Por Karen Worcman
No final dos anos 80 realizei uma série de entrevistas no Rio de Janeiro com imigrantes judeus. O casal de poloneses Adam e Krystyna Drozdowicz morava em um apartamento de primeiro andar no Largo do Machado. O apartamento era escuro e redondo e sua forma bem particular: se quando entrávamos fôssemos para a direita, estávamos na parte de Krystyna; se virássemos à esquerda, na parte de Adam.
Na parte de Krystyna, o caos imperava. Sentava no seu sofá entre livros, roupas, pratos e garfos; na parede havia vários quadros e gravuras polonesas, judaicas e referências as mais confusas. Na parte de Adam, imperava a total organização. Tudo estava em ordem, os livros cuidadosamente organizados, os móveis limpos, a roupa mesmo quando aparente, sempre devidamente dobrada.
Ambos tinham mais de 70 anos. Ela andava com uma muleta e ele ainda ia, todos os dias, de ônibus, trabalhar no hospital universitário da UFRJ. Adam era microbiologista. Tinha cursado universidade - uma exceção em seu tempo -, e estava fazendo o doutorado quando a Alemanha invadiu a Polônia.
Na ocasião da ocupação, os dois tornaram-se, à sua maneira, heróis. Além de apoiarem a guerrilha de resistência, Krystyna salvou toda a sua família dos campos de concentração: mãe, pai, irmão, irmã, cunhados. Adam tornou-se “anti-mohel”, especializando-se em ajudar judeus a reverter as marcas da circuncisão.
Entrevistei cada um por um mês. Apesar de ser judia, filha e neta de judeus e de ter escutado histórias do holocausto desde sempre, com eles fui vislumbrando um outro jeito de entender a guerra, o gueto e o cotidiano daquele momento. Soube, por exemplo, que os judeus organizaram uma espécie de universidade de medicina em pleno gueto de Varsóvia. Dito por Adam Drozdowicz:
... Devia parecer um curso para sanitaristas, mas o nível era o de uma faculdade de medicina de antes da Guerra. A cada dia procurávamos um lugar onde fazer as aulas. Precisávamos de salas bem grandes porque logo que foi anunciado este curso apareceram duzentos ou mais candidatos… as cinco horas começavam as aulas, porque antes muitos dos alunos eram pegos para trabalhar para os alemães. Tanto este laboratório quanto essa faculdade funcionaram até a liquidação do gueto, que começou em 22 de junho de 1942. …nesse periodo desenvolveram-se também muitas pesquisas. Muitos pesquisadores judeus, médicos, aproveitaram a oportunidade e fizeram um estudo sobre a fisiologia da fome…porque o pano de fundo dessa universidade, dessa vida intelectual maravilhosa, era de cadáveres nas ruas. E cadáver já não era tão trágico. Trágico eram as crianças, num dia tão magrinhas, no outra tão inchadas - os sintomas típicos da fome…
Estudantes do departamento de Microbiologia da Universidade de Varsóvia, Polônia. A maioria do grupo era judeu, todos mortos na Segunda Guerra Mundial. Ao centro, o professor B. Assallk, que ajudou Adam Drozdowick a sobreviver na Polônia ocupada.
Uma das noites, quando Adam me contava como os judeus construíam os muros que os cercavam, de como ele tinha perdido a primeira esposa, o pai e todos na liquidação do gueto, de como ele e a família tinham voltado da Rússia para o apartamento de antes da guerra na Polônia, perguntei quase que com uma certa raiva: por que os judeus ficaram fazendo os muros e não saíram ou se rebelaram? Como vocês foram ficando e deixando tudo acontecer? Por que vocês voltaram da Rússia?
Ele me olhou e disse:
Hoje nós sabemos o que aconteceu. Naquele instante, era um dia atrás do outro. A luta era pela sobrevivência e pela tentativa de ficar com o que conhecíamos. As coisas iam acontecendo e nós íamos nos adaptando. Não temos como julgar com os olhos de hoje.
O encontro com o casal Drozdowicz foi uma lição de humildade. Ao final das entrevistas me dei conta que do ponto de vista da intimidade última, havia semelhanças entre aqueles judeus no gueto e as decisões que tomava para seguir minha vida nas ruas cariocas. Por mais incomparáveis que fossem suas tragédias ao meu conforto, eu estava também ali, entre balas perdidas, o tráfico e a taxa de mortalidade por mortes diárias mais altas do que na Palestina, me adaptando e tentando tornar “natural” viver no meio daquela guerra particular.
Começo minha contribuição para o Ocidentalismo.org com esta pergunta: qual a relação entre a micro historieta de cada um de nós e estas grandes narrativas? Como poderemos conectar nossas singularidades à História maiúscula? Como historiadora, lancei-me a este desafio profissional: relacionar as pessoas, suas experiências de vida, ao complexo mundo que nos rodeia - procurar em suas histórias uma fonte de renovação constante de minha própria visão da História.
E então – tarefa máxima do estudo historiográfico –, entender um pouco de mim e nosso tempo. Tomando decisões dia após dia, mesmo no caos, seguíamos no Rio de Janeiro querendo construir nossa rotina. Dávamos o resto como fatalidade. Eu morava na Glória, e saía sempre daqueles encontros com Adam e Krystyna caminhando pelo Largo do Machado. Nas calçadas, pessoas e pessoas dormindo. Mendigos, famílias no meio do lixo e eu me esquivando para não pisar em ninguém.
Os depoimentos integrais de Adam e Krystina Drozdowicz - e muitos outros - podem ser consultados no acervo do Museu da Pessoa.
Um comentário:
Karen, belíssimo seu texto. Parabéns!
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