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sexta-feira, 20 de agosto de 2010

Quando fui encomendado ao Gulag


Por Leandro Oliveira

Meyerhold foi um dos mais importantes teatrólogos do século XX. Era filiado ao partido bolshevik nos anos pós-revolução mas, em 1938, sua estética já não cabia nas diretrizes do realismo soviético. Foi enviado à prisão e torturado; ali confessou ser um traidor da pátria. Sua famosa carta à Molotov (no link em italiano) documenta a brutalidade de sua prisão, os detalhes da tortura a que foi submetido e como se viu obrigado a dizer o que não fez. Foi executado em data incerta do ano de 1940 e sua culpa foi revogada oficialmente anos mais tarde, em 1955.

No dia 5 de agosto do ano corrente, eu fui encomendado à retenção. Como imagino sempre deva acontecer em tais casos, estávamos à toa, divertíamos enquanto trabalhávamos; sabia, mas havia esquecido, que tais descontrações são os momentos mais perigosos para atos falhos. O programa apresentava o pungente "Réquiem" de Paul Hindemith. A peça fora criada para a morte de Roosevelt e a letra, retirada do poema When Lilacs Last in the Dooryard Bloom'd de Walt Whitman, era inspirada na morte de outro estadista norte-americano, Abraham Lincoln. Neste contexto, falando de arte para presidentes, o comentário era mais do que devido, flagrantemente espirituoso:

Nós temos o Barretão com o "Filho do Brasil".

Cada um tem o que merece. Meu interlocutor era um velho amigo, uma daquelas figuras com as quais se gasta com algum prazer o tempo do café e pão de queijo. Mas soube naquele momento que o prazer não era recíproco. Meu velho conhecido não pôde tolerar meu raso exercício de antropologia comparada, de crítico cultural superficial, de humorista desagradável. Minha piada fácil foi retrucada com um resmungo insolente. Se não estava satisfeito, que fosse para lá. Sorri e ele me olhou fixo e sério. Repetiu o comando. Não brincava pois, percebi, para ele não havia humor possível em assuntos daquela natureza.

"Ir para lá" era ir embora. "Ir para lá" era ame-ou-deixe. "Ir para lá" era ir para o Gulag.

Não podia brincar com um filme ruim porque o filme era bom. Ponderei sem graça que jamais perderia um amigo pela piada - achava, e sigo achando, indigestos os que fazem tal coisa. Falava de Arte. Ele repetiu o mantra se afastando. Refleti intimamente se naquela atitude havia o troco por alguma agressão anterior que porventura eu tivesse feito, sem querer. Mas não: estávamos entre Whitman, Hindemith e outras enormidades, e tasquei ali o Barretão como termo intercambiável para explicitar esse teatro iconoclasta que é o cinema brasileiro.

Não, não senhores, absolutamente estava falando de política. Minha intenção era comparar desdobramentos culturais. Sou um esteta, e me divirto no exercício constante de entender a nossa cultura e a nossa história, principalmente a partir de suas expressões artísticas. No caso, considerava de forma enviesada mas com absoluta razão que não havia termos com os quais comparar Whitman, Hindemith e Barretão. Havia sido irônico.

Meu ex-colega não entendera assim.

Estou acostumado com o contraditório. Afinal, além de música clássica e outras bizarrices , adoro - ok, isso é realmente outstandingly bizarre - luta-livre... E já entrei em discussões infindáveis sobre a beleza da luta-livre, ou das touradas. Nunca me vira censurado por uma opção estética. Mas o estranho conhecido não se preocupava com tais reflexões.

Aquele senhor claramente acharia o filme de Barretão péssimo se fosse sobre a família Kirschner - ou sobre o Mick Jagger, ou sobre Villa-Lobos: na verdade, um filme ruim não se torna bom por tratar daquilo que nos interessa. O caso é que, com sua agressão ele justificava o filme; mas certamente justificava-o não por conta de um juízo estético mas por uma espécie de juízo ético. Me valendo de um mote recorrente entre os colaboradores do ocidentalismo.org, o sacripanta julgava a cultura e seus eventos a partir de sua ideologia, quando o que deveria fazer para entender minha piada seria exatamente o contrário.

Sem saber, o burocrata fez do filme algo que sequer Barretão ousou explicitar: "Lula, O Filho do Brasil" era para ele não obra-de-arte mas propaganda.

Tomei o trem que saía da estação Julio Prestes às 12h42.

Um comentário:

Norba disse...

Desculpe , meu caro não se trata de inversão cultura vs ideologia .
Trata-se de um chato sem "humor" . Sua bolsa de fel deve ser enorme, qual um indigesto bagre. Quem merece o Gulag é ele, um gulag de humor forçado!
Seja mais indulgente com você, nesse caso seria melhor perder o amigo que a piada

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