Por Pedro Gonzaga
Mas não espere afagos nem apertos de mão, estamos cansados. Graças ao nosso engenho, gerência diferenciada e, por que não dizer, magnanimidade, gente como você pôde finalmente experimentar os prazeres do mundo dos ricos: voar. Sanduíche? Tem graça. A barra de cereal que agora lhe oferecemos é o que permite o corte significativo no preço de nossas passagens. Sabemos muito bem quem você é. Conhecemos o seu tipo, esse ar arrogante de consumidor do passado. Ainda no check-in, não vai deixar um instante de evocar (com que finalidade além do tumulto?) o tempo dos seus pais, talheres de prata e poltronas amplas, comissárias simpáticas e lencinhos perfumados. Lugar marcado? Vamos, deixe de preguiça, uma pequena fila nunca matou ninguém. E não se esqueça das medidas da mala de mão, isso é muito importante. Não gostamos de mandriões em nossa companhia, que quase explodem suas bagagens para não pagar o excesso de peso. Isso mesmo, comece a escolher o que vai deixar no saguão do aeroporto. Mania de pobre de viajar com a casa inteira, presentes até para os primos do interior. Já vemos que você confunde as coisas. Não foi porque propusemos um melhor aproveitamento de nossos corredores com a venda de lugares pé que está permitida a mais desbragada das farofagens. Transporte? Túnel para a cabine? Ninguém reclama de caminhar ou correr na academia. Não vai me dizer que vai derreter por causa dessa chuvinha… Apresse o passo, meu toupeira. Ah, não há lugar para sentar junto com sua acompanhante? Ora, vocês terão a vida toda para desfrutar do amor. Um par de horas separados pode até reacender o fogo da relação. Está com calor? Saiba que nossa empresa se preocupa com a emissão dos gases que provocam o aquecimento global. Baixo custo é, antes de mais nada, a postura ecologicamente correta.
Perdeu a sensibilidade nos pés? Devagar, nada de se esticar de maneira acintosa, obstruindo o trânsito de nossos comissários. Tome, aqui está nossa cartilha de alongamentos e exercícios aos passageiros da classe econômica para evitar trombose, torcicolos ou cãibras. Dez quilos a menos e você veria que o problema não são as nossas poltronas. E já que estamos num clima de sinceridade, essa barbicha aí o denuncia. Você deve ser um desses arcaicos militantes de esquerda, da mesma laia daqueles pelintras do PROCOM, já o vemos vibrando com eles quando nos proibiram de cobrar uma taxa pelo uso do banheiro durante as viagens. Sabe o que a cambada – a sua cambada – alegou? Que não haveria alternativa de alívio aos usuários em pleno ar. Com todo respeito, mas de que, diabos, vocês estão falando? Uma criatura humana que não consegue conter seus instintos em nada se diferencia de um animal, que, como você bem sabe, não pode viajar em nossa cabine sem o pagamento da taxa-pet (bem mais cara do que uma ou duas idas ao banheiro). Sabe, isso é o que mais nos dói: a ingratidão, a insídia, a ignorância. Todos queriam um mundo onde viajar fosse mais barato, e nós o fizemos. Todos queriam um mundo com menos formalidades, em que viajar de bermuda e camiseta regata fosse aceito, e lá estávamos nós. Quando pediram por eficiência e tratamento igualitário, a quem, desesperados, recorreram? E agora querem ouvir música e ver filmes de graça, reclamam do contato caloroso dos ombros de seus semelhantes, praticam, sem pejos, os mais estapafúrdios exercícios de redistribuição das poltronas (sim, não esquecemos do seu gesticular solerte (menos uma fileira aqui, menos um assento ali e teríamos espaço decente). Sua audácia é tão desenfreada que o vimos reclamar até da miséria do sachê com sete amendoins que oferecemos, benevolentes, para amenizar as agruras das turbulências. Basta, ouviu? Basta! Comece a sorrir. Moldaremos os céus à nossa imagem e semelhança. Sua voz será esquecida. Cale-se e sorria, durma, meu filho, durma como os outros, olhe ao seu redor, tantos usuários satisfeitos, durma, pois mesmo em sonhos você estará, alma de cinqüenta centavos, no mundo low-cost.
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