terça-feira, 31 de agosto de 2010
Parole, parole...
Por Leandro Oliveira
Já que Talyta termina seu mestrado distinguindo o talento do esforço, e Julio comenta en passant sobre as agruras sádicas das bancas de doutorado, vou também falar de educação. Um sistema mais hardcore, para não decepcionar aqueles que me conhecem e sabem que não sou dado a gentilezas.
Por isso, entro de sola no Medievo. E, pois não, o sistema educacional da Idade Média revela surpresas extraordinárias - não para o leitor habitual do Ocidentalismo é claro, mas certamente para boa parte do público brasileiro. No país tropical, tão bonito por natureza, o grande público ainda está acostumado - e percebo isso nas aulas que dou pelo interior de São Paulo - a entender o pensamento do Medioevo como o da "era das trevas"...
O que, aliás, é irônico, estando o Brasil com a educação iluminada que estamos.
"Tudo isso foi documentadamente desmentido, mas pouco importa: os lugares-comuns emocionais são tanto mais indestrutíveis quanto melhor servirem aos interesses dos ativistas políticos", nos ensinava o saudoso Wilson Martins. Então é assim. Hoje as escolas de elite estão mais preocupadas com o ensino de história de uma África idílica e inexistente conquanto reverbere maledicências ignorantes sobre a Europa. Curioso que não deveria sê-lo, mesmo estando nós orgulhosamente mestiços e ecléticos, pois já na primeira metade do século XX, scholars como Mortimer Adler, Robert Maynard Hutchins e Chäim Perelman, cada um a sua maneira, entenderam e advogaram sobre a relevância e atualidade das práticas de ensino medievais não por chauvinismo, eurocentrismo ou qualquer dessas patacoadas. Não por conservadorismo - embora boa parte deles fossem conservadores - mas por sua relevância inquestionável.
Mas onde está a relevância, bicho?
Como assim "onde está"? Dorothy Sayers em seu famoso artigo The lost tools of learning de 1947 (!) já mostrava que a primeira parte das chamadas Artes Liberales condensava muito mais que matérias curriculares como entendemos hoje, mas disciplinas que "ensinavam a aprender". Sofisticado? Sim, e sem "construtivismos" idiotizantes.
segunda-feira, 30 de agosto de 2010
All that jazz
O Smalls Jazz Club fica na 183W 10th Street, no Greenwich Village em Manhattan. Mas quem está sem tempo de fazer esta visitinha a Nova Iorque consegue ouvir os grupos de jazz que por lá se apresentam pelo site do clube - que transmite ao vivo as apresentações e guarda um enorme acervo com o aúdio das performances disponíveis aos visitantes.
Quem mandou o link foi Norberto Freund. Fica o agradecimento. Espero que vocês desfrutem como eu!
sábado, 28 de agosto de 2010
Oasis e o jazz...
Por Leandro Oliveira
O "Jazz", se preciso fosse uma definição, seria antes de tudo o gênero baseado na permanente reestruturação em performance de estruturas musicais reconhecíveis - reestruturadas a partir de alguns parâmetros mais ou menos herméticos e que devem, por um lado, à permanente inserção e reconhecimento dos standards originais, por outro à inventiva criatividade disponibilizada pela mistura de duas "tecnologias" distintas: a partitura e o fonograma.
Ufa!
Pois se a tradição da música clássica entrou em colapso foi exatamente naqueles sub-gêneros específicos onde o suporte escrito era mais do que essencial e impossível de dissociação da performance. Por isso é que no século XX os gêneros mais elaborados como a Sinfonia, por exemplo, entram em franco declínio - como gênero ela é intrinsicamente ligada às estruturas "discursivas" do século XVIII ou (com Beethoven a reinventando) à mentalidade de construção "orgânica" que será tão cara à estética romântica.
Assim como as técnicas e demandas do discurso público se tornam paulatinamente obsoletas, a estrutura da Sinfonia se torna crescentemente esotérica. No século XX seu único defensor regular de alto nível foi Shostakovich - que se vale de forma bem particular do gênero a partir dos destroços deixados por Mahler e Sibelius.
sexta-feira, 27 de agosto de 2010
Você tem talento?
Algumas pessoas transpõem montanhas com aparente facilidade, outras sequer conseguem organizar o equipamento necessário para a escalada. O fato é que cada um de nós é talentoso para algumas coisas, e evidentemente inapto para tantas outras... Talyta Carvalho retorna explorando um pouco a questão do que é ser genial, ter algum talento e - finalmente - cortar um dobrado para fazer coisas minimamente decentes.
Por Talyta Carvalho
Sou mestranda em fase final de pesquisa. Ora, o que isso quer dizer? Quer dizer apenas que experimento uma mistura de angústia profunda - em razão dos prazos apertados, da cobrança pessoal para fazer um bom trabalho, e etc. – e uma eminência de felicidade intensa – afinal, o fim se aproxima, e ao que tudo indica, sobreviverei!
Ressalva: eu sinto esse mix de sentimentos somente quando não estou em dinâmica de surto, o que acontece com uma freqüência, digamos... ah, deixa pra lá!
Sofro do que os manuais de psiquiatria chamam de TOC? Não consigo parar de reescrever meu texto porque sou vítima de uma insatisfação intelectual crônica; por isso, sempre acho que o texto pode melhorar e fico reescrevendo-o até que uma boa alma me force a parar, (quando não é uma boa alma a cumprir esse papel quem o assume é própria Pontifícia que me manda recados singelos, cujo conteúdo é algo como “sua bolsa acabou, portanto, entregue logo essa dissertação”, mas, evidentemente, escrito com muito mais delicadeza do que eu sou capaz de expressar.)
A pergunta que o leitor deve estar se fazendo, provavelmente, é: “Por que diabos essa garota sofre de insatisfação intelectual crônica consigo mesma”? Respondo: Porque eu não sou talentosa.
Quem causa a Causa Primeira?
Joel Pinheiro da Fonseca é um wunderkind. Seu blog "Terra à Vista" é uma boa ilustração de como mesmo nos dias de hoje um jovem pode discutir filosofia e economia com os pés no chão. E pode? Certamente sim, e Joel parece não se fazer de rogado. Em seu texto de estréia para Ocidentalismo.org ele mostra que determinadas agruras do pensamento podem aspirar alturas enormes - intransponíveis, ousaria dizer - como, por exemplo, a que versa sobre a existência de Deus.
A pergunta sempre aparece nas conversas do dia-a-dia. Alguém dá o argumento da causa primeira para provar que Deus existe e o outro retruca: “E quem causou Deus?”. Minha conclusão: o argumento foi ou mal entendido, ou mal apresentado.
Tudo o que existe precisa de uma causa. Portanto, para não se regredir ao infinito, é preciso uma causa primeira. Essa causa primeira é Deus. Convencidos? Eu não estou. Se tem uma coisa que esse argumento não prova é a existência de Deus. O ateu sagaz já percebeu: “Bom, se tudo precisa de uma causa, então Deus também precisa. E se nem tudo precisa de uma causa, por que o universo precisaria?” Vamos esclarecer melhor o ponto, pois nele escorregam muitos apologetas. Bem sei que nenhum ateu sairá da discussão convencido e rumo à igreja; mas o fortalecimento da base racional da fé tem sua importância nesse processo.
quinta-feira, 26 de agosto de 2010
Piano na Sala São Paulo
Na Sala São Paulo este fim-de-semana, além do concerto do vídeo abaixo - que nas mãos de Arthur Rubinstein se torna a coisa mais extraordinária que existe - teremos "Jeux" de Claude Debussy, feito para uma coreografia controversa de Nijinsky, e a primeira parte da "Suíte Lemminkäinen" de Jean Sibelius. Ufa!
Post scriptum de 28 de agosto:
O Trpceski é assombroso, e como sei que muitos curtiram o rapaz, coloco o link para seu vídeo executando o mesmo concerto aqui.
Post scriptum de 28 de agosto:
O Trpceski é assombroso, e como sei que muitos curtiram o rapaz, coloco o link para seu vídeo executando o mesmo concerto aqui.
quarta-feira, 25 de agosto de 2010
Uma reflexão
The two greatest moral catastrophes of the twentieth century, wrought by Lenin and Hitler, were perverse effects of the Enlightenment. Lenin and Hitler were creatures of the Enlightenment not in the sense that they were enlightened, of course, but in the sense that they believed they had the right and the duty to act in accordance with their own unaided deductions from their own first principles. Everything else they regarded as sentimentality. Lenin preached no mercy to the non-proletarian, Hitler none to the Jew. The truth of their theories, supposedly rational and indubitable, was more evident to them, more real in their minds, than the millions killed as a consequence of those theories. If a syllogism ended in a command to commit unspeakable evil, you did not doubt the premises or the argument but obeyed the command.
Theodore Dalrymple, aqui.
Theodore Dalrymple, aqui.
Uma outra Gramática
O estudo da Gramática de uma língua - qualquer língua - permite pequenas epifanias. Os meandros que justificam nossa forma de falar são, antes, portas para entendermos outras formas de falar aquilo que entendemos - e o que é viver senão nomear as coisas do mundo, e nomeando-as, relacionarmo-nos com elas? Nosso Vírgilio orientalista, Leonardo Valverde, nos apresenta uma visão fascinante do estudo da Gramática - no caso, partindo do sânscrito e relacionando-o com outros curiosos elementos da história do estudo desta ciência no Português.
Por Leonardo Valverde
कवर्गादिषु माहेश्वर्याद्याः पशुमातरः
kavargādiṣu māheśvaryādyāḥ paśumātaraḥ
Māheśvarī e etc., mães das criaturas, estão nas consoantes. (śiva sūtra, 3.20)
kavargādiṣu māheśvaryādyāḥ paśumātaraḥ
Māheśvarī e etc., mães das criaturas, estão nas consoantes. (śiva sūtra, 3.20)
kavargādiṣu - nas consoantes (da letra “k” em diante);
māheśvaryādyāḥ - Māheśvarī e etc.;
paśumātaraḥ - mães das criaturas.
Este é o sūtra 20 da terceira parte do śiva sūtra.
Assim como em outras línguas, o sânscrito também tem um simbolismo em suas letras e alfabeto, na forma como se apresentam, na estrutura, na ordenação das palavras, em sua gramática. A chamada vyakāraṇa, ou gramática, é uma das três disciplinas dedicadas à língua (as outras: śikṣā, fonética; e nirukta, etimologia) da educação tradicional védica, ou vedāṅga (que se parece, nesta parte, com a educação do trivium na época medieval - creio eu: hoje mais atual e necessária do que nunca).
Quando comecei meus estudos de sânscrito seriamente em 1998 (já conhecia a língua e era fascinado por ela desde 95), depois de ter sido alfabetizado por Arthur Perez, fui me embrenhar na gramática tradicional. Na época, como o Arthur ensinava através de uma gramática ocidentalizada (e boa) de um padre jesuíta (gramática conhecida do estudante indiano, A Sanskrit Manual, de R. Antoine, S.J.), eu saí da pequena turma e fui procurar estudar da forma como há anos se estudava o sânscrito, do modo tradicional. Foi aí que eu tive a tremenda sorte (!) de receber dois conselhos; o primeiro, veio antes mesmo de começar: de estudar o sânscrito tradicionalmente; o segundo, veio logo depois que eu comecei: me dedicar a cada etapa como se fosse a mais importante. Ambos os conselhos vieram respectivamente do Swami Purushatraya e do Yadu Dasa Brahmachari, todos os dois responsáveis pela tradução e comentários da vyakāraṇa de Jīva Gosvāmī - trabalho de um primor inigualável e inédito (para a língua inglesa) até aquele momento (1996). Um deles, o Yadu, é praticamente um vyakāraṇa acārya (mestre de gramática), e fala o sânscrito fluentemente.
terça-feira, 24 de agosto de 2010
Prêmio Macunaíma - Agosto 2010
Abrimos a eleição para o Prêmio Macunaíma do mês de agosto! Foram muitos os potenciais candidatos. Depois de uma árdua discussão, nosso Comitê Eleitoral realizou sua escolha. Vamos a eles, nossos heróis adoráveis:
1) Não bastasse a desfaçatez de fazer o filme "Hugo Chávez, o Filho do Brasil" (copydesk, confere aí se é isso mesmo!), Oliver Stone entrou sem visto no Brasil e voltou para os EUA todo cheio de pompa, acusando - ahimé! - o domínio da mídia sionista como responsável pela descontextualização histórica de Adolph Hitler (para saber mais, clique aqui e aqui). Posteriormente Stone pediu desculpas, mas ficamos em dúvida se foi por medo de deixar de ser um queridinho da mídia sionista ou por sinceridade.
2) Outra figura do panteão de nossos heróis contemporâneos a despontar com tudo nesta premiação inaugural é a modelo, cotista e menina má Naomi "Soup" Campbell. Naomi jura de pés juntos não ter "nada a ganhar" mentindo no Tribunal Especial para Serra Leoa. Isso é claro - a ganhar nada, mas tem tudo a perder contando a verdade! Como sempre acontece entre o beautiful people, ela não lembra quem a presenteou com duas ou três "pedras pequenas que pareciam sujas" que valem alguns milhares de dólares. A Mya Farrow jura que foi o galanteador Charles Taylor. Naomi sabe que só porque o sujeito segue em julgamento em Haia por crimes de guerra e crimes contra a humanidade, isso não fará dele automaticamente um cara mal: afinal, ela já namorou o Myke Tyson!
3) O terceiro candidato é o neo-niilista Robert Crumb. Na FLIP, comentou ter vergonha de ser americano, e sentir nojo de seres humanos - também, vamos combinar, Paraty é meio insalúbre mesmo... O cartunista pensou que era Naomi Campbell, e se tornou um desagradável na nossa mais importante Festa Literária. Entrou para os anais do evento por sair gritando no badalado encontro na casa de Joãozinho Príncipe "se você é príncipe eu sou Rei - estou nú, estou nú!".
A sorte está lançada! Quem será nosso herói do mês? Façam suas apostas.
Razão, pois não...
Por Leandro Oliveira
O princípio do livro mais decisivo da filosofia moderna é promissor ou não?
Não resta dúvida de que todo o nosso conhecimento começa pela experiência; efetivamente, que outra coisa poderia despertar e pôr em ação a nossa capacidade de conhecer senão os objetos que afetam os sentidos e que, por um lado, originam por si mesmos as representações e, por outro lado, põem em movimento a nossa faculdade intelectual e levam-na a compará-las, ligá-las ou separá-las, transformando assim a matéria bruta das impressões sensíveis num conhecimento que se denomina experiência? Assim, na ordem do tempo, nenhum conhecimento precede em nós a experiência e é com esta que todo o conhecimento tem o seu início.
Se, porém, todo o conhecimento se inicia com a experiência, isso não prova que todo ele derive da experiência. Pois bem poderia o nosso próprio conhecimento por experiência ser um composto do que recebemos através das impressões sensíveis e daquilo que a nossa própria capacidade de conhecer (apenas posta em ação por impressões sensíveis) produz por si mesma, acréscimo esse que não distinguimos dessa matéria-prima, enquanto a nossa atenção não despertar por um longo exercício que nos torne aptos a separá-los.
Immanuel Kant, A Crítica da Razão Pura (tradução de Manuela Pinto dos Santos e Alexandre Fradique Morujão)
O princípio do livro mais decisivo da filosofia moderna é promissor ou não?
Não resta dúvida de que todo o nosso conhecimento começa pela experiência; efetivamente, que outra coisa poderia despertar e pôr em ação a nossa capacidade de conhecer senão os objetos que afetam os sentidos e que, por um lado, originam por si mesmos as representações e, por outro lado, põem em movimento a nossa faculdade intelectual e levam-na a compará-las, ligá-las ou separá-las, transformando assim a matéria bruta das impressões sensíveis num conhecimento que se denomina experiência? Assim, na ordem do tempo, nenhum conhecimento precede em nós a experiência e é com esta que todo o conhecimento tem o seu início.
Se, porém, todo o conhecimento se inicia com a experiência, isso não prova que todo ele derive da experiência. Pois bem poderia o nosso próprio conhecimento por experiência ser um composto do que recebemos através das impressões sensíveis e daquilo que a nossa própria capacidade de conhecer (apenas posta em ação por impressões sensíveis) produz por si mesma, acréscimo esse que não distinguimos dessa matéria-prima, enquanto a nossa atenção não despertar por um longo exercício que nos torne aptos a separá-los.
Immanuel Kant, A Crítica da Razão Pura (tradução de Manuela Pinto dos Santos e Alexandre Fradique Morujão)
segunda-feira, 23 de agosto de 2010
Bem-vindo ao mundo low-cost
Por Pedro Gonzaga
Mas não espere afagos nem apertos de mão, estamos cansados. Graças ao nosso engenho, gerência diferenciada e, por que não dizer, magnanimidade, gente como você pôde finalmente experimentar os prazeres do mundo dos ricos: voar. Sanduíche? Tem graça. A barra de cereal que agora lhe oferecemos é o que permite o corte significativo no preço de nossas passagens. Sabemos muito bem quem você é. Conhecemos o seu tipo, esse ar arrogante de consumidor do passado. Ainda no check-in, não vai deixar um instante de evocar (com que finalidade além do tumulto?) o tempo dos seus pais, talheres de prata e poltronas amplas, comissárias simpáticas e lencinhos perfumados. Lugar marcado?
Mas não espere afagos nem apertos de mão, estamos cansados. Graças ao nosso engenho, gerência diferenciada e, por que não dizer, magnanimidade, gente como você pôde finalmente experimentar os prazeres do mundo dos ricos: voar. Sanduíche? Tem graça. A barra de cereal que agora lhe oferecemos é o que permite o corte significativo no preço de nossas passagens. Sabemos muito bem quem você é. Conhecemos o seu tipo, esse ar arrogante de consumidor do passado. Ainda no check-in, não vai deixar um instante de evocar (com que finalidade além do tumulto?) o tempo dos seus pais, talheres de prata e poltronas amplas, comissárias simpáticas e lencinhos perfumados. Lugar marcado?
sábado, 21 de agosto de 2010
How Liberty dies...
PALPATINE: In order to ensure our security and continuing stability, the Republic will be reorganized into the first Galactic Empire, for a safe and secure society.
(The Senate applauds.)
PADME: So this is how liberty dies, with thunderous applause . . .
Bons momentos com James Brown
Por Leandro Oliveira
Não sou purista - alguma graça há de ter em ser brasileiro. Acho que gosto é o que se discute (by whom?) e tomo o cuidado permanente de não considerar que amar canzone napolitane cantadas por Roberto Murolo e o Pli Selon Pli do Pierre Boulez fazem de ambos expressões da mesma grandeza: minhas simpatias e antipatias não podem - e Deus sabe como não! - ser critério para organizar o mundo. Sou muito falho para isso.
Então não me envergonho de quase ter uma epifania ouvindo as "Variações sobre um Tema de Haydn" de Brahms e, no dia seguinte, ouvir essa coisa extraordinária do James Brown que é a gravação "Doing it to Death". Extraordinária sim: o registro permite a preservação de alguns dos elementos mais caros à performance em qualquer tradição musical: espontaneidade e liberdade, timing, senso "esportivo"... É uma versão de treze minutos, uma espécie de jam-session funky para apresentação de sua banda.
Não sou purista - alguma graça há de ter em ser brasileiro. Acho que gosto é o que se discute (by whom?) e tomo o cuidado permanente de não considerar que amar canzone napolitane cantadas por Roberto Murolo e o Pli Selon Pli do Pierre Boulez fazem de ambos expressões da mesma grandeza: minhas simpatias e antipatias não podem - e Deus sabe como não! - ser critério para organizar o mundo. Sou muito falho para isso.
Então não me envergonho de quase ter uma epifania ouvindo as "Variações sobre um Tema de Haydn" de Brahms e, no dia seguinte, ouvir essa coisa extraordinária do James Brown que é a gravação "Doing it to Death". Extraordinária sim: o registro permite a preservação de alguns dos elementos mais caros à performance em qualquer tradição musical: espontaneidade e liberdade, timing, senso "esportivo"... É uma versão de treze minutos, uma espécie de jam-session funky para apresentação de sua banda.
sexta-feira, 20 de agosto de 2010
Alunos de Franca
Por Leandro Oliveira
Retornando de um dos cursos mais estimulantes que fiz no Projeto Itinerante da Orquestra Sinfônica do Estado de São Paulo, inicio a prometida postagem de links relacionados às nossas discussões.
Começo com um de meus preferidos, o vídeo que ilustra a peça de Philip Glass chamada Two Pages - dedicada a Steve Reich, um dos compositores citados no curso quando tratamos da cena contemporânea. O barato do vídeo é sua simplicidade - ele é feito com a própria partitura. Nada mais didático para entender alguns procedimentos técnicos da música de nosso tempo.
Retornando de um dos cursos mais estimulantes que fiz no Projeto Itinerante da Orquestra Sinfônica do Estado de São Paulo, inicio a prometida postagem de links relacionados às nossas discussões.
Começo com um de meus preferidos, o vídeo que ilustra a peça de Philip Glass chamada Two Pages - dedicada a Steve Reich, um dos compositores citados no curso quando tratamos da cena contemporânea. O barato do vídeo é sua simplicidade - ele é feito com a própria partitura. Nada mais didático para entender alguns procedimentos técnicos da música de nosso tempo.
Quando fui encomendado ao Gulag
Por Leandro Oliveira
Meyerhold foi um dos mais importantes teatrólogos do século XX. Era filiado ao partido bolshevik nos anos pós-revolução mas, em 1938, sua estética já não cabia nas diretrizes do realismo soviético. Foi enviado à prisão e torturado; ali confessou ser um traidor da pátria. Sua famosa carta à Molotov (no link em italiano) documenta a brutalidade de sua prisão, os detalhes da tortura a que foi submetido e como se viu obrigado a dizer o que não fez. Foi executado em data incerta do ano de 1940 e sua culpa foi revogada oficialmente anos mais tarde, em 1955.
No dia 5 de agosto do ano corrente, eu fui encomendado à retenção. Como imagino sempre deva acontecer em tais casos, estávamos à toa, divertíamos enquanto trabalhávamos; sabia, mas havia esquecido, que tais descontrações são os momentos mais perigosos para atos falhos. O programa apresentava o pungente "Réquiem" de Paul Hindemith. A peça fora criada para a morte de Roosevelt e a letra, retirada do poema When Lilacs Last in the Dooryard Bloom'd de Walt Whitman, era inspirada na morte de outro estadista norte-americano, Abraham Lincoln. Neste contexto, falando de arte para presidentes, o comentário era mais do que devido, flagrantemente espirituoso:
Nós temos o Barretão com o "Filho do Brasil".
quinta-feira, 19 de agosto de 2010
Estrela nos palcos
Por Leandro Oliveira
Esta semana o público de São Paulo terá a oportunidade de ouvir uma estrela de primeira grandeza da música clássica internacional, o violinista e maestro Pinchas Zukerman. Será na Sala São Paulo, na temporada oficial da Osesp.
Zukerman era o caçula de um grupo de amigos talentosíssimos que juntava Daniel Barenboim, Jacqueline Du Pré, Itzhak Perlman e Zubin Mehta e, em algum momento da década de sessenta, tornaram-se tão influentes na estonteante cena Nova Iorquina que, apadrinhados por Isaac Stern, receberam o apelido carinhoso e irônico de kosher nostra - "máfia" musical batizada sobretudo em referência à ascendência judaica e ao filosemitismo de todos eles (Mehta é desde a década de setenta, diretor musical da Filarmônica de Israel).
Esta semana o público de São Paulo terá a oportunidade de ouvir uma estrela de primeira grandeza da música clássica internacional, o violinista e maestro Pinchas Zukerman. Será na Sala São Paulo, na temporada oficial da Osesp.
Zukerman era o caçula de um grupo de amigos talentosíssimos que juntava Daniel Barenboim, Jacqueline Du Pré, Itzhak Perlman e Zubin Mehta e, em algum momento da década de sessenta, tornaram-se tão influentes na estonteante cena Nova Iorquina que, apadrinhados por Isaac Stern, receberam o apelido carinhoso e irônico de kosher nostra - "máfia" musical batizada sobretudo em referência à ascendência judaica e ao filosemitismo de todos eles (Mehta é desde a década de setenta, diretor musical da Filarmônica de Israel).
quarta-feira, 18 de agosto de 2010
O Castelo
Isn’t it strange how this castle changes as soon as one imagines that Hamlet lived here? As scientists we believe that a castle consists only of stones, and admire the way the architect put them together. The stones, the green roof with its patina, the wood carvings in the church, constitute the whole castle. None of this should be changed by the fact that Hamlet lived here, and yet it is changed completely. Suddenly the walls and the ramparts speak a different language (...). Yet all we really know about Hamlet is that his name appears in a thirteenth century chronicle (...) But everyone knows the questions Shakespeare had him ask, the human depths he was made to reveal, and so he too had to be found a place on earth, here in Kronberg.
Niels Bohr (1885 - 1962)
terça-feira, 17 de agosto de 2010
...no, you can't!
Continuação de "You can't have it all".
Há tempos o feminismo enche jovens mulheres de falsas expectativas. A pregação feminista ensina que as mulheres têm sido maltratadas desde os primórdios da humanidade. Enquanto movimento social, o feminismo prega que uma sociedade justa é aquela em que homens e mulheres são tratados igualmente em todas as circunstâncias, muito embora seja razoável pensarmos que devam sim ser considerados de forma diferentes (pequeno adendo a este respeito: duvido que alguma feminista iria querer igualdade caso estivesse presente no naufrágio do Titanic e não houvesse lugar para todos no último bote de salvação. Tivesse o Titanic afundado em tempos pós-revolução feminista, certamente a maioria dos sobreviventes não seria composta de mulheres – aliás, obrigada feminismo por ter nos legado também a morte do cavalheirismo e da gentileza!); enquanto movimento econômico ensina que a verdadeira realização da mulher só pode ser encontrada no trabalho pago.
Deve ficar claro ao leitor que há uma diferença entre feminismo e feminino. O feminismo pode ser também chamado, em razão de sua missão, de “movimento de liberação das mulheres”. "Liberação de quê?", indagará o leitor. Liberação daquilo que se julgou oprimir e diminuir a mulher, a saber: o casamento, o marido, os filhos, o lar. Para uma feminista, exercer essas funções colocava a mulher em relação de inferioridade ao homem, e legitimava a dominação masculina. Para citar Betty Friedan, o lar se configuraria como um “campo de concentração confortável”.
segunda-feira, 16 de agosto de 2010
You can't have it all...
Não poderíamos jamais deixar de polemizar com algumas agruras comportamentais dos séculos XX e XXI. Se hoje é normal quase tudo e se é fato que de perto ninguém normal, estamos, para dizer o mínimo, em uma encruzilhada. Afinal queremos tudo e podemos tudo, mas não seria o comportamento do just do it mais um dos tantos "ismos" que compõem este aguerrido e querido "totalitarismo da vontade" que nos assola? Neste texto, Talyta Carvalho chama para a briga um dos tantos mal-entendidos comportamentais do século XX: o feminismo engajado.
Por Talyta Carvalho
Passei uma semana intensa de estudos, daquelas em que atravessamos madrugadas em claro e nas quais manter-se disposto só é uma possibilidade real quando ingerimos doses cavalares de café e cigarros. Nada de muito grave. Grave mesmo foi perceber o estado em que se encontravam minhas unhas: não havia nelas mera sombra do cuidado que um dia já espelharam.
Decidi que o mestrado deveria ser colocado em suspenso, mesmo que por apenas uma tarde, afinal, era patente que eu me lembrasse de que era mulher. Logo após o almoço, corro para aquele templo do bem-estar feminino, repleto de encanto, cappuccinos e mimos, chamado salão de beleza. Enquanto fazia as minhas patinhas, já me sentindo muito feliz e satisfeita em minha própria pele, noto uma mulher ao meu lado, também fazendo as suas. A única diferença entre nós eram os acessórios que portávamos: eu trazia comigo uma bolsa, dessas que qualquer mulher ligada em moda gostaria de exibir, e um celular do qual não desgrudo; ela trazia consigo uma bolsa igualmente desejável, e... um bebê. Sim, enquanto eu não desgrudava do meu aparelho celular aguardando, ansiosamente, algum sinal de vida no bbm, minha colega não desgrudava daquela mini-pessoa rosinha e gordinha, que ao contrário do meu celular, correspondia todas às suas expectativas e lhe era somente sorrisos gratuitos.
Eu, obviamente, fiquei babando mais do que o próprio bebê ao presenciar aquela relação tão poderosa que acontecia bem diante dos meus olhos. Não pude evitar minha curiosidade e, entre uma bebericada de cappuccino e outra, tomo coragem e inicio uma conversa com a recente mamãe. Pergunto a ela a idade daquela fofura, e ela responde que a fofura em questão não contava mais de seis meses.
Não foi necessário muito esforço de minha parte para que aquela mulher, intensamente apaixonada por sua cria, começasse a falar o quanto estava realizada e feliz. Sim, as palavras são justamente essas: realizada e feliz. Cara leitora feminista: sinto muito ser eu a pessoa a lhe informar, mas a maternidade não é um meio de dominação e opressão de uma sociedade patriarcal. E quanto mais cedo as mulheres perceberem esse engodo, melhor.
A minha colega de salão não era uma mulher sem oportunidades, reprimida, e com poucas opções acerca do que fazer de sua vida. Muito pelo contrário, durante nossa conversa, descobri que ela tinha 32 anos, estudou em bons colégios, cursou Arquitetura na USP, e que possuía um escritório próprio montado com a ajuda do marido. Ela ainda não voltara ao trabalho desde o nascimento do bebê, e afirmou que não voltaria até que a criança começasse a freqüentar a escola, pois queria estar 100% presente durante o seu crescimento. Indaguei o porquê dessa decisão, e a provoquei com interrogações como: “Você não acha que sua carreira será profundamente afetada por essa decisão? Que seu crescimento profissional será prejudicado?”
Ela, serena, responde que eu só seria capaz de entender a grandeza daquela experiência e a razão de tudo o mais ter se tornado, subitamente, secundário no dia em que também me tornasse mãe. Penso que ela está absolutamente certa.
Há tempos o feminismo enche jovens mulheres de falsas expectativas. A pregação feminista ensina que as mulheres têm sido maltratadas desde os primórdios da humanidade. Enquanto movimento social, o feminismo prega que uma sociedade justa é aquela em que homens e mulheres são tratados igualmente em todas as circunstâncias, muito embora seja razoável pensarmos que devam sim ser considerados de forma diferentes (pequeno adendo a este respeito: duvido que alguma feminista iria querer igualdade caso estivesse presente no naufrágio do Titanic e não houvesse lugar para todos no último bote de salvação. Tivesse o Titanic afundado em tempos pós-revolução feminista, certamente a maioria dos sobreviventes não seria composta de mulheres – aliás, obrigada feminismo por ter nos legado também a morte do cavalheirismo e da gentileza!); enquanto movimento econômico ensina que a verdadeira realização da mulher só pode ser encontrada no trabalho pago.
Deve ficar claro ao leitor que há uma diferença entre feminismo e feminino. O feminismo pode ser também chamado, em razão de sua missão, de “movimento de liberação das mulheres”. "Liberação de quê?", indagará o leitor. Liberação daquilo que se julgou oprimir e diminuir a mulher, a saber: o casamento, o marido, os filhos, o lar. Para uma feminista, exercer essas funções colocava a mulher em relação de inferioridade ao homem, e legitimava a dominação masculina. Para citar Betty Friedan, o lar se configuraria como um “campo de concentração confortável”.
Já o que é feminino é de outra ordem, totalmente diversa. Uma mulher feminina (não feminista) nos tempos atuais é aquela que aprecia ser mulher em todas as suas particularidades e diferenças, que está ciente de que pode realizar-se em diversas carreiras de sua opção, inclusive a carreira doméstica de mãe e esposa. Sei que não estou sendo original, muito antes de mim, mulheres como Phyllis Schlaflly e Carolyn Graglia, por exemplo, já haviam dito o mesmo. De fato, pode-se encontrar lucidez em toda parte, até mesmo entre as feministas: para citar apenas duas sugiro Naomi Wolf e Susan Pinker (link fechado para assinantes UOL).
O que minha colega de salão percebeu foi a urgência de estar perto e cuidar de seu bebê por todo tempo que fosse possível. Talvez, o que ela pretenda evitar seja o já tão batido arrependimentos das mães que se focaram em suas carreiras, e por isso, precisaram entregar seus filhos aos cuidados de babás e creches. De fato, no momento derradeiro ninguém pensa “Eu gostaria de ter passado mais tempo no trabalho”. O que a maternidade traz é um apelo milenar cujo conteúdo não trata somente da criança precisar da mãe, mas também da mãe precisar da criança. E isso está além de qualquer suposta opressão social. Culpem Deus... ou Darwin, tanto faz. Mas que é assim é!
Evidente que não estou propondo uma revolução feminista ao contrário, tampouco está se dizendo aqui que todas as mulheres devam abandonar suas carreiras por todo sempre para serem mães. Apenas proponho que as mulheres de hoje, principalmente as mais jovens, exerçam sua faculdade reflexiva e ajam com ceticismo mediante propostas feministas falaciosas que fazem crer ser possível ter tudo depois de obter sucesso profissional. O fato é que muito provavelmente o mundo não será seu, e escolhas deverão ser feitas a respeito do conflito “carreira X maternidade”.
O problema da escolha não está no que você escolherá para si propriamente, mas sim, no que escolherá abrir mão.
Por Talyta Carvalho
Aprendendo a pensar?
Os vários processos de raciocínio que são usados para o conhecimento, como tais não são, estritamente falando, verdadeiros ou falsos. São apenas corretos ou incorretos. Um falso silogismo, por exemplo, pode ser construido por três assertivas perfeitamente verdadeiras: "toda árvore perece após um certo tempo; 'árvore' é um som; logo, todo som perece após um certo tempo." Cada um dos membros deste suposto silogismo é verdadeiro: há nada estritamente falso ou não-verdadeiro sobre eles. O "silogismo" é defeituoso como um processo de raciocínio simplesmente porque é incorreto, construido de forma errada: as partes embora verdadeiras não se encaixam, não estão efetivamente relacionadas.
Walter J. Ong. "The Presence of the Word". Página 151 da edição de 1981 publicada pela First University of Minnesota Press.
Walter J. Ong. "The Presence of the Word". Página 151 da edição de 1981 publicada pela First University of Minnesota Press.
domingo, 15 de agosto de 2010
Afinando os ouvidos
Sei que aquilo que fazemos nunca é nosso mérito exclusivo. Como diz Borges em uma introdução magistral para um de seus livros, a beleza é algo trivial e não deixa de ser mero acaso que ele seja o autor e nós os leitores daquelas suas maravilhas. Apenas os erros são nossos. De qualquer maneira, não poderia deixar de ficar feliz por ter um trabalho tão gratificante como o "Falando de Música" da Osesp reconhecido pelas publicações da grande mídia. Abaixo o início da matéria da Veja São Paulo desta semana. Ao final o link para a íntegra.
Por Pedro Ivo Dubra
“Vou acabando por aqui para não tomar o tempo da sopinha de vocês”, diz o professor de história da cultura Leandro Oliveira. Assim, o carioca, também compositor e maestro, encerra mais uma palestra da série Falando de Música. Criado pela Orquestra Sinfônica do Estado em 2008, o projeto consiste em dar explicações sobre a vida e a obra dos compositores que serão interpretados no dia. “A ideia é transmitir referências para a escuta, evitando um jargão muito técnico”, define ele.
Para participar, basta chegar à Sala São Paulo uma hora e quinze minutos antes do espetáculo e ter o ingresso da apresentação da sinfônica (as séries de câmara e dos concertos matinais aos domingos não estão incluídas). Entre 19h45 e 20h30 do último dia 6, Oliveira discorreu sobre o austríaco Franz Schubert (1797-1828) e o alemão Paul Hindemith (1895-1963).
Na hora do concerto — a récita começou às 21 horas —, o tempinho gasto antes da sopa, do cafezinho ou do suco de maracujá com gengibre se mostra útil. As cerca de setenta pessoas que haviam ocupado as cadeiras dispostas no hall do térreo batizado de Estação das Artes dispunham de informações que boa parte da plateia desconhecia (...)
Para ver a matéria completa na Veja São Paulo desta semana, clique aqui.
WOLFIANAS Nº 1 - Sejamos enfáticos
...though I do not wish to wish these things...
(T.S. Eliot)
(T.S. Eliot)
Por Eduardo Wolf
Li certa feita Harold Bloom dizer, em tom de dica para os leitores, que era preciso abdicar de toda militância, pois sempre haveria muito para ler e pouco tempo para fazê-lo. Nunca concordei tanto com uma tese; nunca fui tão incapaz de praticá-la. Mea culpa, mas nem tanto. Temperamento e personalidade – elementos de nossa vida de cuja existência os gregos sabiam tão bem – podem explicar um pouco do caso. Quanto ao resto, a explicação fica por conta deste imenso quintal da nossa vida pessoal a que chamamos realidade. E a realidade, por vezes, tem força convocatória. No meu caso – e no caso dos amigos que escrevem no ocidentalismo.org – a força desse apelo da realidade se fez sentir de variadas formas.
Quer dizer, nem tão variadas. Aliás, umas poucas formas, todas girando em torno de um mesmo credo, mistura de ignorância altiva com má fé totalitária. E, claro, com o tempero do relativismo cultural reinante – espécie de salvo-conduto para as delinqüências intelectuais várias que testemunhamos por aí. Eis o que me fez descumprir, hoje e sempre, a boa dica de Bloom.
Descumpri essa dica de diversos modos ao longo dos anos. Passo a descumpri-la, agora, através do ocidentalismo.org, escrevendo e editando este site que pretende fazer algo muito grandioso de maneira bastante simples: garantir um espaço de leitura agradável e bem informado sobre a singular experiência humana que, no acúmulo, podemos chamar de “cultura ocidental”. Ou, para soar menos audacioso quanto às nossas pretensões, mostrar que ainda há gente que prefere Carlyle e Emerson a romances com zumbis; que reconhece maior grandeza em Purcell ou Stravinsky do que no já esquecido hitdo verão passado (alguém lembra?); que prefere o detido estudo das línguas antigas ao rebaixamento da linguagem que virou dogma intelectual das Letras.
Uma profissão de fé na profundidade. Uma profissão de fé ênfase.
O leitor que pensar em Drummond pensará bem. O verso é famoso e diz assim:
As coisas. Que tristes são as coisas, consideradas sem ênfase.
Se é certo que o verso de A flor e a náusea traz consigo todo um terreno conceitual diferente daquele que estou defendendo aqui (e que alguns vão torcer o nariz, chamando de aristocrático), não é menos certo que a defesa que faço não é de todo alheia ao que pensava Drummond. O exercício de considerar – pensar em sentido forte, julgar – a realidade que nos cerca é o motor mesmo disso a que chamava acima “cultura”. E quando isso é feito sem profundidade – sem ênfase – o resultado não merece ser chamado por esse nome.
O que me leva a outro poeta dileto, de estirpe diferente – e como são boas as diferenças, não? No prefácio de seu A Balada do Cárcere, Bruno Tolentino dizia, ao comentar a risível moda (que infelizmente não passou, clique aqui) de tomar letra de música como poesia:
E assim como um certo lirismo singelo, feito de levezas e doçuras decorrentes de sensações imediatas e dirigidas a reações por assim dizer epidérmicas, pode muito bem exprimir a sensibilidade típica de um povo a um dado momento – na mesma medida é igualmente incapaz de sustentar efetivamente a inteireza do ser nos graves momentos de ascensão ou descida da alma humana. É naquele movimento vertical do espírito que cedo ou tarde o leva a mover-se para cima ou para baixo que o ser alcança sua dignidade e define seu lugar e sua posição ante o real, o bem e o mal, a vida e a morte. Aqui é o poeta que resume a raça, é ele que a afirma e a canta, onde o mero cantador simplesmente seus males espanta. (...) As perplexidades da alma ante seus próprios abismos acomoda-se mal até mesmo aos esquemas da composição erudita, do drama musical; este parece capaz de traduzir, quando muito a densidade emotiva, mas cada vez menos as áreas de ambigüidade inseparáveis da busca de auto-conhecimento, o chiaroscuro da consciência, aquelas shades of meaning do eterno paradoxo humano. A tudo isso corresponde em seus mais puros momentos apenas a arte da poesia (...)
O que Bruno Tolentino afirma aqui sobre a poesia e sobre a linguagem elevada vale para outros domínios, e pode-se dizer que será uma divisa do ocidentalismo.org no que diz respeito à sua concepção de revista cultural, ainda que eletrônica: não é com o abastardamento da linguagem, com o vale-tudo na forma e nos assuntos, não é com nada disso que se atinge o objetivo de divulgar, debater ou analisar isso a que poderíamos chamar de experiência cultural - e o objetivo deste site é fazer precisamente isto. Muitas vezes, tal rebaixamento da cultura e da linguagem ocorre por conta de ânsia de ser democrático, de ser up-to-date, em geral, ambas as coisas para atingir o público - chegar aos leitores, enfim.
A estratégia não poderia ser pior. Isso porque, se se chega aos leitores assim, o que se leva a eles não é aquilo que , de início, deveria ser a proposta de uma revista cultural ou de quem quer que esteja interessado em cultura: de que adianta ter leitores para uma publicação cultural quando o que ela tem de cultura não é mais que um simulacro de cultura? Quando faz passar por cultura quadrinhos, games e pichações? Quando as diversões adolescentes dos seus articulistas é vendida como o Shakespeare de nossa era e de nossa condição? O leitor que me acompanhou até aqui deve estar com a sensação de déjà vu, pois não é outra a tônica dos suplementos culturais e revistas do gênero hoje em dia. É claro, não se trata de uma simples questão de capricho das pessoas que são responsáveis por tais publicações. Trata-se de um problema de formação.
É nesse sentido que as observações de Tolentino, assim me parece, são pertinentes para outros domínios que não o da discussão acerca da poesia, formando com o verso de Drummond que eu citei acima uma espécie de tour de force em defesa da profundidade: quem quer que pense que a as grandes questões humanas podem ser tratadas com algum grau de relevância por um videoclipe, por um grafite ou por um jogo de computador; quem quer que pense que uma história em quadrinhos toca os dilemas da natureza humana como o fazem Homero e Shakespeare, das duas uma: ou não acredita nisso de fato e, portanto, não temos porque nos ocupar desse hipotético hipócrita, ou acredita realmente nisso – e então não é um hipócrita, é um imbecil – e esse imbecil aqui pode ser, como muitos sabem, coletivo...
Agora, quando o que se quer é oferecer ao leitor aquilo que de mais extraordinário existe na criação humana; se o que se quer é fazer de uma publicação cultural o gesto simbólico dessa incrível generosidade humana que é conhecer e partilhar o que se conhece, dando continuidade a um caminho iniciado pela paidéia grega e vivo até o Iluminismo e depois, então a música a ser entoada é outra: é a música do pensamento, de que fala George Steiner:
São homens como um Sócrates, um Mozart, um Gauss ou um Galileu que, de alguma forma, contribuem para o esclarecimento humano, para a beleza e o aprimoramento moral da espécie. São eles que, em frágeis ocasiões, redimem essa massa cruel e imbecil de eventos que dignificamos com o nome de história. Ter alguma forma de contato, ainda que modesto, com os movimentos do espírito e da alma nesses campos da metafísica e da ciência abstrata para tentar apreender, ainda que de maneira indistinta, o significado dessa música do pensamento é tentar, de alguma forma, colaborar para esse progresso tortuoso, sempre ameaçado, do animal humano (...) Tentar compreender, ser capaz de transmitir a outros alguma modesta paráfrase da beleza existente em uma equação de Fermat ou em um cânone de Bach, ouvir o grito do caçador a perseguir a verdade, como Platão o ouviu, é dar alguma razão de ser à vida.
Eis os nossos objetivos: singela e humildemente, compartilhar leituras, estudos, reflexões, sempre com o gosto pela análise, pela divulgação de alto nível, sempre contra a arrogância dos ignorantes que desdenham de Eliot para exaltar o roqueiro fácil e amigo. E, para quem não quiser nada disso, só me resta lembrar outros versos de Tolentino: "Se um som assim te irrita, leitor, fecha este livro e vai ouvir canções".
sábado, 14 de agosto de 2010
Novo curso de apreciação musical
Finalmente tenho o prazer de anunciar a nova edição do curso de elementos essenciais para apreciação musical. A parceria que acabo de fechar com o Instituto Internacional de Ciências Sociais, ali na Bela Vista, garante uma estrutura excelente para nossos encontros.
As aulas começam em setembro e outras informações como custos, horários e datas podem ser encontradas aqui. Nos vemos lá!
As aulas começam em setembro e outras informações como custos, horários e datas podem ser encontradas aqui. Nos vemos lá!
sexta-feira, 13 de agosto de 2010
Escapadela a Nova Iorque
Um amigo me disse certa vez que quando achamos ser santos, devemos ler mais. Agora recebo um email de outro amigo comentando "quando a gente começa a ficar feliz com o que tem, é bom dar uma olhada em volta". Abaixo a temporada do Carnegie Hall de Nova Iorque - atenção, é a temporada de UMA das tantas salas de concerto da cidade.
Para ler em detalhes, pressione o modo FULL na barra abaixo das imagens.
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Se ela pensa eu danço
Paola Braga é nossa infiltrada no mundo da dança, escrevendo de Paris. Entre as expressões artísticas contemporâneas ocidentais, a dança é sem dúvida a que mais abriga modismos oportunistas e imposturas pós-modernas de maneira desfaçatada. Ruim para arte, péssimo para todos nós que amamos esta tradição tão universal. Não deixa de ser um sintoma de nosso tempo - um sintoma enigmático que Paola nos ajudará a decifrar.
Por Paola Secchin Braga
Quando converso com as pessoas aqui na França, onde moro, elas me perguntam por que vim para cá. Eu respondo que vim fazer um doutorado em dança e espero, já sem conter um sorriso no canto dos lábios, a reação de sempre: doutorado em dança?!?! Como assim? Isto existe? Mas dança é uma disciplina prática, como pode existir um doutorado em dança? O que se faz num doutorado em dança? E depois, o que você faz? E por aí vai. Isto já aconteceu incontáveis vezes!
Mas, sim, há graduações, mestrados e doutorados em dança. Sim, há produção intelectual sobre a dança. Hoje a dança, além de dançar, também pensa – e muitas vezes pensa mais do que dança. Não que ela não pensasse antes mas sua produção estava cheia da inocência e romantismo típicos de qualquer disciplina que está começando a se conhecer. Depois de alguns séculos de definições, redefinições e contra-definições, aos pouquinhos, começou a surgir um pensamento crítico na dança, sobre a dança, pela dança e para a dança. E até contra ela! Afinal, para se ter fogo é necessário um certo atrito, não?
Vimos surgir, especialmente, um pensamento de dança feito pelos que se definem como “alguém de dança”. Como muito bem disse Roberto Pereira – e que falta ele nos faz! –, “ser 'alguém de dança’ passa a ser um viés que precisa ser levado em conta ao longo de todo esse texto. ‘Alguém de dança’ pensado como um ofício.”
É deste lugar do ofício de ‘alguém de dança’ que passo a escrever aqui, oportunidade gentilmente criada por Ocidentalismo.org. A proposta é ampla, a estrada pode se bifurcar e tomar caminhos imprevistos. A aventura pode se tornar interessante. Abre-se mais um espaço – e eles são ainda raros – onde se poderá falar desta dança que pensa, anda e se move por suas próprias pernas.
Sejam bem vindos!
Folclore do Homem Industrial - Sinfonia nº7 de Jean Sibelius
"Since the death of Debussy, Sibelius and Schönberg are the most significant figures in European music, and Sibelius is undoubtedly the more complete artist of the two. However much one may admire Schönberg's powerful imagination and unique genius, it is difficult not to feel that the world of sound and thought that he opens up —though apparently iconoclastic— is 'au fond' as restricted as the academicism it has supplanted. Sibelius' music suffers from no such restriction, and it indicates not a particular avenue of escape but a world of thought which is free from the paralysing alternatives of escape or submission. It offers no material for the plagiarist, and is to be considered more as a spiritual example than as a technical influence. We are not likely to find any imitations of Sibelius No. 7, such as we find of Stravinsky's 'Symphonie des Psaumes', because the spiritual calm of this work is the climax of the spiritual experience of a lifetime and cannot be achieved by any aping of external mannerisms." (Constant Lambert em Music Ho! a Study of Music in Decline).
Por Leandro Oliveira
Arnold Schöenberg comenta em algum lugar que mesmo após a implosão forçada do tonalismo, seria possível escrever muita música em dó maior. Em 1924, Jean Sibelius estreou sua última partitura sinfônica casualmente e, porque não, ironicamente, em dó maior. Em tudo estranha - cheia de assimetrias e recorrências temáticas de variação improvável -, a obra é sem dúvida impregnada do espírito da Modernidade.
Ex post facto é fácil pleitear nesta obra o paroxismo da linguagem tonal e o radicalismo da forma como justificativas para a interrupção da atividade criativa do compositor, que a partir dali entraria em seus mais de trinta anos de silêncio profissional. Mas nada nos leva a crer que isso seja verdade: até muito depois, Sibelius seguiu compondo privadamente e, de fato, a partitura, em toda sua inovação melancólica (?!) consegue ser ao mesmo tempo um reflexo de seu tempo e caudatária de valores estéticos que na década de vinte eram nitidamente anacrônicos.
Em toda sua obra, e mais precisamente nesta sinfonia, Sibelius jamais escreverá para a satisfação de um determinado grupo - ao contrário, como diz Lambert, busca a partir de uma reflexão íntima e portanto individual estabelecer comunicação com aquilo que lhe seja universal. Ele diz mais: "enquanto a maior parte da música moderna se preocupa com vocabulário, Sibelius se preocupa com sua expressão". Por isso é um compositor que conjuga estima popular e intelectual. Por isso ele não é passível de plágio, por isso é, ainda hoje, um compositor aparentemente inclassificável em toda sua modernidade:
(...) It is the only modern work whose repose has in it no hint of any lack of vitality, and whose classicism has in it no hint of pastiche. We should not confuse its Olympian serenity with the cold detachment of Stravinsky's Apollo Musagetes and its many neo-classical imitations. There is a repose which marks a final victory and a repose which marks an early defeat. Not everyone who renounces the world is a Buddha.
As idéias com as quais Sibelius trabalha se tornam anátemas nos círculos musicais modernistas do pós-guerra, quando a experimentação formal e a "anti-expressividade" passam a prevalecer como paradigmas. Tanto será assim que Theodor Adorno (temos que falar sobre ele aqui, editor Wolf!) comenta em 1938 que "se Sibelius é bom, então todo critério que aplicamos de Bach a Schoenberg é inválido" (pronto, seqüestrou o Bach...). Em 1955, o compositor René Leibowitz, seguidor de Adorno, publica o panfleto cujo título demonstra o extremo rigor e objetividade da Crítica: "Sibelius, o pior compositor do mundo!". Tratava-se de uma homenagem - what?! - aos noventa anos do mestre.
(Parece a FLIP homenageando Gilberto Freyre).
Os cães ladram, a caravana passa. Hoje, ao lado de Shostakovich, é Jean Sibelius, mesmo tendo interrompido sua produção ainda na primeira metade do século, o mais importante compositor do gênero sinfônico do século XX. E claro, ninguém sabe quem é René Leibowitz e pouca gente liga para os juízos estéticos invariavelmente tortos de Adorno.
Esta semana, a Osesp executa a Sétima Sinfonia de Sibelius na Sala São Paulo.
quinta-feira, 12 de agosto de 2010
Inteligência e Realidade
"Entre orientais nos tornamos bárbaros" e para livrarmo-nos da bárbarie convidamos Leonardo Valverde para ser nosso guia por tais searas. Se somos ocidentais por condição e por gosto, é fato que uma das mais fascinantes qualidades de nossa cultura é a abertura para o estudo e compreensão de outras formas de participar do mundo. Orientemo-nos, pois.
Por Leonardo Valverde
Esta semana passei por mais uma etapa da edição do śiva sūtra.
E revisando um dos sūtra, fiquei tentado a comentá-lo, como se faz tradicionalmente.
Na terceira e última parte da obra, encontramos:
धीवशात् सत्त्वसिद्धिः
dhīvaśāt sattvasiddhiḥ
A perfeição da realidade (é alcançada) pelo inteligente. (3.12)
dhīvaśāt (m. abl. sing. √dhī + vat ‘perceber’, ‘refletir’) - do inteligente.
sattva (n.) - existência, realidade.
siddhiḥ (f. nom. sing. √sidh ’ser consumado, consolidado’) - consumação, perfeição.
1.
Traduzi a palavra siddhi aqui como perfeição porque denota um objetivo consolidado e estágio final de qualquer processo - isso falando de forma geral. Já especificamente, um significado bastante adotado (e verdadeiro) é poder místico, devido a associação àqueles que se dedicam a uma vida ascética. Mas lembrando: esses ‘poderes’ não constituem um legado espiritual propriamente dito, pois trata-se de ‘poderes místicos’ sobre a matéria.
2.
A palavra acima não vem sozinha, está em composição com outra palavra: sattva. E por sua formação temos o significado existência ou realidade. Temos sat + tva; na primeira um particípio presente da raiz (dhātu) √as (cl.2.), ou ’ser, existir’, por isso existente, na segunda um sufixo usado para formar nomes abstratos, e por isso o significado acima. E preferi priorizar realidade por causa do teor filosófico da palavra sânscrita - já explico.
3.
E por último a primeira palavra do sūtra, dhīvat, cuja raiz significa refletir, perceber. E seu significado completo “aquele que possui reflexão, percepção, inteligência”.
Explicação:
Como falei, optei pela palavra realidade para traduzir sattva, porque a existência em si tem três qualidades (guṇa), e dessas qualidades, a sattva tem um efeito ascensional, ou seja, de elevação, e, portanto, de um “estágio” em que é possível entender a existência e suas nuances de forma mais completa. Só que o sūtra vai ainda mais longe, ele não fala só dessa realidade, fala de uma perfeição, ou, dos poderes gerados a partir deste guṇa.
Só que (e agora o detalhe mais importante do sūtra) esta perfeição só é alcançada pelos inteligentes, por aqueles que refletem, percebem, e não por qualquer um. Só o inteligente é capaz de perceber a perfeição da realidade.
Retirado de www.leonardovalverde.com.
Arvo Pärt, Björk, o minimalismo e Michael Moore...
Por Leandro Oliveira
Arvo Pärt é um compositor estoniano, talvez o maior dentre os vivos. Pouco presente em nossas salas de concerto, sua obra realiza uma reflexão especial sobre nosso tempo a partir de referências simbólicas universais.
Em 1997, Björk apresentou para a BBC um programa sobre música minimalista. A entrevista com Arvo Pärt é divertida pois ela nitidamente fica nervosa para falar com o mestre. E quem não ficaria?
Esta semana a Osesp apresenta Cantus in Memoriam Benjamin Britten, uma obra de força expressiva impressionante que serviu de trilha sonora para diversos filmes - inclusive o tolo Farenheit 9/11 do Michael Moore; o filme não presta e o uso esperto de Moore da música de Part é um dos responsáveis pelo impacto emotivo das cenas da explosão das torres gêmeas...
Arvo Pärt é um compositor estoniano, talvez o maior dentre os vivos. Pouco presente em nossas salas de concerto, sua obra realiza uma reflexão especial sobre nosso tempo a partir de referências simbólicas universais.
Em 1997, Björk apresentou para a BBC um programa sobre música minimalista. A entrevista com Arvo Pärt é divertida pois ela nitidamente fica nervosa para falar com o mestre. E quem não ficaria?
Esta semana a Osesp apresenta Cantus in Memoriam Benjamin Britten, uma obra de força expressiva impressionante que serviu de trilha sonora para diversos filmes - inclusive o tolo Farenheit 9/11 do Michael Moore; o filme não presta e o uso esperto de Moore da música de Part é um dos responsáveis pelo impacto emotivo das cenas da explosão das torres gêmeas...
quarta-feira, 11 de agosto de 2010
Eu, você e todos nós
Como distinguimos nas nossas decisões aquelas que comporão o grande quadro da História? Que fazemos e devemos preservar em nossa intimidade? Karen Worcan comenta um pouco destas e outras perplexidades que lhe ocorreram ao longo das experiência de mais de quinze anos de entrevistas e coletas de histórias de vida.
Por Karen Worcman
No final dos anos 80 realizei uma série de entrevistas no Rio de Janeiro com imigrantes judeus. O casal de poloneses Adam e Krystyna Drozdowicz morava em um apartamento de primeiro andar no Largo do Machado. O apartamento era escuro e redondo e sua forma bem particular: se quando entrávamos fôssemos para a direita, estávamos na parte de Krystyna; se virássemos à esquerda, na parte de Adam.
Na parte de Krystyna, o caos imperava. Sentava no seu sofá entre livros, roupas, pratos e garfos; na parede havia vários quadros e gravuras polonesas, judaicas e referências as mais confusas. Na parte de Adam, imperava a total organização. Tudo estava em ordem, os livros cuidadosamente organizados, os móveis limpos, a roupa mesmo quando aparente, sempre devidamente dobrada.
Ambos tinham mais de 70 anos. Ela andava com uma muleta e ele ainda ia, todos os dias, de ônibus, trabalhar no hospital universitário da UFRJ. Adam era microbiologista. Tinha cursado universidade - uma exceção em seu tempo -, e estava fazendo o doutorado quando a Alemanha invadiu a Polônia.
Na ocasião da ocupação, os dois tornaram-se, à sua maneira, heróis. Além de apoiarem a guerrilha de resistência, Krystyna salvou toda a sua família dos campos de concentração: mãe, pai, irmão, irmã, cunhados. Adam tornou-se “anti-mohel”, especializando-se em ajudar judeus a reverter as marcas da circuncisão.
Entrevistei cada um por um mês. Apesar de ser judia, filha e neta de judeus e de ter escutado histórias do holocausto desde sempre, com eles fui vislumbrando um outro jeito de entender a guerra, o gueto e o cotidiano daquele momento. Soube, por exemplo, que os judeus organizaram uma espécie de universidade de medicina em pleno gueto de Varsóvia. Dito por Adam Drozdowicz:
... Devia parecer um curso para sanitaristas, mas o nível era o de uma faculdade de medicina de antes da Guerra. A cada dia procurávamos um lugar onde fazer as aulas. Precisávamos de salas bem grandes porque logo que foi anunciado este curso apareceram duzentos ou mais candidatos… as cinco horas começavam as aulas, porque antes muitos dos alunos eram pegos para trabalhar para os alemães. Tanto este laboratório quanto essa faculdade funcionaram até a liquidação do gueto, que começou em 22 de junho de 1942. …nesse periodo desenvolveram-se também muitas pesquisas. Muitos pesquisadores judeus, médicos, aproveitaram a oportunidade e fizeram um estudo sobre a fisiologia da fome…porque o pano de fundo dessa universidade, dessa vida intelectual maravilhosa, era de cadáveres nas ruas. E cadáver já não era tão trágico. Trágico eram as crianças, num dia tão magrinhas, no outra tão inchadas - os sintomas típicos da fome…
Uma das noites, quando Adam me contava como os judeus construíam os muros que os cercavam, de como ele tinha perdido a primeira esposa, o pai e todos na liquidação do gueto, de como ele e a família tinham voltado da Rússia para o apartamento de antes da guerra na Polônia, perguntei quase que com uma certa raiva: por que os judeus ficaram fazendo os muros e não saíram ou se rebelaram? Como vocês foram ficando e deixando tudo acontecer? Por que vocês voltaram da Rússia?
Ele me olhou e disse:
Hoje nós sabemos o que aconteceu. Naquele instante, era um dia atrás do outro. A luta era pela sobrevivência e pela tentativa de ficar com o que conhecíamos. As coisas iam acontecendo e nós íamos nos adaptando. Não temos como julgar com os olhos de hoje.
O encontro com o casal Drozdowicz foi uma lição de humildade. Ao final das entrevistas me dei conta que do ponto de vista da intimidade última, havia semelhanças entre aqueles judeus no gueto e as decisões que tomava para seguir minha vida nas ruas cariocas. Por mais incomparáveis que fossem suas tragédias ao meu conforto, eu estava também ali, entre balas perdidas, o tráfico e a taxa de mortalidade por mortes diárias mais altas do que na Palestina, me adaptando e tentando tornar “natural” viver no meio daquela guerra particular.
Começo minha contribuição para o Ocidentalismo.org com esta pergunta: qual a relação entre a micro historieta de cada um de nós e estas grandes narrativas? Como poderemos conectar nossas singularidades à História maiúscula? Como historiadora, lancei-me a este desafio profissional: relacionar as pessoas, suas experiências de vida, ao complexo mundo que nos rodeia - procurar em suas histórias uma fonte de renovação constante de minha própria visão da História.
E então – tarefa máxima do estudo historiográfico –, entender um pouco de mim e nosso tempo. Tomando decisões dia após dia, mesmo no caos, seguíamos no Rio de Janeiro querendo construir nossa rotina. Dávamos o resto como fatalidade. Eu morava na Glória, e saía sempre daqueles encontros com Adam e Krystyna caminhando pelo Largo do Machado. Nas calçadas, pessoas e pessoas dormindo. Mendigos, famílias no meio do lixo e eu me esquivando para não pisar em ninguém.
Os depoimentos integrais de Adam e Krystina Drozdowicz - e muitos outros - podem ser consultados no acervo do Museu da Pessoa.
Por Karen Worcman
No final dos anos 80 realizei uma série de entrevistas no Rio de Janeiro com imigrantes judeus. O casal de poloneses Adam e Krystyna Drozdowicz morava em um apartamento de primeiro andar no Largo do Machado. O apartamento era escuro e redondo e sua forma bem particular: se quando entrávamos fôssemos para a direita, estávamos na parte de Krystyna; se virássemos à esquerda, na parte de Adam.
Na parte de Krystyna, o caos imperava. Sentava no seu sofá entre livros, roupas, pratos e garfos; na parede havia vários quadros e gravuras polonesas, judaicas e referências as mais confusas. Na parte de Adam, imperava a total organização. Tudo estava em ordem, os livros cuidadosamente organizados, os móveis limpos, a roupa mesmo quando aparente, sempre devidamente dobrada.
Ambos tinham mais de 70 anos. Ela andava com uma muleta e ele ainda ia, todos os dias, de ônibus, trabalhar no hospital universitário da UFRJ. Adam era microbiologista. Tinha cursado universidade - uma exceção em seu tempo -, e estava fazendo o doutorado quando a Alemanha invadiu a Polônia.
Na ocasião da ocupação, os dois tornaram-se, à sua maneira, heróis. Além de apoiarem a guerrilha de resistência, Krystyna salvou toda a sua família dos campos de concentração: mãe, pai, irmão, irmã, cunhados. Adam tornou-se “anti-mohel”, especializando-se em ajudar judeus a reverter as marcas da circuncisão.
Entrevistei cada um por um mês. Apesar de ser judia, filha e neta de judeus e de ter escutado histórias do holocausto desde sempre, com eles fui vislumbrando um outro jeito de entender a guerra, o gueto e o cotidiano daquele momento. Soube, por exemplo, que os judeus organizaram uma espécie de universidade de medicina em pleno gueto de Varsóvia. Dito por Adam Drozdowicz:
... Devia parecer um curso para sanitaristas, mas o nível era o de uma faculdade de medicina de antes da Guerra. A cada dia procurávamos um lugar onde fazer as aulas. Precisávamos de salas bem grandes porque logo que foi anunciado este curso apareceram duzentos ou mais candidatos… as cinco horas começavam as aulas, porque antes muitos dos alunos eram pegos para trabalhar para os alemães. Tanto este laboratório quanto essa faculdade funcionaram até a liquidação do gueto, que começou em 22 de junho de 1942. …nesse periodo desenvolveram-se também muitas pesquisas. Muitos pesquisadores judeus, médicos, aproveitaram a oportunidade e fizeram um estudo sobre a fisiologia da fome…porque o pano de fundo dessa universidade, dessa vida intelectual maravilhosa, era de cadáveres nas ruas. E cadáver já não era tão trágico. Trágico eram as crianças, num dia tão magrinhas, no outra tão inchadas - os sintomas típicos da fome…
Estudantes do departamento de Microbiologia da Universidade de Varsóvia, Polônia. A maioria do grupo era judeu, todos mortos na Segunda Guerra Mundial. Ao centro, o professor B. Assallk, que ajudou Adam Drozdowick a sobreviver na Polônia ocupada.
Uma das noites, quando Adam me contava como os judeus construíam os muros que os cercavam, de como ele tinha perdido a primeira esposa, o pai e todos na liquidação do gueto, de como ele e a família tinham voltado da Rússia para o apartamento de antes da guerra na Polônia, perguntei quase que com uma certa raiva: por que os judeus ficaram fazendo os muros e não saíram ou se rebelaram? Como vocês foram ficando e deixando tudo acontecer? Por que vocês voltaram da Rússia?
Ele me olhou e disse:
Hoje nós sabemos o que aconteceu. Naquele instante, era um dia atrás do outro. A luta era pela sobrevivência e pela tentativa de ficar com o que conhecíamos. As coisas iam acontecendo e nós íamos nos adaptando. Não temos como julgar com os olhos de hoje.
O encontro com o casal Drozdowicz foi uma lição de humildade. Ao final das entrevistas me dei conta que do ponto de vista da intimidade última, havia semelhanças entre aqueles judeus no gueto e as decisões que tomava para seguir minha vida nas ruas cariocas. Por mais incomparáveis que fossem suas tragédias ao meu conforto, eu estava também ali, entre balas perdidas, o tráfico e a taxa de mortalidade por mortes diárias mais altas do que na Palestina, me adaptando e tentando tornar “natural” viver no meio daquela guerra particular.
Começo minha contribuição para o Ocidentalismo.org com esta pergunta: qual a relação entre a micro historieta de cada um de nós e estas grandes narrativas? Como poderemos conectar nossas singularidades à História maiúscula? Como historiadora, lancei-me a este desafio profissional: relacionar as pessoas, suas experiências de vida, ao complexo mundo que nos rodeia - procurar em suas histórias uma fonte de renovação constante de minha própria visão da História.
E então – tarefa máxima do estudo historiográfico –, entender um pouco de mim e nosso tempo. Tomando decisões dia após dia, mesmo no caos, seguíamos no Rio de Janeiro querendo construir nossa rotina. Dávamos o resto como fatalidade. Eu morava na Glória, e saía sempre daqueles encontros com Adam e Krystyna caminhando pelo Largo do Machado. Nas calçadas, pessoas e pessoas dormindo. Mendigos, famílias no meio do lixo e eu me esquivando para não pisar em ninguém.
Os depoimentos integrais de Adam e Krystina Drozdowicz - e muitos outros - podem ser consultados no acervo do Museu da Pessoa.
terça-feira, 10 de agosto de 2010
Neue Zeitschrift
Ocidentalismo.org é um exemplar da vira-latice nacional; no entanto, como vira-latas atípicos - um pouco esnobes - estamos muito zelosos de nossa árvore genealógica. Assim, pedimos a Fernandinha Vaz para que apontasse as raízes do projeto. Ela nos presenteia com a apresentação de um bisavô espiritual, a Neue Zeitschrift für Musik de Robert Schumann.
Por Fernanda Vaz
Em meados de 1833 as principais revistas de música da Alemanha eram produzidas por editores de partituras, e falavam, naturalmente, das peças por eles próprios publicadas. Não muitos anos haviam se passado desde Beethoven e Schubert, e ainda assim reinava no mercado a música de salão: peças baseadas geralmente em melodias de ópera já muito conhecidas do público, prezando pela exibição virtuosística.
Incomodados, alguns jovens músicos de Leipzig decidiram que algo precisava ser feito para que altos ideais artísticos voltassem a guiar a criação musical – algo além de discutir entre si em cafés todas as noites. Assim, com um objetivo particularmente semelhante ao nosso no Ocidentalismo.org, foi criado o Neue Zeitschrift für Musik ("Novo Periódico de Música"), tendo por editor um certo saxão que teria completado neste Junho exatos 200 anos, mas que na época tinha apenas 24 e demonstrava talvez tanto talento para as letras quanto para a música.
Ao findar de 1834, Robert Schumann assumiu toda a responsabilidade pela continuação do projeto, que correu o risco de ser abortado por causa da morte de um dos membros e da saída de vários outros (o que certamente não desejamos que seja também uma semelhança!). Schumann dizia que até então havia passado mais tempo de vida sonhando ao piano do que com livros (e digo eu que muito tempo passo sonhando com as músicas de Schumann); sabemos entretanto que tinha gosto por literatura desde muito jovem, tendo sido influenciado por autores como E.T.A. Hoffmann e Jean Paul Richter. Demonstrava em suas críticas e textos um estilo poético, cheio de metáforas, alusões obscuras e enigmas.
A Neue Zeitschrift se propunha não só a apresentar resenhas e críticas de concertos e novas obras, mas também ensaios em geral sobre música, poesia e outros tipos de arte literária. Na falta de guerreiros reais para conduzir sua guerra, Schumann criou para si um exército imaginário: a Davidsbund ou "Liga de Davi", cujo nome é alusão ao personagem bíblico famoso por matar o gigante Golias e derrotar os Filisteus - que neste caso seriam todos aqueles com gosto medíocre para música ou qualquer outra arte; os que perpetuavam a admiração pelo virtuosismo vazio; os extremamente conservadores que não davam atenção à boa música nova que vinha sendo produzida etc. Exatamente como hoje.
Schumann gostava especialmente de promover a música de outros jovens compositores, estando entre eles Brahms, Mendelssohn e Chopin. Não se deve, entretanto, cair no erro de enxergar nisto um espírito vanguardista muito grande ou um gosto exagerado pela novidade: o criador da sociedade Davidita tinha sólida consciência das grandes idéias do passado e admiração especial por J.S. Bach, que havia sido “redescoberto” alguns anos antes por Felix Mendelssohn. Como se lê no editorial de ano novo de 1835, a idéia era “manter na memória os velhos tempos e suas obras, enfatizando que apenas de tal fonte pura podem sair novas belezas artísticas”.
Tal consciência histórica é a base de toda a Liga de Davi, da qual “Mozart já foi um membro tão proeminente quanto é hoje Berlioz, sem que se necessite de certificado algum de participação”. Fugindo do conservadorismo extremo e do novo pelo novo, Robert Schumann foi um dos poucos bem-sucedidos a seu tempo em encontrar equilíbrio no que diz respeito a julgamento artístico – o que nos dias de hoje é ainda tão de se conseguir!
Entre os Davidsbündler também estavam algumas figuras imaginárias, heterônimos criados por Schumann para expressar aspectos contrastantes de sua personalidade e, em suas palavras, equilibrar de forma bem-humorada Dichtung und Warheit, “poesia e verdade”. Havia o sereno Eusebius, quieto e sonhador, e o selvagem Florestan, impetuoso e temperamental. O equilíbrio entre os dois era dado por Mestre Raro, usualmente uma representação de Friedrich Wieck, professor de piano e sogro de Schumann, que não poucas vezes era quem dava a palavra final nas críticas e textos construídos em forma de diálogo.
É interessante notar também a influência da sociedade imaginária em suas composições: Florestan e Eusebius são os nomes assinados em diversas obras do período e têm suas representações musicais em duas das 20 pequenas peças para piano do “Carnaval”, op. 9 – ciclo em que aparecem também Clara Wieck (“Chiarina”), Paganini e Chopin, que teve muitos de seus trabalhos louvados com empolgação pelos personagens de Schumann. Fechando o cortejo carnavalesco imaginário está ainda a Marche des Davidsbündler contre les Philistines, que cita um antigo tema do século XVII, simbolizando idéias ultrapassadas e antigas a serem derrubadas.
Em 1853, nove anos depois de ter deixado o comando da Neue Zeitschrift, Schumann escrevia que cada época tem sua sociedade secreta de espíritos afins. Em certo sentido, podemos ser ainda hoje Daviditas (embora bem reais, sem doppelgänger ou alter-egos - ao menos até onde se sabe!), lutando contra o filistinismo que pinta grandes obras e idéias como monstros complicados e inacessíveis demais. Dadas as devidas proporções, o objetivo atual de muitos entre nós continua sendo aquele do século XIX: a elevação de padrões. Isso não significa que apenas um grupo deva desejar pegar para si e transformar em “sabedoria oculta” todo o legado cultural ocidental, mas sim que é bom que este seja preservado e restaurado ao lugar devido – que não é o de opressor de pobres mentes engessadas e nem de salvador de pobres almas perdidas, mas sim de instrumento valioso para a formação humana.
Walk on the wild side
"O que eles fazem é legal - mas não muito. Vamos dizer assim: tem lugar pra todo mundo, mas cada um no seu lugar. (...) A gente vem de outro conceito, esse é que o problema."
Zeca Pagodinho sobre o samba do bairro carioca da Lapa, feito por jovens que estudam o gênero e responsáveis parcialmente por sua revitalização recente.
Por Leandro Oliveira
O primeiro problema da crítica é o de realizar distinções. Antes de qualificar, recuperar ou mesmo combater – sim, um crítico é também um soldado – qualquer profissional que pensa a cultura deve saber discriminar joio e trigo, agulha e palheiro, alhos e bugalhos. E como não seria se, mesmo entre pessoas normais, ou seja, aquelas que não ganham para pensar mas simplesmente tentam entender as coisas, é assim? Fazemos todos sem exceção tais discriminações todos os dias. Não comparamos rock’n’roll com pizza, por exemplo.
Isso parece ridiculamente óbvio. Mas é fato: as crianças não fazem de forma tão bem acabada estas distinções, que podem ir se sofisticando com a experiência, e assim podemos nos ver quando entre elas na situação delicada de tentar responder: “tio, você prefere ouvir música ou comer a melhor comida do mundo?”. Nestes termos, o embróglio é claramente infantil. Matérias distintas, natureza de afeto distinta.
A Companhia das Letras acaba de lançar “Atravessar o Fogo – 310 Letras de Lou Reed”. São mais de setecentas páginas com textos traduzidos de músicas de Lou Reed – um dos grandes roqueiros das décadas de sessenta e setenta e figura decisiva na história do gênero, ao criar, a frente do Velvet Underground um dos sons mais viscerais do período. Até aí tudo ótimo, um petisco para os fãs. O problema? Lançar o calhamaço na mesma coleção onde estão contos de Truman Capote e Isaac Bashevis Singer, novelas de Pirandello, fábulas coletadas por Ítalo Calvino...
Agora, nós que amamos literatura poderemos comparar trechos como esse:
A anfitriã arrumou o elegante vestido preto e apertou os lábios, nervosa. Era muito jovem e pequena e perfeita. Seu rosto era claro e emoldurado pelo cabelo preto liso, e o batom era um pouquinho escuro demais. Passava das duas, e ela estava cansada e queria que todos fossem embora, mas não era tarefa fácil se livrar de umas trinta pessoas, particularmente quando a maioria estava encharcada do scotch de seu pai. O ascensorista tinha subido duas vezes para reclamar do barulho; então ela lhe dera um highball, que de qualquer modo é só o que ele quer. E agora os marinheiros... ah, eles que se danem.
...onde temos um exemplo notável da arquitetura sofisticada – embora ainda não completamente desenvolvida - de construção da psicologia de um personagem de Truman Capote, a tal pérola poética:
Oh oh oh, satélite do amor,
Oh oh oh, satélite do amor,
Oh oh oh, satélite do amor!
Satélite do...
Sem a música - que é uma balada despretensiosa -, parece coisa de idiota. É a geléia geral.
Borges comenta que organizar uma biblioteca é fazer crítica literária. Quando uma editora coloca figuras tão díspares lado a lado, ela iguala diferenças. Quando igualamos diferenças medimos a todos pelo mais medíocre – afinal, não será Bashevis Singer que passará a ser valorizado entre punks, ou ficará mais nobre ao lado de Lou Reed. Será a academia que passará a fazer notas de rodapé com citações pedestres e pseudo-cultas sobre o Legião Urbana.
O incrível é que tal selo de credibilidade literária, pelo que parece, nem o roqueiro imaginara para si. Tanto assim que à mesma falta de critério da Festa Literária de Paraty deste ano - o que, a propósito, apenas mostra o estado lastimável de nossos produtores culturais mais prestigiosos - Reed deu uma banana. Usando dos mesmos parâmetros para parte do resto de sua programação, a FLIP flopou com o cartunista Robert Crumb, que disse em alto e bom som não saber o que estava fazendo ali, e jamais se imaginaria sendo levado tão a sério.
No Brasil, a fábula é invertida: é o rei que sai gritando “estou nu! estou nu!”.
Erra quem imagina que realizar tais relações é coisa de elitista. Não realizar é que é coisa de acadêmico. Está lá o Zeca Pagodinho que não me deixa mentir.
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