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quinta-feira, 24 de março de 2011

Imi Lichtenfeld e Caetano Veloso?

Faça, mas faça certo
Por Leandro Oliveira

A frase da epígrafe é de Imi Lichtenfeld (1910 - 1998), o criador da arte de defesa pessoal israelense chamada Krav Magá. É paradigmática posto que a síntese de um modo de ver o mundo.

Imi lida claramente com um terreno específico e concreto da integridade física, ou seja, ele não pretende fazer filosofia ou proselitismo. Aliás, lidando com os tipos de problemas absolutamente práticos – e radicais, de vida e morte – com os quais lidava, pouco tempo e disposição havia para falsas soluções, dubiedades ou falação.

Mas se a frase de Imi é pragmática, sua leitura pode ser um pouco mais – como dizer? – reflexiva. E tomo a iniciativa desta reflexão pois sei que a arte de Imi tem por base uma mentalidade necessária, antídoto a esta espécie de "covardia positiva" do indíviduo e, ao mesmo tempo, da valentia grosseira dos que agem e pensam em bando.

Sua arte, assim como sua vida, são os espelhos deste novo espírito judaico que instaura o Estado de Israel em maio de 1948. Um espírito cuja transmutação, a propósito, fica bem clara no poema “Israel” de Jorge Luís Borges (Elogio da Sombra, 1969)

Um homem prisioneiro e enfeitiçado,
um homem condenado a ser a serpente
que guarda um ouro infame,
um homem condenado a ser Shylock,
um homem que se inclina sobre a terra
e que sabe que esteve no Paraíso,
um homem velho e cego que há de quebrar
as colunas do templo,
um rosto condenado a ser máscara,
um homem que apesar dos homens
é Spinoza e o Baal Shem e os Cabalistas,
um homem que é o Livro,
uma boca que louva do abismo
a justiça do firmamento,
um procurador ou um dentista
que dialogou com Deus em uma montanha,
um homem condenado a ser o escárnio,
a abominação, o judeu,
um homem lapidado, incendiado
e atirado em câmaras letais,
um homem que teima em ser imortal
e que agora voltou a sua batalha,
à violenta luz da vitória,
belo como um leão ao meio-dia.


(O crescendo do poema é extraordinário; entendo que ele lida antes de tudo com a transmutação do espírito de um povo do qual somos, cada um de nós, um verdadeiro fractal.)

Me explico melhor. Por um lado, somos, vivemos e cultivamos o just do it, este extraordinário slogan que marca uma década. Imaginando nossos atos pelo compromisso pouco exigente da paixão irrefletida, das ações irresponsáveis pois auto-justificadas. Idiotizamo-nos para sermos livres. Rebelamos contra tudo e todos, para levarmos a revolução que culminará não entendemos bem onde, pois o importante é reverberar a energia sem-causa das gerações pós-68.

Por outro lado, acabamos por demais fascinados pelo temor das certezas. Este hábito mental é aquele expresso por Caetano Veloso em seu “Estrangeiro” quando comenta “o certo é saber que o certo é o certo” apenas para elencar uma plêiade de equívocos como “o macho adulto branco sempre no comando” ou “reconhecer o valor necessário do ato hipócrita, riscar os índios nada esperar dos negros...”. Pelo medo de sermos os bárbaros cheios de convicção que andam à beira da Baía de Guanabara às costas de Caetano, nos obrigamos a solução equivocada da inércia, estrangeiros “entendendo o centro” das barbaridades "daquele cara e aquela".


Entendo e respeito, ahimé!, a tensão de uma convicção errada; imagino que seja exatamente esta tensão que justifique afinal a postura intelectual da "fé na errância" que permitirá Caetano colocar sob luzes duvidosas os "convictos" em sua música (que, aliás, acho extraordinária). Uma espécie de docta ignorantia pós-moderna.

Mas ela deve ser dosada, a bem da integridade de si. É exatamente por isso que assevera Imi. E por isso o Krav Magá não é uma arte marcial mas uma arte de defesa pessoal, onde a tomada de decisão deve ser constante, rotineira, responsável - e evidentemente individual. A arte da resiliência frente adversidades, mas sobretudo da tomada de posição pela preservação daquilo que é justo e integro no espírito humano. Imi Lichtenfeld decreta “faça, mas faça certo” após dar-se conta de que, para o povo judaico, antes da defesa do corpo em combate e guerra, havia a necessidade desta convicção do espírito, que deve ser cultivado dia-a-dia.

Para, nas agruras do mundo, teimar em voltar à batalha, "à violenta luz da vitória, belo como um leão ao meio-dia".

Em poucas circunstâncias do dia-a-dia ele podia novamente dar-se o luxo de errar. Me pergunto com Imi e seu povo: e nesta vida, que é uma apenas, posso eu me dar tal luxo?

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