Dando seguimento à apresentação do filósofo do renascimento italiano Marsilio Ficino, Talyta apresenta um problema metafísico da mais alta conta.
Por Talyta Carvalho
Como prometi no post anterior sobre Marsílio Ficino, este post tem a intenção de “pincelar” algumas noções do que poderíamos determinar como o conceito de Deus na obra intitulada Teologia Platônica pelo filósofo. O leitor já passou comigo pela etapa árdua da conversa, aquela dos constrangimentos de minha parte, estão lembrados? Consideremos aquele post inicial como preliminar (em todos os sentidos), agora cumpre levar a tarefa à cabo: falemos de metafísica. Serei gentil e delicada - prometo que não vai doer nadinha.
Gostaria que assumissem Deus como Unidade, Verdade e Bondade. Ficino faz a demonstração no livro II, mas aqui vamos fingir que tudo mundo sabe disso (que os Transcendentais formam o princípio universal, e que nele unidade, verdade e bondade são a mesma coisa), pois do contrário escrever este post seria uma tarefa impossível. Bem, o que significa dizer que Deus é o princípio universal? Para Ficino, significa dizer que Deus é o primum in aliquo genere (aquele que possui a essência do universal e a comunica aos outros membros do gênero). É aquele que existe por si mesmo, perfeito e causa de seu gênero. Deus é o primeiro princípio, portanto o primum por excelência uma vez que é o primum do gênero Ser. Daí não podermos aceitar a hipótese de que um politeísmo seja verdadeiro.
Ora, Ficino argumenta que só pode haver um único Deus precisamente porque só há uma causa primeira e não uma pluralidade delas. Apesar de julgar a afirmação óbvia, o filósofo faz um exercício de ficção com o leitor apenas pelo bem do argumento: vamos imaginar que haja dois deuses gêmeos que são os princípios de tudo, chamados A e B. A primeira pergunta que o filósofo se coloca é se há alguma relação entre ambos ou se eles são iguais. Dependendo do que se responde a essa pergunta, há duas opções de conclusões:
1) Se existe a relação de subordinação, então um está acima do outro, e este que é o dominante é o princípio enquanto o subordinado não é;
2) Se não há subordinação e eles são iguais, devemos indagar se eles são totalmente diferentes ou totalmente iguais, ou se suas semelhanças e diferenças são apenas parciais. Logicamente, a primeira hipótese é inadmissível uma vez que é impossível que sejam totalmente diferentes se ambos partilham a semelhanças de existirem, e agirem e serem apontados como princípios universais. A segunda hipótese é igualmente inadmissível, visto que se fossem totalmente iguais não existiriam dois princípios, e sim apenas um. A terceira hipótese (de que possuem semelhança e diferença parcial) nos levaria ao fato de que haveria em A e B uma natureza comum que os faz concordar, e duas naturezas particulares acima dessa natureza comum, segundo a qual discordariam. Assim, pode-se depreender que A e B não seriam simples por possuírem naturezas compostas, e tampouco seriam denominados primeiros porque dependeriam de algo para unir neles suas naturezas. Somente a natureza comum a ambos é que seria o princípio, e não os dois deuses gêmeos; ou ainda, aquilo que conferiu essa natureza a eles seria princípio, e não A e B.
Só pode, portanto, existir um Deus,o qual é a maior unidade, a mais alta verdade e mais alta bondade. Há uma hierarquia ontológica no sistema metafísico de Ficino, em cujo topo está Deus. Ficino era cristão e isso implicava postular um Deus criador (causa primeira como dissemos acima), o que por sua vez implica falar de Causalidade. Para o filósofo, a existência (ou Ser) das coisas não é dada, mas sim transmitida por uma causa ativa de modo que a qualidade “existência” aparecerá como efeito comum a tudo que participar dessa causa. Da mesma maneira que a existência do calor depende do fogo, que é sua causa ativa, também o Ser dependerá de uma causa ativa, e essa causa é Deus:
Uma vez que o Ser é encontrado em todas as coisas como comum a todos para além das condições peculiares de cada, devemos indicar causas individuais para condições e qualidades individuais, mas uma causa comum a todos para o Ser, que é o único comum a todos. A causa comum a todas as coisas é Deus propriamente.
(Para saber mais vai em "Platonic theology" publicado pela Massachusetts: Harvard University Press em 2001)
Temos, portanto, que em Ficino Deus é o Ser. Ora, demonstrar isso é o propósito por excelência de uma filosofia cristã (lembremos de Gilson em seu "O espírito da filosofia medieval"): que “tudo que é só é por ele e tudo que se faz é feito por ele” (GILSON, op.cit. p 20). Para Ficino, só a um ser pode se atribuir toda eficiência: Deus. Encerramos com uma citação de Gilson que funciona muito bem como síntese da relação entre Deus, filosofia e religião em Ficino:
Só há um Deus e esse Deus é o Ser; é essa a pedra angular de toda filosofia cristã, e não foi Platão, não foi mesmo Aristóteles, foi Moisés quem a colocou.
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