Há muito tempo escutamos que o dilema da educação está nos baixos salários - ao lado da falta de "computadores na sala-de-aula", parece não haver outro problema na área, viciada em um discurso-lamento pela falta de incentivos do ponto de vista financeiro. Não estará faltando uma outra peça no quebra-cabeças? Rodrigo de Lemos mostra que sim.
por Rodrigo de Lemos
Não consegui chegar ao fim das memórias de Marcel Pagnol – apesar do clima M. Hulot de algumas páginas, sempre acho vagamente irritantes essas memórias de infância que não a minha. E, contudo, acho memorável o segundo capítulo de "La Gloire de mon père", no qual Pagnol, lembrando o pai instituteur, descreve o espírito das escolas na Terceira República francesa. As Écoles Normales, para transferir da Igreja ao Estado a responsabilidade pela educação, faziam dos candidatos a professores os modelos morais para os jovens da República. Eram campanhas anti-fumo (já então), anti-álcool, anti-adultério, discursos sobre a missão civilizatória dos mestres laicos, sobre o apostolado da ciência e do progresso – tudo para roubar aos padres o papel de exemplos para a nova sociedade. Não creio que o fim fosse o mais nobre, mas o meio não deixou de ser eficiente: a criação de uma classe devotada à causa laica, desdenhosa de riquezas, de vantagens pessoais, unida por um discurso coeso e obstinado, que viu triunfarem seus ideais na crise de 1905 (com a separação entre Igreja e Estado).
Nada disso combina com a imagem de professores a que nos acostumamos no Brasil e, em menor medida, também na França, imagem de gente insatisfeita com o salário, com a quantidade de trabalho, com a “desvalorização” da profissão. Como se contadores ou despachantes comerciais só vissem espinhas curvadas pelos caminhos, tal conquistadores em Alexandria.
Muito disso é exagero. Não tiro os motivos para choro dos que ganham pouco demais, mas a maior parte dos professores que conheci não tem salários muito menores do que os de outras profissões de classe média. O problema é que há um discurso, muito freqüente entre políticos e gente que precisa de votos, de que o destino da educação e, com isso, o futuro da sociedade dependem unicamente de um fator: o aumento dos salários. Educação, ao que parece, depende de “investimento”, e “investimento” quer dizer aumento para os professores, multimídia nas escolas. Por alguma virtude mágica, o mero contato com as telas de computador despertaria o intelecto adormecido dos alunos como uma donzela por um beijo de príncipe, o aumento na conta bancária dos professores desenvolveria neles um rápido e irresistível interesse por teoria da energia escura ou pelas pesquisas sobre o panteão indo-europeu, e eles torrariam o décimo terceiro e o terço de férias com DVDs de ópera ou com livros de lógica modal.
O investimento realmente imprescindível a um professor é o de seu próprio tempo, para estudar, e qualquer aumento de salário só se justifica na medida em que permita ao professor trabalhar menos e estudar mais. O magistério se assemelha, do ponto de vista da atividade, mais a um ministério, a um apostolado, do que a uma profissão como as outras. Dentistas, gerentes de banco não dispõem de horas e horas diárias da atenção total de 30, 40 pessoas ao mesmo tempo, horas durante as quais eles podem usar como quiserem da palavra, deitar erudição ou contar fofocas íntimas, persuadir os outros do que pensam. Só professores são assim, professores e padres. Mas esse privilégio, às vezes desconfortável, tem sua contrapartida, e, como padres, professores devem se acostumar a ambições materiais mais modestas, a condições de vida decentes, mas frugais; espera-se que a curiosidade intelectual, e que a possibilidade de sustentar-se disso, ofereça o surplus de satisfação que, em dentistas ou gerentes de banco, vem de ganhar melhor.
Pode ser que as reclamações se justifiquem quando a quantidade de trabalho obstrui o estudo, mas o número de professores frustrados por não terem ficado ricos, por não poderem consumir tanto quanto o primo empresário ou cirurgião, ultrapassa o razoável. Falta o mépris des richesses de que fala o Pagnol, aquele desdém pelos objetos de desejo das massas, aquela indiferença que experimentamos quando temos uma vida interior razoavelmente desenvolvida. Muito da insatisfação acabaria por aí. Professores do século XIII subsistiam com menos que professores de escola pública, vivendo de vaquinhas dos alunos, sem poder casar, sem estabilidade, sem três meses de férias. E – vejam só – foram esses pobres coitados, esses semi-indigentes, que elaboraram a escolástica.
PS: Este texto (original de 3 de fevereiro) havia sido retirado de nossos provedores no atentado do dia 11 de março. Como trata-se de matéria pertinente, e um dos posts mais queridos por todos nós, coloco-o novamente na primeira página.
3 comentários:
O problema é que hoje temos mais "trabalhadores da educação" do que professores...
bem se vê... eu como professora posso dizer e afirmar:mesmo amando a profissão precisamos comer, pagar contas educar filhos, vestir, ir ao dentista, etc, etc,etc
quem vai fazer isso por nós...
SEM NOÇÃO...EU COMO PROFESSORA POSSO AFIRMAR:PROFESSOR TEM QUE COMER, VESTIR, IR AO DENTISTA, PAGAR IMPOSTO COMO QUALQUER MORTAL.QUEM PUBLICOU ISSO É SEM NOÇÃO, ME POUPE...
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