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quinta-feira, 3 de fevereiro de 2011

Islã na encruzilhada dos valores


Acompanhadas com apreensão por todos os entusiastas dos valores Ocidentais, as recentes convulsões no oriente médio trazem perguntas bastante pertinentes sobre o real papel das liberdades individuais na construção de uma sociedade justa - e como poderá o Islã cultivar tais valores sem sua modernização.

por Joel Pinheiro da Fonseca

Talvez seja cedo para dizer, mas tudo indica que as atuais revoltas populares no mundo islâmico terão impacto duradouro. Por décadas ditadores permaneceram no poder sem grande contestação, e agora nenhum deles sente-se seguro. É possível que haja alguma conspiração por trás dessas revoltas; mas pela primeira vez na história não é necessário, como bem argumenta Gary North. As redes sociais, devido a seu baixíssimo custo de entrada, permitem a publicação dos sentimentos e a articulação de movimentos de massa sem organização central. Ela também diminui muito a possibilidade de reação do governo. Se em décadas passadas um regime autocrático não hesitaria em abrir fogo contra os manifestantes, seguros de que poucos fora dali ficariam sabendo, hoje é uma questão de minutos entre o disparo de uma bala e a transmissão da morte de um civil a milhões de computadores.

A grande questão é o que sairá desses movimentos. Há fortes traços islamistas, o que não impede que cristãos tomem parte (apesar das sempre cautelosas palavras do papa Shenouda III pedindo oração e não-participação; o momento é extremamente delicado). Islamismo não necessariamente significa algo pior ou mais odioso do que o que está no poder agora. É um fato curioso: governos seculares de países islâmicos incentivam a propagação do salafismo wahhabita importado da Arábia Saudita, pois ele nada tem a dizer de política, e portanto apresenta menos perigo imediato ao governo do que islamismos menos fundamentalistas mas mais politizados.

Rashid Ghannouchi, que voltou à Tunísia depois de anos exilado, defende governo secular, direitos das mulheres e poder aos sindicatos. Sua mensagem, embora sempre baseada no Corão, é essencialmente a mensagem de um movimento social por direitos humanos, sem nada do fanatismo de uma Al Qaeda. No próprio Egito, pouco antes dos ataques, foi publicado o “Documento de Renovação do Islã” assinado por diversos intelectuais; seu conteúdo é surpreendentemente moderno. Jihad, por exemplo, só defensiva e em terras islâmicas; convivência entre homens e mulheres aceita em universidades e ambientes de trabalho. Pode parecer pouco, mas se trata de um país onde, devido à influência saudita, o próprio convívio social entre os sexos ia sendo proibido, e no qual as mulheres são constrangidas a usar roupas cada vez mais “modestas”.

A principal característica do Islã saudita é a preocupação exclusiva com a adesão exterior a preceitos legais; todo homem deve ter barba e usar túnica, toda mulher deve estar completamente coberta, todo intercâmbio social entre os sexos é proibido, não se pode ter conta em banco, etc. Recentemente uma mulher perguntou a um doutor da lei em seu programa de rádio o que ela deveria fazer agora que as circunstâncias a obrigavam a trabalhar no mesmo recinto que um homem. O doutor sugeriu que ela amamentasse o colega. Sim, você leu isso mesmo: que ela desse de mamar a ele do próprio peito, e dessa forma seriam como mãe e filho, e portanto livres do risco da fornicação. No limite, o legalismo viola o espírito de suas próprias leis. A reação pública foi geral. A mesma reação que está por trás do documento dos intelectuais e das revoltas populares.

O discurso salafista (do qual o wahhabismo é uma vertente) de se manter fiel às práticas das primeiras gerações parece perder legitimidade entre o povo (ufa! Resta algum bom senso!). O documento dos intelectuais também adota o discurso de se preservar os valores originais do Islã. Só que, para eles, os valores não são a barba e o niqab, e sim “liberdade, igualdade, conhecimento, justiça e ciência”. Se isso tudo estava de fato na origem do Islã eu não sei; mas é bom que os intelectuais advoguem tais coisas.

Ao mesmo tempo em que as revoltas nos dão motivos para ter esperança, elas também trazem algo de preocupante. É o medo de dizer abertamente o que está em jogo, de apontar o verdadeiro valor a ser defendido, que acaba tomando segundo plano para uma outra bandeira que é necessariamente secundária: a democracia. Colocar a esperança na democracia enquanto tal é ingênuo. Ahmadinejad foi eleito democraticamente; seria ele muito melhor que Mubarak? Democracia é uma forma de se organizar o funcionamento da política; ela não traz consigo nenhum conteúdo; será o que a maioria quiser. E se a maioria quiser uma teocracia islâmica na qual cristãos e judeus pagam impostos extras e membros de outras religiões são expulsos ou mortos, é o que terão, democraticamente. O ponto fundamental, o valor que a democracia supostamente defende melhor do que outras formas de governo e por isso deve ser preferida, é o respeito aos direitos individuais. Sem isso, não há governo justo e não há esperança de melhora. Há algo de angustiante em um intelectual cristão animado com o prospecto de democracia no Egito (num dos artigos acima citados), sob a qual a minoria cristã (entre 5% e 10%) poderia ser representada.

Mas minoria no governo não significa nada; nem uma maioria significa se não há comprometimento do Estado em fazer valer os direitos individuais, como o Líbano tem mostrado claramente. A bandeira tem que ser os direitos individuais; não a democracia e não o direito das religiões ou das minorias; pois aglomerados não têm direitos, e é perfeitamente possível representar uma minoria oficialmente no governo e ainda assim tratar muitos de seus membros como cidadãos de segunda classe (por exemplo, impondo infinitas restrições à sua fé, como ocorre na Turquia, onde é praticamente impossível conseguir permissão para coisas como consertar o telhado de uma igreja), deixando os representantes oficiais da minoria a choramingar por uma tolerância cada vez menos respeitada. O que realmente importa é o direito individual, que inclui o direito a aderir à religião que lhe parecer verdadeira (e cujo corolário é, portanto, o direito a mudar de religião sem qualquer sanção), até mesmo se ela não constituir uma minoria significativa.

Os direitos individuais são a pedra de toque para saber se uma convivência minimamente harmônica entre Ocidente e Islã é possível. O que distingue o Ocidente das demais civilizações é sua base espiritual, que se concretiza em posições filosóficas: a afirmação da razão humana como eficaz para conhecer a realidade e, como consequência disso, a descoberta de uma moral objetiva. Um dos maiores méritos de S. Tomás de Aquino é exatamente esse: a elaboração racional da ética sem necessidade de fé e não circunscrita a um “povo eleito”. Nossos direitos universais inalienáveis são descendentes diretos da lei natural de S. Tomás. É muito significativo que, nos séculos XVI e XVII, enquanto a Espanha expandia seu império e escravizava povos inteiros, os teólogos de Salamanca afirmassem que os índios tinham direito às suas terras e liberdade, que nada justificava o roubo de suas posses e sua escravização, nem mesmo a recusa em se converter ao Cristianismo. Parece pouco, dado que os crimes ocorreram sem grandes empecilhos práticos? É verdade, ocorreram; mas ninguém duvidava seriamente de que eram crimes, ou seja, violações de uma ordem moral objetiva. No campo do espírito Salamanca venceu, e isso fez toda a diferença.

As grandes conquistas do Ocidente decorrem da afirmação da eficácia da razão humana no plano teórico e dos direitos individuais no plano prático. A ciência, a arte, a riqueza são consequências disso. Os muçulmanos não têm nenhum pudor em se apropriar da tecnologia ocidental (embora incapazes de contribuir eles próprios com ela) e de certas filosofias ocidentais. Marxismo, relativismo, desconstrucionismo; de fato, todas vieram do Ocidente; mas o que as caracteriza é justamente a negação daquilo que nos constitui. A razão humana é incapaz de conhecer o mundo real, e o discurso moral e político não passa de máscara para jogos de poder. Elas caem como uma luva para uma visão de mundo fideísta como é a do Islã convencional (e isso vem de muitos séculos): a razão é impotente, portanto tudo é questão de fé, e portanto ninguém tem como criticar minha fé. Não há certo e errado objetivos, apenas vontades arbitrárias em conflito; portanto, entreguemo-nos à vontade arbitrária de Deus; e ninguém pode questionar as minhas práticas. Como evidência deste casamento funesto apresento este artigo de opinião pós-moderno da Al Jazeera.

A grande questão nas atuais manifestações é se os muçulmanos serão capazes de aceitar (e eu acredito que serão, pois o bom senso natural do homem está do nosso lado) o nosso verdadeiro patrimônio, a idéia de direitos individuais válidos para todo e qualquer homem, que é o que permite que a democracia não degenere na mera vontade tirânica da maioria. A outra possibilidade é bem representada pela queima de uma efígie de Mubarak com a estrela de Davi desenhada no rosto. E daí teremos mais do mesmo: nações pobres espiritual e materialmente por restrições irracionais auto-impostas, violando a dignidade de seus próprios cidadãos e atribuindo suas mazelas a terceiros que não têm nada a ver. Importa se isso ocorre democrática ou ditatorialmente?

Retirado de Dicta.com.br

Um comentário:

L. Azevedo disse...

Bom artigo.

Mas não dá para realizar uma revolução sem liderança central e através de redes sociais. É alcançada a mobilização, mas para por aí. Sem ação, o protesto é vazio. A facilidade da adesão também tem um efeito colateral contraditório, com pessoas não participando porque "de tanta gente, se eu não fizer nada, não vai nem fazer diferença". Acaba que todos concordam com uma ideia, mas ninguém entra em via de realizá-las.

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