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quinta-feira, 10 de março de 2011

Sinal de virtude

Dilema da cultura moderna, a liberação do aborto conta com defensores e acusadores em distintas vertentes do espectro ideológico e intelectual. A tomada de posição nem sempre prevê os dramáticos desdobramentos práticos - e é isso que leva a reflexões intrigantes sobre o limite dos meios para justificativa dos fins, sempre nobres à vista de ambos partidos.

por Joel Pinheiro da Fonseca

As duas imagens que tenho do militante são o socialista e o islamista. O que une a ambos? Uma coisa é o quererem implantar sistemas sociais não muito desejáveis para um homem racional, embora bem diferentes entre si (a não ser, é claro, naqueles que unem marxismo à umma). Mais do que nos fins, há uma igualdade que diz respeito aos meios: para fazer a revolução, implantar a ditadura do proletariado ou o califado universal, tudo vale. Vale matar inocentes (que, claro, por não estarem conosco, já não são tão inocentes assim), vale roubar, vale mentir. Pela causa posso cuspir na causa e jurar nada ter com ela.

Nem todos os movimentos dessas duas correntes têm essa característica. Mas ela foi e é prevalente o bastante para marcá-las. O mesmo já foi o caso até com o Catolicismo em certos lugares, mais especificamente na Inglaterra no início de era moderna (onde eles eram, verdade seja dita, brutalmente reprimidos; padres eram imediatamente condenados à morte). Alguns católicos, liderados por Guy Fawkes, tentaram explodir o Parlamento com todos os parlamentares dentro (a idéia ingênua de mandar uma carta para um parlamentar católico alertando-o do fato pôs tudo a perder, felizmente), indo inclusive contra os pedidos dos jesuítas disfarçados que ministravam em segredo pelo país. O problema é que mesmo entre os jesuítas circulavam diferentes versões da doutrina da equivocação e da reserva mental, o que ajudou na construção da caricatura do jesuíta sorrateiro, esguio, do qual é impossível extrair uma resposta que não seja dúbia. Houve muita propaganda falsa de protestantes e do governo inglês, mas os católicos no mínimo ofereceram material para tal campanha. Lições foram aprendidas.

Avancem a fita para os dias de hoje. Nos EUA, apesar da opinião pública radicalmente dividida, vigoram leis de aborto dentre as mais liberais do mundo; pode-se abortar por qualquer motivo e até bem tarde na gestação. Se o aborto falhar e o bebê nascer vivo, pode-se deixá-lo morrer. O movimento contrário ao aborto tem ganhado força. Gente que era pro-choice hoje é pro-life. Entre eles estão Bernard Nathanson, ex-médico abortista que, após ver imagens de ultrassom dos fetos que ajudava a matar, mudou de posição e passou sua vida fazendo campanha contra a prática, e até a Roe do Roe Vs. Wade, o processo que liberou o aborto, tornou-se ativista pro-life e converteu-se ao Catolicismo.

O movimento pro-life é difuso, abrangendo todas as classes e religiões (tendo inclusive partidários ateus), mas grande parte da força dele vem dos católicos americanos, que encabeçam diversas iniciativas. Uma delas, a Live Action, fez seus membros se apresentarem a clínicas de aborto da Planned Parenthood como prostitutas menores de idade acompanhadas de seu gigolô, que pede auxílio para testar e realizar abortos em suas “funcionárias”. O auxílio dado a eles prova que as clínicas da PP dão suporte a atividades ilegais e nada fazem para impedi-las; tudo devidamente filmado com câmeras escondidas.

Tática interessante, mas... seria ela moral? Afinal de contas, o que os membros do Live Action fazem é mentir, não é? Pode-se mentir por uma boa causa? Diferentes figuras do cenário católico americano deram suas opiniões. Peter Kreeft considera o ato obviamente correto. Mark Shea discorda.

É um caso difícil. Por um lado, não dá para negar que os membros da Live Action mentiram. Por outro, se concluirmos que sua ação é imoral, então todo o jornalismo investigativo e mais, toda infiltração policial em gangues de criminosos, tática consagrada da polícia, são igualmente imorais. Ademais, parece que há casos em que mentir é justificável, como o velho e conhecido “nazista à porta, judeus no sótão”. Alguns diriam que daí não se trata de mentira, mas apenas de um falsilóquio; na minha opinião, uma mal-sucedida tentativa de mudar definições para sumir com o problema.

O intuicionismo moral do Peter Kreeft não me convence; o argumento de autoridade do Mark Shea também não – embora ele faça uma distinção que me parece relevante: no caso do nazista na porta, é o inimigo que intima a responder-lhe; no caso da Live Action, são os próprios agentes que tomam a iniciativa de dar informações falsas para enganar o adversário. Ainda assim, aceitando sua posição, teríamos que concluir que o jornalismo investigativo e a infiltração policial em gangues criminosas são sempre imorais? Há uma diferença entre mentir e interpretar um papel falso (num contexto em que isso sirva para enganar o interlocutor)? Para mim a prova da honestidade de um movimento ou militância está na capacidade de fazer esse tipo de auto-questionamento. Ao invés de transformar a causa anti-aborto num ideal que a tudo santifica, colocam também ela dentro de uma estrutura moral.

Excesso de auto-questionamento é um vício destrutivo à própria causa; ausência dele é inescrupulosidade; na medida certa, um brilhante sinal de virtude.

Reitrado de Dicta.com.br

3 comentários:

Anônimo disse...

Sério. Eu sinceramente não entendi o motivo da "dificuldade".

Você mesmo fez o paralelo com o jornalismo investigativo e a investigação policial.

"Há uma diferença entre mentir e interpretar um papel falso (num contexto em que isso sirva para enganar o interlocutor)"

A pergunta não está certa. deveria ser: há uma diferença entre mentir e interpretar um papel falso num contexto de INVESTIGAÇÃO da possibilidade de contravenção?

Lucas C. disse...

Esse é mais um caso onde a lei (positivista ou não) traz dificuldades pela generalidade. Acho as "mentiras brancas" muito válidas. Não dá pra vencer um embate com um mentiroso sem se utilizar de suas próprias armas. O sábio é ponderar o limite: até onde devo me corromper para acabar com a corrupção? A manutenção dessa linha de pensamento deve manter o equilíbrio.

Morena Flor disse...

Diante de tudo isto, digo:

Uma coisa é apresentar argumentos sólidos. Outra, completamente diferente, é o uso de DESONESTIDADE INTELECTUAL para argumentar. E vejo isso bastante na ala "pró-vida" - q chamo, dentre outros nomes, de "pró-barriga-dos-outros": Usa-se vídeos de fetos abortados(qto sadismo, heim?) em fases TARDIAS para meter medo e terror na mente das pessoas, dentre outras coisas. Se querem defender uma causa, ainda mais qdo esta tem com alvo algo q não é um crime em si mesmo, deve-se, ao menos apresentar argumentos razoáveis. Apelar para a mentira nestes casos é inaceitável.

Se alguém quer ser "ativista" ou o raio q o parta, q o faça com honestidade e honrandez.

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