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terça-feira, 10 de agosto de 2010

Neue Zeitschrift


Ocidentalismo.org é um exemplar da vira-latice nacional; no entanto, como vira-latas atípicos - um pouco esnobes - estamos muito zelosos de nossa árvore genealógica. Assim, pedimos a Fernandinha Vaz para que apontasse as raízes do projeto. Ela nos presenteia com a apresentação de um bisavô espiritual, a Neue Zeitschrift für Musik de Robert Schumann.

Por Fernanda Vaz


Em meados de 1833 as principais revistas de música da Alemanha eram produzidas por editores de partituras, e falavam, naturalmente, das peças por eles próprios publicadas. Não muitos anos haviam se passado desde Beethoven e Schubert, e ainda assim reinava no mercado a música de salão: peças baseadas geralmente em melodias de ópera já muito conhecidas do público, prezando pela exibição virtuosística.

Incomodados, alguns jovens músicos de Leipzig decidiram que algo precisava ser feito para que altos ideais artísticos voltassem a guiar a criação musical – algo além de discutir entre si em cafés todas as noites. Assim, com um objetivo particularmente semelhante ao nosso no Ocidentalismo.org, foi criado o Neue Zeitschrift für Musik ("Novo Periódico de Música"), tendo por editor um certo saxão que teria completado neste Junho exatos 200 anos, mas que na época tinha apenas 24 e demonstrava talvez tanto talento para as letras quanto para a música.

Ao findar de 1834, Robert Schumann assumiu toda a responsabilidade pela continuação do projeto, que correu o risco de ser abortado por causa da morte de um dos membros e da saída de vários outros (o que certamente não desejamos que seja também uma semelhança!). Schumann dizia que até então havia passado mais tempo de vida sonhando ao piano do que com livros (e digo eu que muito tempo passo sonhando com as músicas de Schumann); sabemos entretanto que tinha gosto por literatura desde muito jovem, tendo sido influenciado por autores como E.T.A. Hoffmann e Jean Paul Richter. Demonstrava em suas críticas e textos um estilo poético, cheio de metáforas, alusões obscuras e enigmas.

A Neue Zeitschrift se propunha não só a apresentar resenhas e críticas de concertos e novas obras, mas também ensaios em geral sobre música, poesia e outros tipos de arte literária. Na falta de guerreiros reais para conduzir sua guerra, Schumann criou para si um exército imaginário: a Davidsbund ou "Liga de Davi", cujo nome é alusão ao personagem bíblico famoso por matar o gigante Golias e derrotar os Filisteus - que neste caso seriam todos aqueles com gosto medíocre para música ou qualquer outra arte; os que perpetuavam a admiração pelo virtuosismo vazio; os extremamente conservadores que não davam atenção à boa música nova que vinha sendo produzida etc. Exatamente como hoje.

Schumann gostava especialmente de promover a música de outros jovens compositores, estando entre eles Brahms, Mendelssohn e Chopin. Não se deve, entretanto, cair no erro de enxergar nisto um espírito vanguardista muito grande ou um gosto exagerado pela novidade: o criador da sociedade Davidita tinha sólida consciência das grandes idéias do passado e admiração especial por J.S. Bach, que havia sido “redescoberto” alguns anos antes por Felix Mendelssohn. Como se lê no editorial de ano novo de 1835, a idéia era “manter na memória os velhos tempos e suas obras, enfatizando que apenas de tal fonte pura podem sair novas belezas artísticas”.

Tal consciência histórica é a base de toda a Liga de Davi, da qual “Mozart já foi um membro tão proeminente quanto é hoje Berlioz, sem que se necessite de certificado algum de participação”. Fugindo do conservadorismo extremo e do novo pelo novo, Robert Schumann foi um dos poucos bem-sucedidos a seu tempo em encontrar equilíbrio no que diz respeito a julgamento artístico – o que nos dias de hoje é ainda tão de se conseguir!

Entre os Davidsbündler também estavam algumas figuras imaginárias, heterônimos criados por Schumann para expressar aspectos contrastantes de sua personalidade e, em suas palavras, equilibrar de forma bem-humorada Dichtung und Warheit, “poesia e verdade”. Havia o sereno Eusebius, quieto e sonhador, e o selvagem Florestan, impetuoso e temperamental. O equilíbrio entre os dois era dado por Mestre Raro, usualmente uma representação de Friedrich Wieck, professor de piano e sogro de Schumann, que não poucas vezes era quem dava a palavra final nas críticas e textos construídos em forma de diálogo.

É interessante notar também a influência da sociedade imaginária em suas composições: Florestan e Eusebius são os nomes assinados em diversas obras do período e têm suas representações musicais em duas das 20 pequenas peças para piano do “Carnaval”, op. 9 – ciclo em que aparecem também Clara Wieck (“Chiarina”), Paganini e Chopin, que teve muitos de seus trabalhos louvados com empolgação pelos personagens de Schumann. Fechando o cortejo carnavalesco imaginário está ainda a Marche des Davidsbündler contre les Philistines, que cita um antigo tema do século XVII, simbolizando idéias ultrapassadas e antigas a serem derrubadas.


Em 1853, nove anos depois de ter deixado o comando da Neue Zeitschrift, Schumann escrevia que cada época tem sua sociedade secreta de espíritos afins. Em certo sentido, podemos ser ainda hoje Daviditas (embora bem reais, sem doppelgänger ou alter-egos - ao menos até onde se sabe!), lutando contra o filistinismo que pinta grandes obras e idéias como monstros complicados e inacessíveis demais. Dadas as devidas proporções, o objetivo atual de muitos entre nós continua sendo aquele do século XIX: a elevação de padrões. Isso não significa que apenas um grupo deva desejar pegar para si e transformar em “sabedoria oculta” todo o legado cultural ocidental, mas sim que é bom que este seja preservado e restaurado ao lugar devido – que não é o de opressor de pobres mentes engessadas e nem de salvador de pobres almas perdidas, mas sim de instrumento valioso para a formação humana.

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