A descrição de projetos de dissertação de mestrado por vezes assemelha-se a contos fantásticos de Jorge Luís Borges. Leonardo Valverde comenta seu tema, sua justificativa e tudo o mais... À diferença das ficções do escritor maior argentino, no entanto, a pesquisa de Valverde é real.
por Leonardo Valverde
1. Delimitação do tema.
Os historiadores situam a descoberta da língua sânscrita como um dos grandes fatores para o desenvolvimento do estudo da linguagem. A partir desta descoberta temos os estudos filológicos comparativos do indo-europeu, e daí uma ciência geral da linguagem, que se chamaria por fim de linguística; embora alguns tratados antigos de língua já tenham sido estruturados linguisticamente, fazendo com que certas teorias modernas sejam apenas um ‘retorno’ ao conhecimento dos gramáticos antigos. Alguns desses historiadores, como R.H. Robins, consideram o ano de 1786 um marco inicial da ciência linguística contemporânea, onde possivelmente teria se dado a primeira das quatro ‘rupturas’ significativas ocorridas no desenvolvimento do que hoje entendemos por estudos linguísticos. Aconteceu neste ano a famosa declaração no Royal Asiatic Society por William Jones que “o sânscrito, sem levar em conta sua antiguidade, possui uma estrutura maravilhosa: é mais perfeito que o grego, mais rico que o latim e mais extraordinariamente refinado que ambos” (ROBINS, 2004: 106). Aqui no Brasil, o nosso famoso linguista J. Mattoso Camara Jr. dedicou um capítulo de sua História da Lingüística ao sânscrito, dizendo que “os métodos e as concepções da gramática do sânscrito, que se encontravam em Pāṇini e seus seguidores, estimularam o espírito europeu no sentido de uma nova visão da linguagem” (CAMARA JR., 1975: 44).
Esta nova visão não se restringiu somente à linguística histórico-comparativa. O estudo do sânscrito deu origem a muitas análises de linguística sincrônica, já que as gramáticas originais desta língua abordaram praticamente todos os campos deste ramo. Os estudos linguísticos do sânscrito eram divididos em vyākaraṇa (análise linguística), śikṣā (fonética) e nirukta (etimologia), as três faziam parte de uma educação tradicional voltada para a linguagem chamada vedāṅga [1] (conhecimento auxiliar). Estes estudos, de acordo com Robins, podem ser considerados sob três aspectos: teoria linguística geral e semântica; fonética e fonologia; gramática descritiva (ROBINS, 2004: 109).
Das obras linguísticas da época, a gramática Aṣṭādhyāyī (Oito Capítulos) de Pāṇini, este conhecido gramático do século IV a.C., foi o primeiro tratado científico de uma língua, e chegou a ser considerada por Bloomfield como “um dos maiores monumentos da inteligência humana” (BLOOMFIELD, 1984: 11). As regras são todas organizadas em pequenas sentenças, sūtra ou “fio”, que surpreendem por tamanha economia com que conseguem formular suas afirmações linguísticas. Da obra de Pāṇini e da vyākaraṇa saíram conceitos como o termo fonológico sandhi (usado por Mattoso Camara Jr. para explicar certos casos do português), o desenvolvimento de processos de formação de palavras, o estudo morfofonêmico[2], e a representação zero de um elemento ou categoria - familiar aos linguistas modernos.
O processo descritivo de sua gramática, mais de dois mil anos depois, influenciou as análises que Saussure fez de certas palavras gregas, alguns importantes trabalhos do Bloomfield[3], e também sabe-se que a gramática gerativo-transformacional criada por Chomsky teve sua influência paniniana, porque em seu “trabalho de descrição, as regras são de tal modo ordenadas, que as últimas levam sempre em conta os resultados das primeiras. Isto permite obter maior economia no processo descritivo, o que era um dos objetivos primordiais da obra de Pāṇini” (ROBINS, 2004: 188).[4]
Por aqui, no ambiente de língua portuguesa, as influências não foram poucas e podemos destacar a contribuição dada por Julio Ribeiro (1911) de “inaugurar entre nós o uso do método histórico-comparativo na descrição do vernáculo”. (CAVALIERE, 2000; 52) Este gramático alinha-se aos trabalhos e métodos criados por William Dwight Whitney, de quem, por exemplo, tira a definição que abre sua "Grammatica portugueza", “Grammatica é a exposição methodica dos fatos da linguagem”, e propõe, com base nas obras do Whitney, mudanças estruturais: “Em sintonia com essa definição e na esteira da proposta descritiva de Becker e Whitney, Ribeiro subdivide a sintaxe em léxica e lógica, aquela atinente ao estudo das palavras inter-relacionadas na oração, esta ocupada do estudo da estrutura das orações” (CAVALIERE, 2000; 54)
Por sua vez, o filólogo e linguista Whitney, reconhecidamente, foi buscar em Pāṇini as bases para fundamentar o seu trabalho, chegou a escrever uma gramática de sânscrito ("Sanskrit Grammar") e ainda uma lista das raízes verbais do sânscrito com suas conjugações inspirada claramente na obra "Dhātupāṭhaḥ" (Reunião das raízes verbais), de Pāṇini; obra de grande envergadura e até hoje muito estudada e difundida. E “o elenco de obras filológicas produzidas a partir do trabalho inaugural de Julio Ribeiro cria os fundamentos da moderna gramática brasileira, nos moldes em que, mutatis mutandis, até hoje se organizam” (CAVALIERE, 2000: 55). Logo depois surgem a "Grammatica descriptiva", de Maximino Maciel, “cujo exitoso curso na práxis pedagógica conferiu-lhe onze edições conhecidas, a última em 1931″ e uma obra como a "Grammatica expositiva", de Eduardo Carlos Pereira, “exemplo típico de um trabalho pautado no método histórico-comparativo com algum legado da escola metafísica de Port Royal” (CAVALIERE, 2000: 57). O primeiro chegou a traçar comentários à obra de Franz Bopp, um dos responsáveis pelo surgimento da gramática comparada e da ciência lingüística, e eminente professor de sânscrito. Esta influência na língua portuguesa não pára por aí, tem o renomado Said Ali, que por sua vez foi colher nas teorias de um Berthold Delbrück, indo-europeísta cujo trabalho "Vedic syntax" chegou a arrancar elogios de Whitney, os elementos para sua obra; bem como as influências das obras de Max Müller, reconhecido estudioso do sânscrito, nesses gramáticos e linguistas do português. Portanto, temos as influências da obra de Pāṇini, direta ou indiretamente, não somente restritas às citações dos compêndios historiográficos, mas implícitas quase em toda trajetória dos estudos gramaticais e linguísticos do português.
Embora mais relacionada aos estudos histórico-comparativos e filológicos, a obra de Pāṇini já mostrou ter um universo de possibilidades nos estudos sincrônicos. E todos já atestados por grandes nomes da tradição linguística.
Sem deixar de lado a abordagem diacrônica, este projeto de mestrado tem a intenção de estudar “os métodos e as concepções” da gramática paniniana em particular, sua relação com as últimas teorias da Linguística, bem como mostrar as influências que a obra de Pāṇini gerou, direta e indiretamente, nos estudos gramaticais e linguísticos da língua portuguesa. Um projeto de estudos gramaticais, com a singularidade de se referir a uma das primeiras obras científicas da área, estudada sincrônica e diacronicamente, de forma que se possa demonstrar sua ligação com a língua portuguesa.[5] Quando possível, mostrar-se-á esquematicamente como seria e o que compreenderia a descrição da gramática portuguesa nos moldes paninianos, assim como a tradução, direta do sânscrito, das principais sentenças (sūtra) usadas na pesquisa.
2. Justificativa.
Ao longo de mais de dois séculos, desde que foi conhecida pelos europeus, a obra de Pāṇini vem influenciando direta e indiretamente os estudos da Linguística. Por aqui, no Brasil, fomos buscar na obra de J. Mattoso Camara Junior a dica para pesquisar esta relação dos estudos de língua portuguesa com a obra paniniana. Estudar uma obra desta envergadura, unindo-a à lingüística mais moderna e aos estudos de língua portuguesa, é procurarmos a base do que chamam hoje de ciência da linguagem. No caso de desenvolver uma pesquisa como esta na UFF, a maior justificativa seria o fato de empreendermos, pela primeira vez aqui no Rio de Janeiro, um estudo linguístico com esta especificidade e importância, não só para os estudos históricos da linguagem, mas também para as futuras pesquisas e análises teóricas dos estudos gramaticais, visto que a obra a ser pesquisada é ainda base para uma das últimas teorias linguísticas, no caso a gramática gerativa, e de grande importância para os estudos históricos e descritivos da linguagem.
3. Objetivo.
Numa época onde os estudos descritivos se focam mais nas descobertas recentes da linguística, distanciando-se aos poucos de suas bases, nossa pesquisa vem suprir a necessidade de colocar em vista estas bases e sua relação com todo o tipo de estudo descritivo e histórico da linguagem. Nossos objetivos específicos são: primeiro, a análise da obra paniniana (métodos e concepções); segundo, mostrar sua influência nos estudos gramaticais e linguísticos do português; terceiro, sua relação com as últimas teorias linguísticas.[6] Destes três objetivos principais, surgem dois outros, mais secundários, de mostrar como seria a descrição da gramática de língua portuguesa nos moldes paninianos, e a tradução do sânscrito das principais sentenças da obra estudada.
Referências:
[1] Educação comparada ao trivium do Ocidente Medieval.
[2] “As descrições de Pāṇini compreendem a separação e a identificação de raízes e afixos, o que direta-mente inspirou o conceito de morfema da análise gramatical hodierna.” (Robins, p.117)
[3] Seu ensaio On Some Rules of Panini (1927). “Considera-se que o trabalho de Bloomfield Menomini morphophonemics foi buscar na obra de Pāṇini sua metodologia e inspiração.” (Robins, p.117)
[4] “De fato, minha tese de graduação foi uma gramática no estilo de Pāṇini, feita 2.500 anos antes (…)” (Noam Chomsky, entrevista, Mana vol.3 n.2 Rio de Janeiro Out. 1997).
[5] A pesquisa insere-se dentro das áreas de estudos descritivos da língua portuguesa e de historiografia da linguística, esta tanto geral quanto portuguesa.
[6] Nos objetivos específicos está implícito uma metodologia proposta pelo próprio Mattoso Camara, antes pesquisamos os métodos e concepções da obra de Pāṇini, depois sua influência nos estudos portugueses e por fim a relação com as teorias linguísticas, principalmente Sausurre, Bloomfield e Chomsky.
Retirado de Leonardo Valverde.
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