Ontem ensaiei um paralelo entre o atual e os velhos carnavais. A dessemelhança chega a ser escandalosa. É como se fossem dois povos, duas cidades, dois idiomas, nada parecidos entre si. O carnavalesco de 1920 ia de paroxismo em paroxismo. Ninguém dormia, ninguém comia. Era uma resistência física absurda. O sujeito começava no sábado e varava o domingo, a segunda e a terça. Só apagava na quarta. Era uma danação unânime de quatro dias. Escrevi que o mistério desse formidável dinamismo era o pudor. Hoje, a própria palavra está morta. As Novas Gerações não conhecem o “pudor físico”. Ainda ontem, passei pela avenida Atlântica; fiz o itinerário obrigatório do Forte ao Leme.
Vi, várias vezes, esta cena: — uma menina linda, de biquíni, comprando um refrigerante na barraquinha. O crioulo destampava a garrafinha. Estava, ali, por certo, um dos brotos mais lindos da Terra. Mas aquela nudez, dentro da luz, não interessava a ninguém. A garota vinha do mar; as gotas se estilhaçavam nas suas costas, no ventre perfeito. E ela, na graça inconsciente do seu gesto, bebia pelo gargalo. O crioulo do grapete não lhe fazia a concessão de um olhar. Nenhuma curiosidade. Olhava para outro lado e era cego, surdo e mudo para a nudez adolescente, tão próxima, tangível.
Eis o que eu queria dizer: — as duas coisas seriam impossíveis no velho carnaval. Nem a nudez da menina, nem o tédio do homem. Lembrei o biquíni porque nunca a mulher se despiu tanto para os quatro dias. Nos
bailes, nas esquinas, nas calçadas, nos jardins, há uma nudez indiscriminada e obsessiva. E vem um cruel tédio visual de tantos nus absurdos.
Vou dizer o óbvio, mas paciência. Antigamente, o carnaval era “a mulher” e só ela existia. Por trás da máscara, dentro da fantasia, sem deixar de fora uma nesga de carne — não precisava ser feia, simpática, bonita ou jovem. Ou por outra: — todas eram lindas. João do Rio fez, certa vez, um conto de carnaval. Era uma mascarada que o herói deseja com obstinação e loucura. E, depois de um suspense sabiamente elaborado, o leitor descobre tudo: — a mascarada era leprosa, nem mais, nem menos.
Mas isso era então viável. Hoje a mulher não pode esconder uma brotoeja, nada. O conto de João do Rio chamava-se “Bebê de tarlatana”. Eis o que pergunto: — quantas “bebês de tarlatana” faziam do carnaval um momento de plena e desesperada voluptuosidade? Bem me lembro de uma menina muito falada em Aldeia Campista.
Tinha sido bonitinha ou, pelo menos, jeitosa de corpo e de rosto. Mas ficou “fraca do pulmão”, como se dizia. Os jornais davam à tuberculose o nome alvo, nupcial de “peste branca”. No fim de três ou quatro meses de doença, era um pobre ser, leve, incorpóreo; estava tão frágil que desfalecia com um perfume mais intenso ou com uma emoção mais forte. Já os vizinhos a chamavam de “caveirinha”. E chegou o carnaval de 1920.
Quando disse que queria “brincar”, houve um pânico na família. Foi um tal de “Deus me livre”, “Não pode” etc. etc. Mas cravou no peito dos outros um argumento imbatível: — “É o meu último carnaval!”. E todos
sabiam, na família, na rua, no bairro, que seria mesmo o seu último carnaval. Foi assim um suicídio consentido. O próprio médico não se opôs, dizendo que a pequena estava tecnicamente morta. E, na manhã de domingo, lá saiu a mocinha, de meia máscara.
Não me lembro do resto da fantasia. Só sei que era do mais hermético pudor. (Mais tarde, o caso foi contado no jornal de modinhas.) Havia, porém, um problema: — ela não teria forças nem para chegar à primeira esquina. E, no entanto, saiu, tomou um bonde, desapareceu. Depois se recriou, com as revelações de uma inconfidente, toda a sua história. Ela não queria pular em bonde, entrar em bloco, dançar na avenida. Não. Queria apenas ser beijada. Beijada.
Assim está explicado por que, depois da morte, acabou no jornal de modinhas. Era a mulher que nunca fora beijada e daria a própria vida pela sensação do primeiro beijo. “Alguém vai me beijar”, dissera à inconfidente. Hoje, o beijo quase não existe. Outro dia, num salão, dizia uma bela senhora: — “Não gosto de beijo. Não acho graça em beijo”. Todavia, no tempo do cinema mudo e do pudor físico, os usos amorosos eram outros. O beijo tinha que ser o ponto final de qualquer filme. E não é nada extraordinário que, naquele tempo, uma mulher quisesse ser beijada antes de morrer.
A “caveirinha” saiu no domingo e sumiu. Na terça-feira, um rapaz de Aldeia Campista passa na avenida e vê, numa esquina qualquer, um ajuntamento. Vai espiar pensando num atropelamento. Não era atropelamento, era a “caveirinha”. Estava lá, estendida, rente ao meio-fio, com uma vela, ao lado. E sangue, tanto sangue. De vez em quando, ainda hoje começo a tecer minhas fantasias. Imagino que a “caveirinha” encontrou alguém, sim. Usava meia máscara, com uma franja de renda, que cobria o queixo. Vejo-a erguer a franja e oferecer a boca. Se até a “bebê de tarlatana” fora beijada. Depois do beijo, jorrou a hemoptise final. Segundo uns mascarados, já estava morta e continuavam as golfadas de vida. O corpo passou no necrotério e, mais tarde, foi para casa. Teve caixão branco, vestido branco, tudo de virgem.
Pode-se dizer que um beijo a matou, no tempo em que os beijos ainda matavam. Mas eis o que importa notar: — antes dos nus, a mulher em chagas punha fantasia e máscara nas feridas e era amada por toda uma cidade. Por onde quer que passasse sentiria o desejo anônimo e geral. Sábado, começará um novo carnaval. Mas sabemos que, nos bailes e nas ruas, a mulher será uma figura secundária para o homem. Do mesmo modo, o homem será secundário para a mulher. Ontem, um médico me confessava o seu espanto. Os nossos jovens, de ambos os sexos, esquecem antes de amar e sentem o tédio antes do desejo.
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