “A rainha da neve”. O programa saiu do ar há muitos anos atrás, mas mesmo assim eu havia crescido obcecada por esta história.


Na última semana, Thais me entrega um presente por eu ter concluído a pesquisa. Quando abri o pacote não pude conter minha empolgação e alegria. Graças a minha irmã eu estava prestes a entender, finalmente, o motivo de minha obsessão. Obviamente, assisti ao DVD na mesma hora. O que eu achei? Bem, na realidade a história e a produção eram infinitamente melhores na minha imaginação. Contudo, ao final, Shelley Duvall (idealizadora e da série) narra a moral da história dizendo a importância da amizade. Aí então eu entendi minha obsessão.

Era uma obsessão com a moral da história agora finalmente relembrada. E digo “moral” em todos os sentidos. Percebi que esse era o motivo primordial do meu fascínio com os Contos de Fadas, afinal, eles são a maneira pela qual costumava-se ensinar sobre virtude e vício para as crianças.

quinta-feira, 2 de setembro de 2010

O Fogo Divino, os santos e os pecadores


A riqueza do simbolismo religioso é uma das permanentes fontes do conhecimento da humanidade - e neste sentido, podemos tranqüilamente falar de um certo ecumenismo, posto que as mais importantes referências simbólicas religiosas, para serem fundamentais devem antes ser universais. Mas, é claro, o problema do símbolo não reside em sua expressão, mas sua interpretação. É ali sobretudo, como objeto de cultura, que tal "ecumenismo" naufraga: a parte a clareza do símbolo, existem distinções teológicas evidentes e importantes que devem ser entendidas e interpretadas permanentemente, e preservadas ou não. No texto abaixo, Joel Pinheiro da Fonseca se debruça mais uma vez sobre um problema universal - a da puniçao e o juízo - relendo-o a partir de sua expressão última e radical: o fogo do inferno cristão.

Por Joel Pinheiro da Fonseca


Partiram de Sucot e acamparam em Etam, na periferia do deserto. O Senhor os precedia, de dia, numa coluna de nuvens, para lhes mostrar o caminho; de noite, numa coluna de fogo para iluminar, a fim de que pudessem andar de dia e de noite.” Êxodo 13, 20-21

"A coluna de nuvens que estava na frente postou-se atrás, metendo-se entre as tropas dos egípcios e as de Israel. Para uns a nuvem era tenebrosa, para outros iluminava a noite, de modo que durante a noite inteira uns não podiam ver os outros.” Êxodo 14, 19-20


Já defendi em outro lugar - e é uma tese em nada estranha à autêntica tradição cristã - que a punição do inferno está intrinsecamente ligada ao estado da alma ao qual ele corresponde: amar uma criatura mais do que ao Criador. Preferir um bem finito e relativo ao Bem absoluto, que é a única fonte possível da felicidade humana, é condenar-se à miséria eterna. A dor sensível é decorrência do mau moral.

Hoje quero explorar um ponto ligado a essa idéia: a dor dos condenados e o deleite dos santos provêm do mesmo objeto. Toda a diferença entre a alma em estado de beatitude e a alma condenada reside na disposição delas perante Deus. Quero ilustrar isso com a imagem do fogo, muito cara à tradição católica, que é composta basicamente da Bíblia, dos ensinamentos magisteriais e dos escritos de santos e místicos.

A primeira imagem que nos vêm à cabeça quando falamos de fogo num contexto cristão é o Inferno. A dor dos condenados sendo consumidos por seus próprios crimes, remorsos e desejos maus é comumente representada pelo fogo, tanto no Antigo quanto no Novo Testamento. O próprio Cristo, por exemplo, explica a parábola do joio e do trigo: “O joio são os filhos do maligno. [...] Como se junta o joio para ser queimado ao fogo, assim acontecerá no fim do mundo. O Filho do homem enviará os anjos e eles recolherão do Reino todos os escândalos e todos os promotores da iniquidade, e os jogarão na fornalha de fogo, onde haverá choro e ranger de dentes” (Mateus 13, 38.40-42). O remorso e o desespero de se saberem claramente maus consome a alma dos condenados; os desejos desordenados de sua vida agora queimam com intensidade máxima; com a morte, a alma dirige-se, determinada e sem titubeios, àquilo que amava em vida. O fogo é uma imagem particularmente forte: é aquilo que a tudo consome e destrói, implacável e doloroso.
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