por João Vidal
Caros amigos do Ocidentalismo.org,
É no venerável espírito dos correspondentes de guerra que lhes escrevo desde a cidade que se costumava chamar (ou melhor dizendo, cujo ‘nome original’* era) Rio de Janeiro. Pois há momentos em que nos vemos irremediavelmente desviados das elucubrações do exílio intelectual a que muitos de nós se dedicam pelo noticiário cada dia mais teratológico de nosso país. Por essa razão trato aqui não dos assuntos que gostaria, mas da visita ao Brasil do prodígio que é Barack Obama.
Procurei esquivar-me de todas as formas do tema e das notícias que afluíram por todos os meios de comunicação na última semana, mas fui vencido pelo cansaço e pelo simples fato de que Obama trouxe transtornos à minha vida pessoal. Pressenti que as coisas não iam muito bem no momento que tomei conhecimento de que o líder global havia resolvido, e não sido convidado a,
discursar na Cinelândia. Farejei ali a subserviência que se confirmaria com detalhes sórdidos nos dias seguintes. Primeiro veio a notícia de que a praça seria fechada e que os nativos que desejassem aplaudir o rábula de
south Chicago deveriam comparecer sem bolsas e com identidades à mão.
Determinações do serviço secreto americano, às quais se somaram a seguir ordens – prontamente atendidas pelo prefeito da cidade – de se fazer fechar todos os restaurantes do bairro no fim de semana e as estações de metrô circunvizinhas. (Também foram fechadas duas vias da Avenida Atlântica, onde se hospeda Obama no Rio.)
Simultaneamente me chegaram (sempre involuntariamente, repito) notícias de que
o PT proibira manifestações contra o ‘estadunidense’, fato não menos interessante que a indignação do presidente regional do PSTU após
protesto em frente ao consulado americano frente ao que chamou de ‘infiltração do movimento’ por elementos que teriam arremessado um ou dois coquetéis Molotov contra um segurança do referido consulado (a propósito um brasileiro, como todos os demais seguranças do consulado). Já bastante aviltado, a ponto de quase juntar-me ao PSTU em seu protesto, recebo a seguir notícia de que o primeiro concerto da série ‘fora de série’** da Orquestra Sinfônica Brasileira (não a profissional, em quarentena, mas a dita ‘jovem’), que executaria (provavelmente em vários sentidos) a raramente ouvida no Rio "Paixão Segundo São João" de Bach,
estava cancelado, uma vez que Obama desistira de falar ao público que nesse ponto já deixava suas bolsas em casa para aplaudir o lenga-lenga democrata de sempre para falar aos ‘super-vips’*** desde o palco do Teatro Municipal mesmo.
Devo dizer que o cancelamento do concerto representou para mim não apenas a perda da oportunidade de ouvir essa bela obra de Bach, mas também da possibilidade – e aqui reside verdadeiramente o ‘fora de série’ da coisa – de testemunhar a primeira Paixão de Bach na qual o crucificado seria não Jesus Cristo mas a própria orquestra. Como acontece com as grandes catástrofes, a notícias se seguiam num crescendo para baixo, numa
katabasis que, segundo suspeitava desde o princípio, poderia redundar talvez numa grande lição sobre o que é afinal o Brasil na cadeia alimentar mundial. Assim, o estranhamento ao ver a Cinelândia e o Teatro Municipal revistados pela CIA (ou FBI ou seja lá quem fossem os
cops da ocasião) deu lugar à perplexidade, quando ouvi no Jornal Nacional que em Brasília
as forças de segurança americanas procediam a revista geral do próprio Palácio do Planalto! Estava então já tomado por aquele espírito (na linguagem de nossos algozes) ‘
what the fuck?’ quando ouvi que moradores da Cidade de Deus não deveriam ocupar as lajes nem postar-se às janelas de seus barracos, e ainda que nem o prefeito, nem o governador e nem mesmo o secretário de segurança do Rio poderiam acompanhar Obama em seu passeio pela favela (os dois primeiros foram convidados, porém, para em algum momento caminhar com o presidente americano até a porta de seu helicóptero).
(Como uma pequena notícia animadora, tomo conhecimento de que a
Central Única das Favelas rompeu com Obama!)
Mas a primeira das ofensas máximas foi reservada à
visita de Obama ao Corcovado: todos os funcionários brasileiros deveriam ser dispensados e nenhum
cicerone local seria admitido. A segunda? Sem dúvida a
impagável revista (‘intensa’, segundo alguns jornais, com direito a violentas apalpadas nos países baixos) de alguns dos mais importantes ministros brasileiros, entre os quais os petistas Guido Mantega e Aloísio Mercadante (cena belíssima!), em pleno Palácio do Planalto. Tratar-se-ia de episódio destinado a mostrar como o PT, dedicado ultimamente a se apropriar compulsivamente de idéias do PSDB, levou esse comportamento
to a whole new level?: Celso Lafer tirou o sapato nos EUA?, pois nós nos deixamos apalpar pelo americanos aqui mesmo! Como bater essa?**** Outro ponto baixo foi Obama
recusar o convite para jantar com a ‘presidenta’ do Brasil, no mínimo uma deselegância sem tamanho. Circularam notícias ainda de que o espaço aéreo de Brasília teria sido fechado e controlado por aeronaves americanas, mas prefiro nem me informar a respeito e seguir acreditando que isso não pode ser verdade.
Imagino que muito mais poderia ser relatado da visita ainda em andamento do dignitário americano, mas isso aí é, pelo menos para mim, suficiente para chegar ao ponto, que é o favor que nos faz Obama. Bill Gates, Madonna e Michael Jackson, para os quais já se havia fechado o trânsito no Rio e montado extraordinários esquemas de segurança, já me haviam feito suspeitar que um tratamento no mínimo singular era dado aqui a visitantes americanos, e especialmente aos bilionários e famosos. Mas foi Obama, tripudiando da população e dos mandatários do Brasil, quem veio nos dar uma lição definitiva acerca do lugar do Brasil na ordem mundial. Se nosso ministro Patriota – ironia máxima! – avisava uma semana atrás que o Brasil
desejava uma relação ‘de igual para igual’ com a América do Norte, Obama didaticamente (foi professor em Chicago, consta) nos colocou em nosso devido lugar de quintal dos EUA. Pois não se pode respeitar quem não respeita primeiro a si mesmo. Com políticos que rosnam para os que estão abaixo enquanto tiram seus sapatos e são apalpados pelos que estão acima, e com cidadãos dispostos a bajular até mesmo quem os humilha, afirmo (como diria Mangabeira Unger) que não poderemos avançar um milímetro sequer na direção de ganhar algum respeito na comunidade internacional.
Daquela que se costumava chamar (ou melhor dizendo, cujo ‘nome original’***** era) Rio de Janeiro, e (insolitamente) com o PSTU e a Central Única das Favelas,
J.Vidal.
* Inside joke.
** Notemos a originalidade do nome.
*** Segundo consta planejava-se dividir os ouvintes do discurso entre ‘povo’, ‘vips’ e ‘super-vips’. Naturalmente apenas os dois últimos participaram da festa, ao fim e ao cabo.
**** Uma outra ofensa grave seria Obama ter citado ‘Pal Coelo’, ao fim do discurso no Municipal, como um dos mais importantes escritores brasileiros. Se por um lado não esperávamos mesmo que o presidente americano soubesse algo sobre literatura brasileira, por outro o gracejo mostrou que ele é provavelmente tão burro quanto George W. Bush.
***** Inside joke.