Um texto polêmico - o mais comentado do site da Dicta - sobre um assunto dos mais sensíveis. O que fazer com as populações e tribos sem contato com a nossa cultura - introduzi-las nas nossas atividades ou isolá-las como bichos? Joel mostra sua perplexidade quanto ao tema e explora alguns antecedentes.
por Joel Pinheiro da Fonseca
Existem no mundo, hoje, cerca de 100 tribos nunca contactadas pela sociedade mainstream. Conhecemo-las por fotos de satélite e, ocasionalmente, filmagens aéreas. Uma vez comprovada a existência, surge a pergunta: o que fazer a respeito?
A resposta da Survival International é simples: mantê-las isoladas. Pode parecer um repeteco da cansada retórica de que as culturas primitivas são muito puras e preciosas para serem infectadas por nós e devem permanecer eternas peças de museu. Não é o caso, como pode ser visto em seu FAQ. Primeiro porque eles não têm ilusões acerca da “pureza” dessas culturas: elas próprias mudam com o tempo; houve tribos na Amazônia, por exemplo, que adquiriram armas de fogo antes de conhecer o homem branco. Ninguém está perfeitamente isolado neste mundo. A Survival não busca preservar uma suposta inocência original. A proposta deles tem um motivo muito pragmático: o que acontece com as tribos depois do contato? De duas, uma: morte em conflito com madeireiros ou mendicância e prostituição em alguma cidade. Isso sem falar na baixa imunidade às nossas doenças.
A posição da ONG, portanto, é defensável. Vejo, contudo, algo de profundamente desumano em deixar a tribo isolada. Esses homens, tão homens como nós, levam uma vida material e intelectualmente muito precária. Sejamos sinceros: quase tudo em que eles acreditam acerca do universo e seu lugar nele está errado. Mesmo quem não aceite isso deve no mínimo conceder que é enriquecedor ter mais perspectivas e opiniões à disposição para que se possa escolher a melhor; por que negar isso aos índios? Ser mantido artificialmente isolado do resto do mundo é de certa forma uma traição à natureza racional deles, e eu, assim como qualquer um com um mínimo de respeito próprio, preferiria confrontar a dura realidade do que ser mantido isolado dela por sábios que zelam pelo meu bem.
Considerem este caso dramático. Uma tribo antes não-contactada foi dizimada. Sobrou, contudo, um integrante, que hoje vive sozinho no mato e prepara armadilhas pelas redondezas e ocasionalmente dispara uma flecha contra algum invasor. O articulista da Survival relata feliz, ao fim do artigo, a ação da FUNAI: isolar uma área de 3000 hectares em volta de onde ele está para que possa “viver em paz”. Em outras palavras, decidimos condenar um homem que viu todos os seus amigos e parentes morrerem violentamente a passar o resto dos seus dias no meio do mato sem entender nada do mundo à sua volta e sem ninguém com quem partilhar sua angústia; estranha paz! Isso é tratar gente como bicho. Ou não?
Há um fato que precisa ser encarado de frente: é bem possível que, uma vez estabelecido o contato, essas culturas primitivas acabem. O que o mundo moderno oferece é muito atraente; só um bacharel em antropologia é capaz de preferir a vida tribal à vida numa cidade (que é a que permite que ele estude antropologia ao invés de passar o dia caçando, guerreando e propiciando as forças da natureza com danças). Não falo isso com desprezo (mesmo porque nossa cultura tem também muita irracionalidade e é capaz de muita maldade); acho um fim nobre documentar e estudar todas as crenças e costumes, pois, dado que não existe erro absoluto, todas têm algo a dizer sobre as grandes questões da existência. Mas não nos enganemos: há um motivo pelo qual as cidades recebem migrantes e as aldeias os perdem; o voto com os pés é dos mais reveladores. Deixar que índios abandonem seus costumes e rituais em troca de um modo de vida que eles considerem preferível não é um crime; antes, é um dever. Rebato a crítica multicultural: quem somos nós para dizer que a vida deles é melhor que a nossa?
Mas é claro que o contato não pode se dar de tal forma que a única saída para eles seja a morte ou a indigência. Tem que haver alguma outra possibilidade. Historicamente, houve: lembremos do trabalho dos jesuítas no América colonial. Salvaram muitos nativos da escravidão e do extermínio, sem falar na contribuição que deram à cultura indígena, por exemplo codificando uma gramática e ensinando-lhes a escrita (nosso José de Anchieta escreveu um catecismo e até compôs poemas na língua geral), formando orquestras, etc. Também tinham suas falhas: levados por um espírito demasiadamente racionalista, tentaram construir nas nações indígenas sociedades planificadas perfeitas, das quais o Paraguai é o melhor exemplo. No fim das contas, a empreitada fracassou; mas o espírito da catequização dos jesuítas tinha algo de muito valor (que também pôde ser visto na China, povo que, em termos de sociedade, era comparável à Europa): trazer à cultura estrangeira valores e práticas boas, sem por isso destruí-la ou substituí-la pela cultura ocidental. Seria tal abordagem sequer possível hoje?
Retirado de Dicta.com.br.
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