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quarta-feira, 6 de outubro de 2010

Poema em linha torta e três amigos


Por Pedro Gonzaga

Poema em linha torta

De todos os lados armam-se de teorias
futuristas cansados
tecnologias que cantam
com a ingenuidade
forjada dos pilantras
ou com a estupidez assanhada
dos paspalhos.

Debatem o fim da lira por todos os lados
locupletam-se com artigos
em revistas indexadas
descolam um pouco de sexo
entre o furor inerme das
comunicações de 20 minutos
tempo mais que suficiente
para os que esqueceram
Garcilaso.

Anunciam eufóricos a descoberta
da interatividade
tão antiga
vejam só
quanto o bom Homero.

Alfabetizam-se com histórias
em quadrinhos
rebatizadas com novos
e lustrosos
nomes importados:
romances gráficos
orientais mangás,
alegam ser capazes de ler na tela
300 páginas,
mas não vencem uma quadra
de Quevedo.

Estão por toda a parte
e vão vencendo,
falam mais alto
amasiam-se
lubrificam-se à voz procaz
dos suplementos literários.

Arre!
estou farto
da maçada de lhes dar combate.

Pobre de quem ergue versos e é
classe média
(valha-me a complacência do IBGE),
pois antes poderia ser maldito,
decadentista
amigo de Braque.

Hoje,
renderei no máximo
uma monografia,
louvada não por sua coragem
mas por seguir à risca
as normas da ABNT.

***

Três amigos

Todos nós
a bem da vida ser suportável
precisamos de ao menos três amigos
a quem possamos recorrer quando o acaso –
indomável fera na noite da ciência –
inevitável e certeiramente
nos golpear.

Porque há horas em que a solidão se torna
tão espessa
tão sólida
que parece ser possível
cortá-la à faca
como uma gelatina verde
esquecida na geladeira.

Precisamos de três amigos
porque no mundo atual
ninguém está disponível.
Nos romances do século XIX
um amigo bastava,
estava lá o João da Ega,
todos jantavam juntos
iam ao teatro juntos
passavam longos serões entre charutos
e bebidas quentes.
Agora há compromissos eletrônicos
a cidade se complicou:
carros a estacionar
a rotina embrutecedora do trabalho
as manias antes mesmo que a velhice chegue.
Um amigo pode nos falhar.

Precisamos de três amigos
para termos nossa própria multidão
e abraçarmos a certeza de que as palavras
frágeis
errantes
desnecessárias
têm algum sentido além de vender
carros
margarina
cidadãos respeitáveis para cargos públicos.

Precisamos de três amigos
para nos dizer quem somos
e sabermos quem eles são.

Precisamos de três amigos
prevendo que dois deles
falhem
fracassem
enlouqueçam
e que ainda assim
nos reste um.

Um dia tive três amigos.

O primeiro meteu uma bala na cabeça
cansado
prematuramente
das novidades do mundo.

O segundo foi viver na floresta
avesso
prematuramente
às gentes do mundo.

O terceiro foi viver em São Paulo
seduzido
tardiamente
pelos feitores do mundo.

Não acreditei quando me disseram
- eu era menino -
que depois de velho
já não se fazem amigos.
Que tarde se descobre a verdade
dos lugares-comuns…

Precisamos de três amigos,
mas talvez
só por garantia
precisemos
de um suplente.

Retirado de Pedrogonzaga.wordpress.com

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