...though I do not wish to wish these things...
(T.S. Eliot)
(T.S. Eliot)
Por Eduardo Wolf
Li certa feita Harold Bloom dizer, em tom de dica para os leitores, que era preciso abdicar de toda militância, pois sempre haveria muito para ler e pouco tempo para fazê-lo. Nunca concordei tanto com uma tese; nunca fui tão incapaz de praticá-la. Mea culpa, mas nem tanto. Temperamento e personalidade – elementos de nossa vida de cuja existência os gregos sabiam tão bem – podem explicar um pouco do caso. Quanto ao resto, a explicação fica por conta deste imenso quintal da nossa vida pessoal a que chamamos realidade. E a realidade, por vezes, tem força convocatória. No meu caso – e no caso dos amigos que escrevem no ocidentalismo.org – a força desse apelo da realidade se fez sentir de variadas formas.
Quer dizer, nem tão variadas. Aliás, umas poucas formas, todas girando em torno de um mesmo credo, mistura de ignorância altiva com má fé totalitária. E, claro, com o tempero do relativismo cultural reinante – espécie de salvo-conduto para as delinqüências intelectuais várias que testemunhamos por aí. Eis o que me fez descumprir, hoje e sempre, a boa dica de Bloom.
Descumpri essa dica de diversos modos ao longo dos anos. Passo a descumpri-la, agora, através do ocidentalismo.org, escrevendo e editando este site que pretende fazer algo muito grandioso de maneira bastante simples: garantir um espaço de leitura agradável e bem informado sobre a singular experiência humana que, no acúmulo, podemos chamar de “cultura ocidental”. Ou, para soar menos audacioso quanto às nossas pretensões, mostrar que ainda há gente que prefere Carlyle e Emerson a romances com zumbis; que reconhece maior grandeza em Purcell ou Stravinsky do que no já esquecido hitdo verão passado (alguém lembra?); que prefere o detido estudo das línguas antigas ao rebaixamento da linguagem que virou dogma intelectual das Letras.
Uma profissão de fé na profundidade. Uma profissão de fé ênfase.
O leitor que pensar em Drummond pensará bem. O verso é famoso e diz assim:
As coisas. Que tristes são as coisas, consideradas sem ênfase.
Se é certo que o verso de A flor e a náusea traz consigo todo um terreno conceitual diferente daquele que estou defendendo aqui (e que alguns vão torcer o nariz, chamando de aristocrático), não é menos certo que a defesa que faço não é de todo alheia ao que pensava Drummond. O exercício de considerar – pensar em sentido forte, julgar – a realidade que nos cerca é o motor mesmo disso a que chamava acima “cultura”. E quando isso é feito sem profundidade – sem ênfase – o resultado não merece ser chamado por esse nome.
O que me leva a outro poeta dileto, de estirpe diferente – e como são boas as diferenças, não? No prefácio de seu A Balada do Cárcere, Bruno Tolentino dizia, ao comentar a risível moda (que infelizmente não passou, clique aqui) de tomar letra de música como poesia:
E assim como um certo lirismo singelo, feito de levezas e doçuras decorrentes de sensações imediatas e dirigidas a reações por assim dizer epidérmicas, pode muito bem exprimir a sensibilidade típica de um povo a um dado momento – na mesma medida é igualmente incapaz de sustentar efetivamente a inteireza do ser nos graves momentos de ascensão ou descida da alma humana. É naquele movimento vertical do espírito que cedo ou tarde o leva a mover-se para cima ou para baixo que o ser alcança sua dignidade e define seu lugar e sua posição ante o real, o bem e o mal, a vida e a morte. Aqui é o poeta que resume a raça, é ele que a afirma e a canta, onde o mero cantador simplesmente seus males espanta. (...) As perplexidades da alma ante seus próprios abismos acomoda-se mal até mesmo aos esquemas da composição erudita, do drama musical; este parece capaz de traduzir, quando muito a densidade emotiva, mas cada vez menos as áreas de ambigüidade inseparáveis da busca de auto-conhecimento, o chiaroscuro da consciência, aquelas shades of meaning do eterno paradoxo humano. A tudo isso corresponde em seus mais puros momentos apenas a arte da poesia (...)
O que Bruno Tolentino afirma aqui sobre a poesia e sobre a linguagem elevada vale para outros domínios, e pode-se dizer que será uma divisa do ocidentalismo.org no que diz respeito à sua concepção de revista cultural, ainda que eletrônica: não é com o abastardamento da linguagem, com o vale-tudo na forma e nos assuntos, não é com nada disso que se atinge o objetivo de divulgar, debater ou analisar isso a que poderíamos chamar de experiência cultural - e o objetivo deste site é fazer precisamente isto. Muitas vezes, tal rebaixamento da cultura e da linguagem ocorre por conta de ânsia de ser democrático, de ser up-to-date, em geral, ambas as coisas para atingir o público - chegar aos leitores, enfim.
A estratégia não poderia ser pior. Isso porque, se se chega aos leitores assim, o que se leva a eles não é aquilo que , de início, deveria ser a proposta de uma revista cultural ou de quem quer que esteja interessado em cultura: de que adianta ter leitores para uma publicação cultural quando o que ela tem de cultura não é mais que um simulacro de cultura? Quando faz passar por cultura quadrinhos, games e pichações? Quando as diversões adolescentes dos seus articulistas é vendida como o Shakespeare de nossa era e de nossa condição? O leitor que me acompanhou até aqui deve estar com a sensação de déjà vu, pois não é outra a tônica dos suplementos culturais e revistas do gênero hoje em dia. É claro, não se trata de uma simples questão de capricho das pessoas que são responsáveis por tais publicações. Trata-se de um problema de formação.
É nesse sentido que as observações de Tolentino, assim me parece, são pertinentes para outros domínios que não o da discussão acerca da poesia, formando com o verso de Drummond que eu citei acima uma espécie de tour de force em defesa da profundidade: quem quer que pense que a as grandes questões humanas podem ser tratadas com algum grau de relevância por um videoclipe, por um grafite ou por um jogo de computador; quem quer que pense que uma história em quadrinhos toca os dilemas da natureza humana como o fazem Homero e Shakespeare, das duas uma: ou não acredita nisso de fato e, portanto, não temos porque nos ocupar desse hipotético hipócrita, ou acredita realmente nisso – e então não é um hipócrita, é um imbecil – e esse imbecil aqui pode ser, como muitos sabem, coletivo...
Agora, quando o que se quer é oferecer ao leitor aquilo que de mais extraordinário existe na criação humana; se o que se quer é fazer de uma publicação cultural o gesto simbólico dessa incrível generosidade humana que é conhecer e partilhar o que se conhece, dando continuidade a um caminho iniciado pela paidéia grega e vivo até o Iluminismo e depois, então a música a ser entoada é outra: é a música do pensamento, de que fala George Steiner:
São homens como um Sócrates, um Mozart, um Gauss ou um Galileu que, de alguma forma, contribuem para o esclarecimento humano, para a beleza e o aprimoramento moral da espécie. São eles que, em frágeis ocasiões, redimem essa massa cruel e imbecil de eventos que dignificamos com o nome de história. Ter alguma forma de contato, ainda que modesto, com os movimentos do espírito e da alma nesses campos da metafísica e da ciência abstrata para tentar apreender, ainda que de maneira indistinta, o significado dessa música do pensamento é tentar, de alguma forma, colaborar para esse progresso tortuoso, sempre ameaçado, do animal humano (...) Tentar compreender, ser capaz de transmitir a outros alguma modesta paráfrase da beleza existente em uma equação de Fermat ou em um cânone de Bach, ouvir o grito do caçador a perseguir a verdade, como Platão o ouviu, é dar alguma razão de ser à vida.
Eis os nossos objetivos: singela e humildemente, compartilhar leituras, estudos, reflexões, sempre com o gosto pela análise, pela divulgação de alto nível, sempre contra a arrogância dos ignorantes que desdenham de Eliot para exaltar o roqueiro fácil e amigo. E, para quem não quiser nada disso, só me resta lembrar outros versos de Tolentino: "Se um som assim te irrita, leitor, fecha este livro e vai ouvir canções".
2 comentários:
Belo texto, Eduardo.
Sejamos enfáticos!
Eduardo, este é um texto poético.
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