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segunda-feira, 28 de fevereiro de 2011

Pensamentos soltos

por Leandro Oliveira

A morte de Moacyr Scliar. Seu cuidado com a cultura judaica não é só um serviço de divulgação, como dizem muitos, mas a marca de uma estrela indomável que figurou por muito tempo como exótica em uma cultura literária que apenas muito recentemente abandonou o vício do regionalismo maneirista e do culto à miséria urbana - e suas correspondências metafísicas, por um lado ingênua, por outro nihilista.

Infelizmente não tive a oportunidade de ler nada exatamente extraordinário de Scliar, mas sequer li um terço de sua obra. Sei que no pouco que li, indubitavelmente, marcou-me o texto de um profissional sério, escritor cuidado e rigoroso com o estilo e o impacto de sua mensagem; alguém que, nesta atividade tão peculiar que é o trato com as palavras, se não foi um mestre, certamente fez por merecer seu lugar no panteão da literatura brasileira do pós-guerra como um de seus melhores artesãos.

Que a terra lhe seja leve!

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"O Discurso do Rei" era meu favorito para o Oscar. Não exatamente por ser um capolavoro, mas por ser, este ano, o mais regular entre os filmes que concorriam. Afinal, por vezes queremos apenas ver uma boa história, contada de forma correta e bem cuidada - e isso efetivamente, Tom Hopper, faz.

Para isso, contou com elenco excelente, roteiro sóbrio e eficiente, personagens construídos de forma absolutamente coerente. Tudo a serviço de um caso extraordinário, ainda mais se levarmos em conta que parte dele tenha sido verdade.

A premiação para melhor filme, a meu ver, foi justa justíssima.

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Do Rui Barbosa:

Tenham por averiguado que, onde quer que o colocarem, dará conta o sujeito das mais árduas empresas e solução aos mais emaranhados problemas. Se em nada se aparelhou, está em tudo e para tudo aparelhado. Ninguém vos saberá informar por quê. Mas todo o mundo vo-lo dará por líquido e certo. Não aprendeu nada, e sabe tudo. Ler, não leu. Escrever, não escreveu. Ruminar, não ruminou. Produzir, não produziu. E um improviso onisciente, o fenômeno de que poetava Dante: “In picciol tempo gran dottor si feo”.

A esses homens-panacéias, a esses empreiteiros de todas as empreitadas, a esses aviadores de todas a encomenda, se escancelam os portões da fama, do poderio, da grandeza, e, não contentes de lhes aplaudir entre os da terra a nulidade, ainda, quando Deus quer, a mandam expor à admiração do estrangeiro.

Pelo contrário, os que se tem por notório e incontestável excederem o nível da instrução ordinária, esses para nada servem. Por quê? Porque “sabem demais”. Sustenta-se aí que a competência reside, justamente, na incompetência. Vai-se, até, ao incrível de se inculcar “medo aos preparados”, de havê-los como cidadãos perigosos, e ter-se por dogma que um homem, cujos estudos passarem da craveira vulgar, não poderia ocupar qualquer posto mais grado no governo, em país de analfabetos. Se o povo é analfabeto, só ignorantes estarão em termos de o governar. Nação de analfabetos, governo de analfabetos. E o que eles, muita vez às escâncaras, e em letra redonda, por aí dizem.

Sócrates, certo dia, numa das suas conversações, que "O Primeiro Alcibíades" nos deixa escutar ainda hoje, dava grande lição de modéstia ao interlocutor, dizendo-lhe, com a costumada lhaneza: “A pior espécie de ignorância é cuidar uma pessoa saber o que não sabe... Tal, meu caro Alcibíades, o teu caso. Entraste pela política, antes de a teres estudado. E não és tu só o que te vejas nessa condição: é esta mesma a da mor parte dos que se metem nos negócios da república”.


Ouvi falar alguma coisa sobre o Emir Sader como o novo diretor da Casa Rui Barbosa, no Rio de Janeiro. Nada mais a declarar.

domingo, 27 de fevereiro de 2011

Como arruinar um concerto


por Leandro Oliveira

O título acima não é meu, mas de Tom Service, um dos blogueiros do "The Guardian" e responsável sobre as resenhas de música clássica. Dava conta, ali, do último evento do mini-festival que a Filarmônica de Berlim ofereceu ao público londrino esta semana.

Mas antes deste anti-climático desfecho, os fatos: à parte alguns concertos no Proms e outras pequenas incursões, desde que tornou-se regente titular da Filarmônica de Berlim - em 2002 - Sir Simon Rattle havia feito poucas aparições em Londres. Desta vez, o seus fãs domésticos (Rattle é inglês, tendo construído toda sua carreira em Birmingham) teriam a oportunidade de ouví-lo por uma semana, com esta que é decididamente a mais refinada e poderosa formação orquestral do universo, em cinco concertos consecutivos. Os eventos aconteceram no Queen Elizabeth Hall, o Barbican e o Royal Festival Hall, e foram recebidos com o tipo de carinho e frisson que os concertos da Osesp suscitam nas cidades do interior do estado. Mas, o extraordinário, é que, no caso, a "cidade do interior" era Londres: o público esgotou as vendas rapidamente, quase como um show do Michael Jackson.

A coisa toda ficava ainda mais interessante nesta rentrée pois é sabido que, finalmente, a relação entre Rattle e a orquestra - na verdade, mais do que a orquestra, o público de Berlim - havia encontrado uma espécie de equilíbrio. Após a lua-de-mel dos dois primeiros anos, algumas brigas incendiadas pela crítica alemã (ainda existe crítica em algum lugar) criaram um evidente mal-estar na relação de Sir Simon e a instituição.

Como resume Lebrecht, the question being asked is whether he has the intellect, the emotional strength and the clarity of purpose to develop the orchestra for a very different age of media dissemination. Ele tinha tudo isso: a Berliner é hoje não só uma das orquestras mais vipadas como também benchmark em suas revolucionárias iniciativas de exploração deste extraordinário mundo digital, com seu Digital Music Hall ou sua programação de entrevistas, masterclasses e trechos de ensaios online - de cair o queixo, e divulgados exemplarmente pelas tantas redes sociais como Facebook ou Twitter.

Isso dá conta de como estes dias foram preparados pela mídia, pelo público e pelos músicos. Era a chegada da mensagem musical pelas mãos do filho pródigo; o retorno de Ulisses à pátria.

Para saber sobre os concertos, sugiro as resenhas de Erica Jeal, George Hall, Andrew Clements e Tim Ashley, sabendo que o ponto culminante do evento foi a Terceira Sinfonia de Mahler, recebida elogiosamente por Lebrecht. Um furor.

E, com o furor, o anti-clímax que nos conta Tom Service. Por tratar-se de uma tragédia a que todos nós somos mercê, traduzo - livremente - para que entendam como pôde terminar em ruínas a temporada desta que é non plus ultra entre as orquestras mundiais.

Então, tendo levado o público às alturas do êxtase romântico com o grandioso hino de amor e compaixão no finale da Terceira Sinfonia de Mahler, a residência londrina de Simon Rattle com a Filarmônica de Berlim chegou a sua conclusão radiante ontem à noite. Uma música que termina com um enorme acorde final, uma apoteose em Ré maior que parece nos permitir entrever o infinito. O silêncio após a execução era a chance de deleitar-se na incandescência da imensidão da obra, sua arquitetura cósmica e o som igualmente cósmico da Filarmônica de Berlim.

E foi este momento de arrebatamento e embriaguez coletiva que foi arruinado por algum idiota (eejit no original, uma deliciosa gíria galesa) quando, no Royal Festival Hall, gritou "bravi!" - de algum dos camarotes, tenho quase certeza - antes que qualquer um de nós, incluindo a orquestra, tivesse a chance de retornar à Terra novamente. Não há violência maior por parte de um membro da audiência que valer-se deste momento único onde o tempo parece parar ao final de uma grande performance, apenas para, egoísta, fazer seu "grito solo".

E ainda houve esta pretensão ridícula de usar o plural italiano, bravi, como que para mostrar ao resto da audiência, e Rattle e seus músicos ainda mais, que ele é suficientemente esperto para saber a terminação correta dos adjetivos plurais italianos - ao invés de usar bravo que todos neste país reconhecem e empregam. Deveria haver multa para este tipo de coisa (assim como para a percussionista de jóias que Charlotte Higgins descobriu no assento S62 do Barbican), sanções que tornassem claro que você ultrapassou seu direito de ouvir Mahler ou Bruckner em público - pena a ser cumprida até que você aprenda que não é maior ou mais esperto que ninguém.

Na verdade, isto é hooliganismo musical, psicopatia narcisista e destrutiva. Viemos ouvir Mahler e a Filarmônica de Berlim ontem à noite, cara, não um solo de alguém que quer mostrar a nós o quão mais esperto é de todos pois sabe quando a música terminou. Alguém lá naquela noite sabe quem este sujeito é, seguramente - assim como quem era o proprietário do telefone celular que soou duas vezes nos primeiros movimentos. É com vocês.

sábado, 26 de fevereiro de 2011

Do amor e outros demônios

por Leandro Oliveira

Me faz falta o Marcelo Consentino. Está em Paris, o amigo, pesquisando e - oxalá! - finalizando o texto de sua tese de doutoramento sobre um filósofo místico russo do século XIX. Consentino me faz falta pois era um especialista no amor, ele que fez seu mestrado sobre o dito em Platão, o que evidentemente deu muito pano para manga. Desde então o gajo é meu conselheiro sobre este tema e muitos outros, e sua ausência, a despeito do que digam os tecnófilos, não se resolve pelo Skype.

Outro dia mesmo pensei em como ele me resolveria o problema: um rapaz ama uma garota, resolve que ela é a paixão de sua vida, mas não chegam ao supra-sumo, ao aleph; algo falta ou promete incessantemente, e enquanto isso evidentemente ele sofre, ela sofre mais, pois gosta dele. Mas não parece que se entendam de fato. Tempos discutindo a relação fazem deles sombras deles mesmos, já que buscando cavar nos escombros de si os motivos para os tropeços afetivos e comportamentais que os incendeiam, não imaginam que a escuridão por onde tropeçam não é a presença de algo mas a ausência de luz. Então se separam ou, pior, ficam juntos para todo o sempre chafurdando na mesma lama?

E dizendo isso lembrei de uma passagem extraordinário do Nelson Rodrigues. A cada Natal, ligando para um conhecido, o Dr. Alceu de Amoroso Lima, Nelson recebe sempre uma referência algo que bizarra, uma resposta aos votos quase protocolar onde ouvia "Ah, acabei de rezar por você". Nelson se aflige com a resposta, pois ela reitera-se ano após ano. E culmina com uma passagem extraordinária:

Bem me lembro do nosso último 24 de dezembro. Ouço a voz do dr. Alceu: — “Alô?”. Estou imaginando: — “Vai repetir tudo, igualzinho como da outra vez”. Digo: — “Dr. Alceu, é o Nelson Rodrigues. Como vai essa figura?”. Foi de uma larga e cálida efusão: — “Ah, Nelson, acabei de rezar por você”. Tomo um baque. Ele insiste: — “Tenho pedido muito por você”. Aproveito uma pausa e dou o meu recado: — “Vim desejar-lhe todas as felicidades etc. etc.”.

(E eu queria pingar, como no pires de um cego, a moeda da minha oração.) Baixa em mim o tédio: começo a crer que o amigo é uma impossibilidade. A conversa continuou e chegava a ser irreal, quase um pesadelo humorístico. Subitamente, ele suspira: — “Ah, Nelson, você aí nessa lama!”. Exatamente: — lama. Começo a ter medo do resto. Dr. Alceu dizia “lama” familiarmente, como se falasse de uma tia minha, bem idosa e até estimável. Tive a idéia de responder-lhe: — “Minha lama vai bem. E a sua, dr. Alceu?”.

Acabei com aquilo sumariamente: — “Até logo, até logo. Passar bem”. Desliguei e confesso: — com um desgosto do Natal e, até, um tédio retrospectivo do presépio do Tico-Tico. Nunca mais telefonei, nunca mais. Mas, ao relembrar o episódio, imagino um mundo em que as senhoras se cumprimentassem assim: — “Como tem passado a sua lama?”. Eis o que o dr. Alceu, na sua imodéstia de santo, não percebe — qualquer um tem seus íntimos pântanos, sim, pântanos adormecidos. É preciso não despertá-los. Mas certos acontecimentos acordam a lama do seu negro sono. Quando isso acontece, a alma começa a exalar o tifo, a malária, e a paisagem apodrece.


Reli a passagem escapando das leituras por vezes enfadonhas dos estudos acadêmicos. Lembro que ao reler pensei imediatamente na minha lama, aquela que não costumo visitar, e meditei sobre onde ela se esconderia. Projetos falhos, desejos torpes, palavras frouxas, atos vis. Acontece que era dia de sol, então não tive qualquer desconforto em pensar nelas como monstrinhos animados, gremlins que não se molham à meia noite. E fiquei ali, fumando meu cigarro semanal.

Hoje, com a fumaça de outro cigarro, me veio a explicação. Pude fantasiar, através dos caminhos divertidos da fumaça que se desintegrava no ar, como Marcelo me explicaria sua leitura de Platão. Fantasei, ia dizendo, que talvez esta paixão entre duas pessoas é apenas o reflexo de um amor maior, o Amor, cujo grau e instância é imenso, completo, infalível. Eis o que queria dizer: talvez aquele Amor - imenso, completo, infalível - seja o tema mesmo da falência desse aqui, ordinário, despedaçado, cheio de rugas; ao intuir tais alturas nos damos conta de nossa pequenez de anjos caídos. Errantes, sofremos esta nossa condição, o preço por estarmos vivos.

(Marcelo possivelmente me lembraria de um dia quando um judeu foi crucificado para que não soframos mais... a que responderia pensar Nele todo dia, sempre com o temor de que em Seu sofrimento esteja apenas o bom coração de um amigo tentando me consolar.)

sexta-feira, 25 de fevereiro de 2011

Pergunte ao Julio Lemos


por Julio Lemos

Que tal as línguas nórdicas e suas literaturas? Já chegou perto do finlandês? Fiquei muito impressionada com o Kalevala e estou me aventurando na língua e tals.
O Kalevala me interessa sim, e o finlandês sempre. Mas falta fôlego por hora. Poxa, fico contente. Congratulations. Depois me conta mais sobre isso. Ih, virou conversa ˆˆ

Por que os livrecos de autoajuda fazem tanto sucesso? O povo está carente?
O povo é burro. Mas anyway, tenho compasión.

Na tua opinião, como é que tem homem que tem coragem de bater em mulher?
Os homens fazem isso porque são, quase sempre - por mais que tentem disfarça-lo fazendo-se de fortes e convictos do seu charme - gente absolutamente insegura, especialmente quando escondem isso a todo custo.

É possível a um homem admirar a beleza plástica de um corpo feminino nu virtuosamente?
Lógico, ô puritano. Frase do insuspeito, reacionário, ultracatólico, etc, Nicolas Gomez Dávila: "Un cuerpo desnudo resuelve todos los problemas del universo". Só não cito um santo canonizado em 2002 para não ficarem chocados.

Epicurioso, epicurista ou epicurado?
Aristotélico.

Quer fazer perguntas ao Julio? Clique aqui.

O erudito de poucos livros

por Leandro Oliveira

Afogado em leituras e aulas na web, deparo-me - em um raro momento de devaneio - com a passagem abaixo:

Por tudo que sei da vida, dos homens, deve-se ler pouco e reler muito. A arte da leitura é a da releitura. Há uns poucos livros totais, uns três ou quatro, que nos salvam ou que nos perdem. É preciso relê-los, sempre e sempre, com obtusa pertinácia. E, no entanto, o leitor se desgasta, se esvai, em milhares de livros mais áridos do que três desertos.

Certa vez, um erudito resolveu fazer ironia comigo. Perguntou-me: “O que é que você leu?”. Respondi: “Dostoievski”. Ele queria me atirar na cara os seus quarenta mil volumes. Insistiu: “Que mais?”. E eu: “Dostoievski”. Teimou: “Só?”. Repeti: “Dostoievski”. O sujeito, aturdido pelos seus quarenta mil volumes, não entendeu nada. Mas eis o que eu queria dizer: pode-se viver para um único livro de Dostoievski. Ou uma única peça de Shakespeare. Ou um único poema não sei de quem. O mesmo livro é um na véspera e outro no dia seguinte. Pode haver um tédio na primeira leitura. Nada, porém, mais denso, mais fascinante, mais novo, mais abismal do que a releitura.


Nelson Rodrigues, "Uma Banana como Merenda" in "O Óbvio Ululante".

quarta-feira, 23 de fevereiro de 2011

ESPERANDO OS BÁRBAROS

O que é, juntos no fórum, que esperamos?

Os bárbaros, que chegam hoje.

Por que, em sessão, nosso senado não
faz nada e os senadores não legislam?

Porque os bárbaros chegam hoje.
Que novas leis passar? Chegando,
Os bárbaros farão as suas.

Por que nosso monarca está coroado
e em pompa, desde cedo, no seu trono
defronte à maior porta da cidade?

Porque os bárbaros chegam hoje
e, pronto a recebê-los, nosso
monarca até mandou que se escrevesse
para seu chefe um édito no qual
lhe outorga honras e títulos diversos.

Por que ambos cônsules e até pretores,
em ricas togas púrpuras, se exibem
com anéis ofuscantes de esmeraldas
e braceletes cheios de ametistas?
Por que ostentam, lavrados de ouro e prata,
bordões esplêndidos em suas mãos?

Porque os bárbaros chegam hoje
e adornos tais os impressionam.

Por que os tribunos se mantêm calados,
nem, como de hábito, um sequer perora?

Os bárbaros, que chegam hoje,
execram falas e eloqüência.

Por que este mal-estar (Como os semblantes
se põem sombrios!) que despovoa abrupto
rua e praça em tumulto? - E por que todo
mundo volta apreensivo para casa?

Porque anoitece, os bárbaros não chegam
e gente vinda da fronteira afirma
que já não há mais bárbaro nenhum.

E agora, sem os bárbaros que, à sua
maneira, eram nossa última esperança?

de KONSTANTINOS KAVÁFIS (1863-1933), por Nelson Ascher.

terça-feira, 22 de fevereiro de 2011

"O Cisne Negro"


Talvez cheio de referências demais, o fato é que "O Cisne Negro" é um filme radical. Seu estilo "ame-o ou deixe-o" não escapou aos nossos colaboradores. Agora Dirceu envia, de Londres, suas explorações sobre a nova criação de Darren Aronofsky.

por Dirceu Villa

Darren Aronofsky, diretor de "Pi" (1998), filme fundamental no cinema, sobre um matemático extraordinário, seu professor sábio e sobre como um número descoberto quase ao acaso num aparente bug computacional se torna a chave tanto para judeus ortodoxos que buscam na Torá uma combinação de palavra e número que seja o nome de deus, quanto para umas pessoas muy delicadas por trás da Bolsa de Valores, dispostas a controlar a nova informação numérica que pode prever as flutuações. Inteligentemente, Aronofsky propõe essa linha, mística e matemática, se estendendo também dos meros negócios à ordem mirífica da teologia.

O filme é muito complexo. A onipresença do número na natureza, entrevista na spira mirabilis das galáxias à concha do molusco Náutilus, e às mais complexas descobertas humanas de proporção (cf. Lionardo Da Vinci) lhe dá um princípio que se desdobra, como na mística judaica, em palavra que soletra o código para tudo. Deixei, no começo deste blog em 2007, o trailer de "Pi" passando numa janela que mantinha com links para o youtube. Aronofsky fez outros filmes excelentes, e uma grande besteira, "The Fountain" (2006).

Mas agora realmente atingiu um ponto de excelência semelhante a "Pi", com "Black Swan" ("Cisne Negro"). Não vou falar do filme, uma obra-prima, mas de coisa formidável que o filme suscita intencionalmente, sobretudo se posto sob a luz cegante de "Pi", com o qual tem muitas relações.

Uma das hipóteses de "Black Swan" pode-se traduzir em: o que acontece quando o artista se torna a obra? A gente supõe que exista uma relação profunda entre quem realiza uma obra e esse resultado, a obra ela-mesma. Discutem em simpósios e tudo o mais quanta distância se pode supor entre o artista e aquilo que faz.

Idealmente, não deve existir nenhuma distância. Isso pode ser lido como um romantismo. Não é, ou, sendo, diluiria a força de sua fórmula. A transfiguração do autor no inventar da obra é coisa infinitamente mais antiga, mesmo que “autor”, nesse caso, tenha sido pensado como um canal entre duas instâncias de outra forma isoladas.

A obra de arte perfeita seria aquela em que o artista mergulhasse de tal maneira que se tornasse a obra, & vice-versa; a velha história de abyssus abyssum invocat, ou “o abismo invoca o abismo”: você olha pra ele, ele olha pra você. É o perigo da dissolução na luz ou na escuridão, como toda genuína busca de conhecimento acaba trazendo. "Doctor Faustus", sobretudo o de Marlowe, propunha isso, mas Goethe pensava, é claro, em algo semelhante.

No princípio era o verbo. E depois lemos que o verbo se fez carne. Essa correlação, por mais exclusiva que fosse em sua teológica origem, abriu um precedente, que aliás já estava aberto pela velha idéia grega de poesia como um fazer: a palavra põe algo (seja lá o que for) em ação efetiva.

Os egípcios cobriam de signos seus cadáveres, encomendados com sabedoria a uma vida além desta, por caminhos sagrados e secretos, e as palavras tinham o dom de iluminar essa escuridão da ignorância mortal. A cada uma das portas com guardas o iniciado diria: “sei o seu nome e sua função, permita que eu passe”.

Era também a palavra que punha vivo o Golem (e o desfazia), porque a palavra é, como os poetas concretos disseram, verbivocovisual, e porque, além dessa completude sígnica, ela carrega em si uma ancestralidade que nos retorna ao princípio da apreensão das coisas e de sua nomeação, é um elo vivo com o passado remoto & suas transformações. É como a luz: se a física retraça o trajeto de eras em seu caminho, também a palavra guarda possibilidades semelhantes. O sentido alquímico do homúnculo não era literal, por exemplo, mas uma apreensão simbólica de virtudes e potências.

Em geral, e após o romantismo, esse modo de entender uma obra de arte, de que criador e criatura são estranhamente um, e ambos vivos, virou uma banalidade, que os artistas ruins hoje usam apenas para dizer que lá estão eles, e deram o sangue em sua triste porcaria (alguns pobremente presos à mais simplória literalidade). Ou se tornou uma metáfora do conhecimento que vai além de suas medidas, reduzindo Prometeu a um âmbito caseiro, no "Frankenstein" da Srta. Shelley, cujo irmão poeta sonhava palavras bordadas e rendadas. Porque o conhecimento é medido sem as proporções mágicas que não apenas o autorizavam antes, mas o instrumentalizavam. Como John Dee, matemático, geômetra, médico, astrônomo e feiticeiro da rainha Elizabeth I escreveu em seu "Monas Hieroglyphica": aut discat, aut taceat, "ou aprende, ou cala".

Qualquer um que tiver discernimento, no entanto, perceberá como os grandes artistas encarnam suas obras, e como suas obras se tornaram tão peculiares a eles: não de uma forma banal, de tradução barata daquele arcano verbo encarnar, mas como aquelas coisas que se moviam em suas obras foram animadas de vida, dentro de suas próprias vidas.

É um pensamento desconcertante; de certa maneira, faz supor que o artista canaliza forças muitas vezes além de sua compreensão, que moldam (ou distorcem) o tecido da realidade. Platão era dessa opinião jocosséria, e o banimento que cai sobre o poeta na "República", penso, deveria ser lido em primeiro lugar como o atestado de que o poeta e a sociedade organizada não se entendem, eles se repelem. E se repelem porque a poesia porá complicações e dúvidas numa vida sem imaginação e corriqueira, organizada pelo Estado para funcionar num sentido amplo e geral, republicano.

É o perigo e também a necessidade deste poder muito específico da poesia; não apenas o das palavras de um verdadeiro artesão delas, mas o da imaginação.

Os estóicos antigos tinham uma teoria muito interessante sobre o assunto, in illo tempore, a teoria do pneuma, o calor em que são canalizadas as idéias seminais que produzem o phantastikón, ou o plasmar algo inventado na realidade, como um fantasma, resultando num lutar com sombras, precisamente como em "Black Swan", que, como os melhores leitores dos estóicos fizeram, não decide sobre o que é realidade e o que não é, uma vez que o limite de visão é sempre coisa proporcional às visões e a quem as tem ou não.

As imagens têm poder, a imaginação focalizada, também. As palavras recompõem, por som, desenho e composição, uma parte desse fantasma, dando ao airy nothing a local habitation and a name, como escreveu Shakespeare, justamente sobre esses poderes poéticos, em "A Midsommer Nights Dreame" (Um Sonho de uma Noite de Verão).

Marsilio Ficino sugeria o tipo de som a se ouvir para determinado efeito na pessoa; sugeria a focalização de determinadas imagens e o convívio com elas, para acentuar determinadas qualidades. Era a mesma hipótese que se espelhava no livro sobre poesia, escrito por Lorenzo de’ Medici, o Magnífico, em meados do século XV. Mas não é apenas um pensamento antigo e perdido nas areias do tempo.

Kandinsky e Mondrian eram muito místicos a respeito do efeito de cores e formas, no que essas potências agenciam; Pound tinha perfeita ciência do poder evocatório e invocatório de certas palavras, assim como de certos ritmos; Arnold Schönberg não era nenhum inocente sobre a qualidade encantatória da música. Etc.

Esquecemos disso porque muito da nossa poesia se tornou lixo demagógico, ou por outro lado teórico, sem técnica (tekhné se traduz por ars em latim, de modo que técnica e arte eram sabiamente uma coisa só), sem imaginação, sem poder simbólico algum sobre o que quer que seja.

Sobretudo porque poucos lembraram desse enorme poder organizado pela poesia & pela arte, e muitos dos que lembraram são gente século XVIII demais para conceber e aceitar coisa tão... tão... fantásticas (como os seres aéreos de Shakespeare, lidos em geral como meras gracinhas).

Aronofsky, como todo grande artista, não é um desses. Seu filme, perfeito (palavra oportuna) ao que se propõe, o prova com substância nova para o grande e antigo enigma.

Retirado de O Demônio Amarelo.

Simon Rattle on Sibelius's Symphonies

por Leandro Oliveira

A Filarmônica de Berlim realiza nesta temporada seu primeiro ciclo completo das sinfonias de Sibelius. A informação evidentemente me causou espanto, mas é assim. Em entrevista para o extraordinário canal digital da Filarmônica, Sir Simon Rattle comenta parte dos desafios do ciclo (uma pena, o entrevistador é fraco fraco...)

segunda-feira, 21 de fevereiro de 2011

Anedota...

One day at the weekly colloquium in the Harvard Psychology Department (with which the Psycho-Acoustic Laboratory was affiliated), the guest speaker was at his worst and gave an extraordinarily long and dull lecture on a mathematical theory of behavior. Unfortunately, the audience responded in kind, and at equally great length, with pointless questions and irrelevant comments. When at long last it was all over, von Békésy led me directly to the blackboard in his office, picked up a piece of chalk, and said "This is the most important but least known equation in all of the social sciences. Always remember it, for as you have just seen, it completely describes a great deal of human behavior."

And then — summing up the whole afternoon neatly - he wrote:

0 + 0 = 0


Floyd Ratliff in "Georg von Békésy (1899—1972) - A Biographical Memoir".

Google Art

František Kupka - Katedrála

Aos amantes das artes, a dica de Joel Pinheiro da Fonseca

por Joel Pinheiro da Fonseca

Mais um benefício da revolução que é a Internet. O Google tem agora um site que permite acessar o acervo de grandes museus ao redor do mundo com imagens de alta resolução. Não exatamente substitui uma visita aos originais, mas ao menos dá um gostinho. Foi-se a era dos caros catálogos de museu?

Retirado de Dicta.com.br

sábado, 19 de fevereiro de 2011

Estátua da paciência


Ainda sobre o Oscar: sobre aqueles que não estarão na cerimônia.

por William Silveira

Como é possível levar a sério uma premiação que deixou de reconhecer nomes como Alfred Hitchcock, Federico Fellini e Stanley Kubrick? Os esquecimentos - eufemismo barato para erros injustificáveis - ganham proporção se soubermos que Hitchcock esteve por cinco vezes no Kodak Theatre, assim como quatro foram as indicações de Fellini e Kubrick.

O inexplicável e o imponderável fazem parte de qualquer premiação e há quem diga que as injustiças carregam certo charme e sabor ao tapete vermelho. Não raro, diz-se que há mais prestígio em juntar-se à lista dos esnobados que a dos vencedores. A ironia, sabe-se, guarda em si suas verdades.

Desde a premiação de 2010, a Academia aumentou de cinco para dez os indicados na categoria de Melhor Filme. Inegavelmente, é uma forma de diminuir injustiças, mas principalmente de acomodar e dar visibilidade a um número maior de títulos que, caso contrário, facilmente terminariam como estatísticas diluídas na grande quantidade de produções norte-americanas. Seria assim com o interessante "Inverno da Alma" e com o bom "Minhas mães e meu pai", ambos concorrendo ao prêmio principal.

Não é o papel destes filmes, contudo, protagonizar a cerimônia. Entende-se, com razão, que o reconhecimento foi dado ao serem indicados e que, com muita sorte, podem sair com uma estatueta por atuação ou roteiro. A primeira pista para tal conclusão vem de uma incongruência apresentada pela própria Academia. Se determinado título concorre entre os dez selecionados a Melhor Filme e seu diretor não está presente nas cinco vagas destinadas a Melhor Diretor, então é muito provável que o filme em questão seja apenas um espectador de luxo.

Poucas atividades movimentam tanto os cinéfilos - e certamente lhes dá mais prazer que assistir à cerimônia - quanto apontar a miopia da premiação. Mesmo com uma lista de dez indicações muito boa, alguns nomes ecoam como injustiçados e poderiam perfeitamente estar presentes no próximo dia 27, em Los Angeles.

- Melhor filme: "O Escritor Fantasma" e "Ilha do Medo". Dois títulos muito aguardados, principalmente o de Polanski, nunca estiveram perto da unanimidade de crítica e público. Lançados no primeiro semestre, sofreram, sem sombra de dúvida, com a distância em relação à premiação.

- Melhor diretor: Christopher Nolan. Se ter sido preterido em 2009 pelo ótimo trabalho em "Batman - O Cavaleiro das Trevas" bastou para que os fãs do diretor megalomaníaco o rotulassem como persona non grata, Hollywood confirmou a suspeita - até que se prove o contrário - ao deixá-lo de fora pelo badalado "A Origem".

- Atriz: Julianne Moore. Além de ruiva - o que deveria bastar para a indicação -, Moore está muito bem no drama contemporâneo "Minhas mães e meu pai". O problema foi ter contracenado com a atuação irretocável de Annette Bening. Pesou ter de indicar duas atrizes do mesmo filme para a categoria e Bening foi bem escolhida.

- Ator: Ryan Gosling. Recebeu inúmeros elogios ao compor o par romântico com Michelle Williams (indicada para Melhor Atriz) em "Blue Valentine" ("Namorados para sempre", sem data de estréia no Brasil). O drama do jovem casal fez uma boa carreira antes do Oscar, mas até agora só levou o prêmio da Associação de Críticos de Chicago.

- Atriz coadjuvante: Mila Kunis e Olivia Williams. Muito competente ao ajudar na composição da oposição de Natalie Portman em Cisne Negro, Kunis não foi indicada por represália, pois ninguém que se preze deve participar de projetos como "Max Payne" e "O Livro de Eli". Por sua vez, Williams sabe que uma supporting actress não deve roubar a cena e assim o fez. Poderia muito bem ocupar a cadeira destinada a Amy Adams, dona de mais beleza que talento.

- Filme estrangeiro: "Abutres". Mais um filme do talentoso diretor argentino Pablo Trapero. Fala-se muito que a premiação expressiva de "O segredo dos seus olhos" no ano passado intimidou a Academia a indicar outra produção argentina com Ricardo Darín - o que soa como pleonasmo em Hollywood.

- Documentário: "Waiting for Superman". Vencedor de Melhor Documentário no Festival de Sundance, o filme sobre as falhas do sistema público de educação nos Estados Unidos foi apontado como favorito à categoria e surpreendeu ao sequer concorrer.

- Montagem: "A Origem". Quem assiste ao filme de Christopher Nolan facilmente percebe quanto do resultado final é méritos do trabalho seguro e eficiente do montador Lee Smith. Como nos prêmios técnicos somente estão aptos a votar os profissionais da área, pode-se imaginar que Smith não goza de grande admiração, uma vez que o atabalhoado trabalho de Pamela Martin ("O Vencedor") conseguiu indicação.

Por essas e outras, a Empire divulgou há pouco o que a revista considera como as 22 maiores injustiças da história do Oscar. Vale a pena conferir: http://www.empireonline.com/features/22-incredibly-shocking-oscars-injustices

sexta-feira, 18 de fevereiro de 2011

Jazz para que te quero...


por Leandro Oliveira

Infelizmente, o Theatro Municipal segue o mantra da permanente improvisação. Após a saída repentina de Alex Klein, foi nomeado - de modo certamente não menos repentino - o maestro Abel Rocha. Ele será o responsável para levar adiante os projetos do centenário da instituição, no papel de seu diretor artístico.

A reedição pouco humorada de "Apertem o cinto, o piloto sumiu"? Tomara que não. Mas é fato que o talentoso maestro - cujos serviços musicais à cidade são incontestáveis - aceitou muito mais que um desafio artístico que o corajoso papel de performer como homem-bala. Não há o que ele ou qualquer outro possam fazer em um lugar como esse, a não ser cultivar-se como bucha de canhão, improvisando à tarde a solução para o incêndio que se conflagra pela manhã.

Ironia do destino: ao contrário das acusações (injustas) que levaram à queda de seu antecessor Rodrigo de Carvalho, Alex Klein saiu não por "inépcia artística". Seria impensável, artista consagrado que é. Embora possamos refletir sobre sua habilidade para gerir uma instituição complexa como o Theatro Municipal sem experiência administrativa prévia (muitos duvidavam de sua capacidade), na verdade, justiça seja feita, ele sequer teve tempo de mostrar incompetência. Ambos (e a eles soma-se José Maria Florêncio, o antecessor de Rodrigo) sairam por não ter como bancar politicamente as decisões necessárias para a reestruturação do projeto - soluções dolorosas mas factíveis e certamente conhecidas por todos.

O problema do Theatro Municipal é a ilustração da falta de capacidade da burocracia pública de gerir uma instituição cultural dinâmica, independente e com planos de médio prazo. E do poder de grupos internos de pressão que, ao fim e ao cabo, querem apenas que tudo fique como está. Nelson Kunze resume de forma lapidar:

A nossa vergonha cultural é o Teatro Municipal de São Paulo, mais tradicional palco da cidade, que neste ano, de portas fechadas, comemora tristemente o seu centenário. Onerando os cofres públicos em milhões de reais todos os meses, o Teatro Municipal não oferece à cidade o bem para o qual foi concebido, qual seja, a ópera. (A bem da verdade, não oferece nem ao menos música sinfônica.) Amarrado a uma estrutura antiquada e burocrática no pior sentido do termo, o teatro é implacável na destruição de qualquer iniciativa de mudança. E a lista dos maestros e gestores moídos pela máquina acaba de ganhar mais um medalhão, desta vez o oboísta e maestro Alex Klein.

Não pensem que os derrotados são fracos, incompetentes ou covardes. A lista ostenta nomes de personalidades que se afirmaram entre os melhores do mundo – taí Alex Klein para confirmar. Ocorre que não há força humana capaz de enfrentar a morosidade e a impessoalidade cínicas da burocracia do estado. Um projeto de lei em tramitação na Câmara de Vereadores, que pretende transformar o Teatro Municipal em uma fundação pública, é a luz que brilha no fim do túnel. O túnel, contudo, parece um filme de terror – quanto mais se avança nele, mais fraca a luz vai se tornando.


A "luz que brilha no fim do túnel", no entanto, me parece ser menos a saída que um trem desgovernado que vem à nossa direção. Esperar a aprovação da lei que transforma a personalidade jurídica gestora do Theatro é um falso caminho pois a personalidade jurídica é apenas um modelo administrativo para cuidar de coisas muito mais fundamentais. E estas coisas fundamentais seguem desconversadas. Quais serão as estratégias de sustentabilidade financeira, marketing e coordenação administrativa? Como serão geridos os dilemas de trabalho como passivo trabalhista, avaliação do corpo artístico, contratação de corpo técnico, previdência?

Após tanto tempo inerte, seria de se esperar que ao menos este plano detalhado estivesse publicado pela administração atual responsável pelo Theatro. Mas não está, ninguém sabe, ninguém viu, provavelmente não há.

Toda sorte a Abel Rocha! Mas não me iludo - todos amigos, sem exceção, confundem votos de auspícios com a projeção da vontade como realidade (uma maneira bizarra de wishful thinking), e acham que "agora vai!". As condições da nomeação do maestro não são sequer razoáveis e ele deve ter recebido pouco mais que escombros das gestões anteriores (há, pelo que parece, um esboço de temporada, a partir de onde deverá trabalhar...).

Não esperemos milagres, exatamente para que não queimemos mais este ator importante da cultura paulista. Se for bem sucedido, ou seja, se sobreviver por mais de uma temporada, mais do que maestro e gestor, Abel Rocha terá mostrado apenas seu talento como jazzer.

quinta-feira, 17 de fevereiro de 2011

Cultura sem limites


por Leandro Oliveira

Bráulio Mantovani, Luís Felipe Pondé, Nivaldo Cordeiro, o papai aqui, Laís Bodansky... é parte da turma de gente buona que participa da primeiríssima edição do projeto "Cultura sem Limites" na Livraria Cultura do Conjunto Nacional.

Cursos sobre Dostoiévski, Ocidente, Nelson Rodrigues ou - meu assunto preferido - a cultura como negócio vão balançar as rochas da Avenida Paulista. Vagas limitadas: informem-se, divulguem, façam a inscrição: o primeiro curso já no final de Março.

Para saber mais do "Cultura sem limites", clique aqui.

quarta-feira, 16 de fevereiro de 2011

Homens como se fossem bichos


Um texto polêmico - o mais comentado do site da Dicta - sobre um assunto dos mais sensíveis. O que fazer com as populações e tribos sem contato com a nossa cultura - introduzi-las nas nossas atividades ou isolá-las como bichos? Joel mostra sua perplexidade quanto ao tema e explora alguns antecedentes.

por Joel Pinheiro da Fonseca

Existem no mundo, hoje, cerca de 100 tribos nunca contactadas pela sociedade mainstream. Conhecemo-las por fotos de satélite e, ocasionalmente, filmagens aéreas. Uma vez comprovada a existência, surge a pergunta: o que fazer a respeito?

A resposta da Survival International é simples: mantê-las isoladas. Pode parecer um repeteco da cansada retórica de que as culturas primitivas são muito puras e preciosas para serem infectadas por nós e devem permanecer eternas peças de museu. Não é o caso, como pode ser visto em seu FAQ. Primeiro porque eles não têm ilusões acerca da “pureza” dessas culturas: elas próprias mudam com o tempo; houve tribos na Amazônia, por exemplo, que adquiriram armas de fogo antes de conhecer o homem branco. Ninguém está perfeitamente isolado neste mundo. A Survival não busca preservar uma suposta inocência original. A proposta deles tem um motivo muito pragmático: o que acontece com as tribos depois do contato? De duas, uma: morte em conflito com madeireiros ou mendicância e prostituição em alguma cidade. Isso sem falar na baixa imunidade às nossas doenças.

A posição da ONG, portanto, é defensável. Vejo, contudo, algo de profundamente desumano em deixar a tribo isolada. Esses homens, tão homens como nós, levam uma vida material e intelectualmente muito precária. Sejamos sinceros: quase tudo em que eles acreditam acerca do universo e seu lugar nele está errado. Mesmo quem não aceite isso deve no mínimo conceder que é enriquecedor ter mais perspectivas e opiniões à disposição para que se possa escolher a melhor; por que negar isso aos índios? Ser mantido artificialmente isolado do resto do mundo é de certa forma uma traição à natureza racional deles, e eu, assim como qualquer um com um mínimo de respeito próprio, preferiria confrontar a dura realidade do que ser mantido isolado dela por sábios que zelam pelo meu bem.

Considerem este caso dramático. Uma tribo antes não-contactada foi dizimada. Sobrou, contudo, um integrante, que hoje vive sozinho no mato e prepara armadilhas pelas redondezas e ocasionalmente dispara uma flecha contra algum invasor. O articulista da Survival relata feliz, ao fim do artigo, a ação da FUNAI: isolar uma área de 3000 hectares em volta de onde ele está para que possa “viver em paz”. Em outras palavras, decidimos condenar um homem que viu todos os seus amigos e parentes morrerem violentamente a passar o resto dos seus dias no meio do mato sem entender nada do mundo à sua volta e sem ninguém com quem partilhar sua angústia; estranha paz! Isso é tratar gente como bicho. Ou não?

Yedeh mutter denkt ir kind iz shain...

por Leandro Oliveira

Essa é para o Julio Lemos e o Eduardo Wolf: uma entrevista com Evgeny Kissin, talvez o mais importante pianista de sua geração. O psicanalista Max Kohn de Paris fala com seu convidado em ídiche.


O título deste post é uma brincadeira.

terça-feira, 15 de fevereiro de 2011

O cisne indômito de algum lugar


por Leandro Oliveira

"Cisne Negro" não é a reconstrução de um pesadelo, não é sobre desejo de superação, nem sobre "a capacidade humana de se chegar a limites". Tampouco é uma pornochanchada - a tese é até boa, mas o sexo, no filme, não é mais que uma metáfora. E é mais que filme de terror, já que se vale de sua gramática e retórica, mas ultrapassa o gênero vertiginosamente.

"Cisne Negro" é uma narrativa iniciática - com mestre (Thomas Leroy), personagens aprendizes de oposição complementar (Lily x Nina), pseudo-modelos ou demônios (a Mãe x Beth MacIntyre). Está tudo lá, como o professor Olavo de Carvalho mostrou acontecer em outro filme de Hollywood, "Silêncio dos Inocentes", que também pouca gente à época entendeu. Não deixa de ser curioso que, quinze anos após o artigo que mudava toda a leitura de um filme que ganhou o Oscar, ainda hoje no Brasil "as palavras 'desejo' e 'paixão'" sigam como "chave universal" para explicar tudo.

Em "Cisne Negro", uma característica inescapável, e óbvia, é que o roteiro não força a distinção da dualidade para a resolução: ao contrário da narrativa iniciática tradicional, prevê que os pólos complementares convirjam ao final. Uma subversão do gênero justificado por uma espécie de simbolismo gnóstico? Talvez.

De qualquer maneira, é como narrativa iniciática que as falhas do filme devem ser apontadas; intuo algumas, mas precisaria rever outras vezes e acho que não tenho paciência... O importante é que não consigo imaginar que se possa achar nele outra filiação de gênero senão por liberdade poética; seria como tentar ler "A Bela Adormecida" tomando-a por um Bildungsroman.

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"Bravura Indômita" é uma obra menor dos irmãos Coen, mas mesmo assim um filme de primeira linha. Distante do ethos do filme de Henry Hathaway, também baseado no romance de Charles Portis, os irmãos não deixam de se valer de alguns truques fáceis dos filmes de ação; talvez seja uma homenagem aos westerns, talvez apenas uma forma de não se levar muito a sério... Eu não os sinto plenamente justificados.

Mas os brothers são mais do que hábeis e jamais subvertem o tema fundamental da trama, que é o compromisso de Mattie Ross em fazer justiça pela morte de seu pai. Um filme impossível no Brasil, não pela técnica mas pelo norte moral; para eles é possível tal drama, para nós seria apenas um conto-de-fada.

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Julio Lemos, que ao lado de João Vidal e Marcelo Cosentino são os únicos da minha idade que me fazem mudar de idéia, não gostou do filme da Sofia Coppola, enquanto eu o adorara.

Por conta de Julio, portanto, tive que rever "Em Lugar Qualquer" - e de fato, me dar conta que o havia supervalorizado. Mas tenho uma explicação: quando o assisti pela primeira vez, emocionava-me a companhia de minhas afilhadas. Acho que isso me fez sentir na pele o drama de Johnny Marco (eu também sou um astro pop, pois não).

Não somos por vezes assim, entendendo nas coisas aquilo que queremos delas?

Revendo o filme já em São Paulo, longe das minhas meninas, descobri que realmente é bom, mas não um capolavoro. Sigo discordando em uma coisa, no entanto: se entendi o argumento de Julio, para ele o filme não é isso tudo por ser "sem finalidade"; e exatamente por ser "sem finalidade" que eu o curti.

Ah, e ambos concordamos que Sofia, como diretora, é craque. E não, ela não é o Anticristo.

segunda-feira, 14 de fevereiro de 2011

A despedida do Fenômeno

por Leandro Oliveira

Sem dúvida, a melhor parte do nosso jornalismo está na cobertura esportiva. Hoje li um artigo como não se escreve mais, do Antero Greco no Estadão. Em que outro editorial é possível ler coisas como essa sem pensar em puros salamaleques retóricos?

(...) Mas entra para a história como um dos grandes do esporte. Craque nasceu, craque se mostrou por onde desfilou sua classe, craque será sempre. As imagens estão aí para fazer com que ninguém, nunca, seja sufocado pela saudade de suas proezas. Como amante do futebol, só me resta fazer reverência a um dos reis da bola.

Ao vivo, só vi Ronaldo em campo quando matava aulas no Colégio Pedro II. Um amigo de meu irmão, torcedor do São Cristóvão, comentava sempre do "Ronaldinho", um jovem prodígio que, com a nossa idade à época, era o artilheiro da segunda ou terceira divisão do campeonato. Ele nos convencia a fazer coisas melhores que participar das aulas de Latim...

"Ronaldinho" já mostrava o que seria e dali, dos campos do São Cristóvão, partiu para o Cruzeiro. Tenho essa pequena vaidade da convivência clandestina com um gênio antes de seu reconhecimento público, antes de seu estrelato. Quando consagrou-se na Holanda, eu com prazer dizia - "puxa, lembro dele jogando ali na quase várzea que era a sede de um time do subúrbio carioca"... E ninguém acreditava pois oficialmente eu nunca matava aulas.

Obrigado Ronaldo!

Alessandra Colassanti & Marin Alsop em São Paulo

por Leandro Oliveira

Não costumamos fazer agenda de espetáculos no Ocidentalismo.org, mas não posso deixar de recomendar "Anticlássico - uma Desconferência e o Enigma Vazio" da Alessandra Colassanti.

Uma bailarina de vermelho, recém-saída de um quadro de Dégas, profere uma "desconferência" sobre o "enigma vazio". Diz-se amiga íntima da Monalisa e profere referências e frases de efeito: Walter Benjamim, Foucault e Derrida. Diz ter sido namorada de celebridades modernistas, ídolos pop e ícones contemporâneos.


Uma sátira ao desconstrucionismo. A Alessandra é o máximo.

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Toda mídia especializada preocupada com "a impressão de uma identidade própria" pela Marin Alsop na Osesp. Cheguei a ler algo como "o maior desafio da nova maestrina titular da Osesp é moldar a orquestra à sua imagem e semelhança, dar-lhe uma identidade musical". Sinceramente, falta do que dizer: todo profissional da área sabe que, hoje, o maior desafio artístico de uma orquestra é conseguir ser de tal forma maleável a poder executar repertórios distintos sem "sotaque"; Mozart diferente de Beethoven e este diferente de Wagner. E, ainda, saber responder a visão de mundo de cada intérprete convidado a subir ao pódio.

Poucos dizem, mas entre as atribuições do Regente Titular da Osesp está a participação na seleção de novos músicos. Como a seleção de ministros do STF, é aí que reside a parte mais sensível para a formação desta maleabilidade rigorosa, com perdão do aparente oxímoro.

Como fazer? É necessário adequar o repertório às necessidades da formação e do público; aumentar, a cada encontro, o vocabulário técnico da orquestra. Esse foi o esforço de Abbado e agora Rattle na Berliner Philarmoniker, ou Gilbert com sua Filarmônica de Nova Iorque. Ou de Valery Gergiev em seus celebrados encontros com a Filarmônica de Viena.

O mais é esperar o tipo de relacionamento antiquado onde uma espécie de "Grande Pai" forma com a orquestra sua família. "À sua imagem e semelhança"? Deus nos livre. Não há o "som Rattle" ou o "som Gilbert" simplesmente porque não se espera isso deles. Temos orquestras que funcionam como organismos vivo, responsivos e responsáveis, a executar distintas obras do repertório em seus diversos estilos e com total familiaridade.

Do ponto de vista da "formação da orquestra", é isso que devemos esperar de Alsop na Osesp, não uma instituição "à sua imagem", seja lá o que isso queira dizer. E para isso, é inquestionável, ela é mais do que adequada, como mostrou em seu Mahler do ano passado.

(Mahler é um compositor cheio de dificuldades na construção de planos sonoros idiossincráticos. Exatamente ali, Alsop foi uma craque.)

sexta-feira, 11 de fevereiro de 2011

And the winner is...


É fato incontestável: a cerimônia de premiação do Oscar é um sonífero. Glamouroso para quem vai (calma, eu nunca fui...), a verdade é que assistir pela TV os intermináveis salamaleques, as piadas privadas e os tantos intermezzi musicais de gosto duvidoso, é tarefa para poucos. William explica o caso.

por William Silveira

Sei que pode ser difícil aceitar, mas o Oscar não se importa com você. Digo isso, pois logo a premiação desponta no horizonte do mês de fevereiro e um discurso patético – mais patético porque repetitivo – vem à tona. Distantes da originalidade, as variantes críticas levam todas ao mesmo destino: o reconhecimento da Academia de Hollywood não tem mais a mesma importância, perdeu o prestígio; deixou de ser relevante.

Apesar da conclusão equivocada, algumas premissas são válidas. Sabe-se, por exemplo, que 82 anos após a primeira edição, a premiação demonstra cada vez mais dificuldades em renovar-se. Tentativas de modernização aconteceram nos últimos anos, principalmente ao acelerar e desmecanizar a dinâmica dos apresentadores, retirarem os intermináveis números musicais e diminuir – ainda que sem muito sucesso - o tempo de duração do evento. Em contrapartida, a edição passada mostrou como as inovações surtiram pouco efeito. Não bastasse a cerimônia ter se estendido mais que o planejado, um ritual lamentável de elogios artificiais foi inserido durante a premiação de melhor ator e atriz, postergando o aborrecido protocolo da noite.

Um remodelamento radical, como sugerem os detratores, não acontecerá única e simplesmente porque a Academia é composta de “velhos conservadores”, mas principalmente por ser imponderável arriscar qualquer modificação que ponha em risco a aura de glamour construída desde 1929. E isso não é por acaso.

Recrimina-se a suposta parcialidade com que os prêmios são distribuídos, o interesses financeiro, a excessiva e descarada presença de lobby, profissionalizado pelos irmãos Weinstein (Miramax Films e The Weinstein Company) e praticado for your consideration. Ora, se o problema residisse única e exclusivamente aí, então bastaria lembrar que Cannes e Veneza, bastiões de um cinema inovador, independente e de les film d'art, sofreram duras críticas quanto aos métodos e critérios por detrás das escolhas que levaram Juliete Binoche e Quentin Tarantino premiarem Michael Haneke e Sofia Coppola, respectivamente.

Mesmo com a preocupante e sintomática queda de audiência, o Oscar não vê grandes motivos para mudança. Uma premiação com entrada em tapete vermelho, smoking e transmissão para todo o mundo não está aí para agradar cinéfilos, críticos de cinema e espectadores. Sua função, longe de ser entertainment, acaba por torna-se mais nobre: sustentar o maior e mais caro mercado cinematográfico do mundo. Aos que encaram com desdém tamanha responsabilidade, faça uma rápida avaliação e procure descobrir de onde vem o dinheiro para produções dispendiosas como as que estão em cartaz. Certamente não é da venda de ingressos (receita eternamente ameaçada pela pirataria) e muito menos de filantropia estatal, como acontece no Brasil. Quem entende Cinema como algo realizado quase que divinamente, com uma idéia, uma câmera e quinze pratas, simplesmente não enxerga o Cinema, mas uma aventura de meninos.

Quando a cerimônia dura quatro horas, com discursos intermináveis e intragáveis, pode ter certeza que a exibição dos anunciantes permitirá não só um novo "A Rede Social", blockbuster qualificado, como também – e o mais importante – a sobrevida de projetos arriscados como o excelente "Cisne Negro".

quinta-feira, 10 de fevereiro de 2011

Pergunte ao Julio Lemos


por Julio Lemos

A gente ainda vai entender o que é a consciência?
Nope. Mas não custa tentar. É o tipo do objeto de estudo que foge quanto mais ansiedade se tem. E temos aí uma ciência da mente bem ansiosa, quase histérica.

Você já foi vegetariano/comunista/ateu? Fala mais sobre isso. Por que o vegetarianismo é gnóstico?
Eu já fui veggie e ateu. Comunismo e coisas semelhantes sempre me fizeram rir. Aos 17 eu entrei numas nóias alternativas e acabei parando de comer carne. Grazadeus durou só um ano. O vegetarianismo é gnóstico porque os gnósticos, quase todos, seguiram essa dieta (é um indício forte, não acha?). Mas no mérito, creio que é porque, no fundo, se postula que comer animais é um ato de violência. Mas somos onívoros; e mudar a dieta não é evoluir. Provar que seria um caso de evolução seria impossível.

Você é impassível à crueldade com animais?! Não digo militante contra, mas onde está seu coração?
Eu sou seletivo com animais: há os de que gosto muito (aves de rapina e canoras, cães & gatos, trutas & salmões, aranhas, escaravelhos, etc) e outros que me dão nos nervos (pombas, com exceção da pomba-do-ar, centopéias, mariposas, etc). Mas você inferiu invalidamente ao pensar que sou a favor de crueldade com animais. Ninguém é a favor disso, e muito menos eu! Gosto mais de animais - e tenho um catálogo deles na minha memória, com nomes científicos, aspecto, hábitos, etc - do que a média. O que me enche as paciências são esses econazis, essas manifestações de adulto de bermuda e chinelo, certas ONGs e esse desprezo pela raça humana. E outra, ficar se derretendo demais diante dos animais é simplesmente retardado; eles não merecem isso.

Como desenvolver o senso crítico?
Lendo muito e ficando muito confuso por 10 anos; e repetindo o procedimento.

"O uso de três verbos é sempre indício de português ruim." Mas quando se usa a locução verbal com "deveria" (deveria ter feito, deveria ter escolhido, etc.), não há alternativa.
Sim, sim. Quando não há alternativa é isso, não há alternativa :-)

Após anos estudando o islamismo, concluí que Maomé foi mais cristão que Cristo. O que acha?
Acho que você é um idiota, mas tudo bem.

Você acredita que bandido bom é bandido morto?
Bem, eu sou bandido. Mas se não fosse, concordaria com você.

Alguma dúvida? Pergunte ao Julio Lemos aqui.

quinta-feira, 3 de fevereiro de 2011

Islã na encruzilhada dos valores


Acompanhadas com apreensão por todos os entusiastas dos valores Ocidentais, as recentes convulsões no oriente médio trazem perguntas bastante pertinentes sobre o real papel das liberdades individuais na construção de uma sociedade justa - e como poderá o Islã cultivar tais valores sem sua modernização.

por Joel Pinheiro da Fonseca

Talvez seja cedo para dizer, mas tudo indica que as atuais revoltas populares no mundo islâmico terão impacto duradouro. Por décadas ditadores permaneceram no poder sem grande contestação, e agora nenhum deles sente-se seguro. É possível que haja alguma conspiração por trás dessas revoltas; mas pela primeira vez na história não é necessário, como bem argumenta Gary North. As redes sociais, devido a seu baixíssimo custo de entrada, permitem a publicação dos sentimentos e a articulação de movimentos de massa sem organização central. Ela também diminui muito a possibilidade de reação do governo. Se em décadas passadas um regime autocrático não hesitaria em abrir fogo contra os manifestantes, seguros de que poucos fora dali ficariam sabendo, hoje é uma questão de minutos entre o disparo de uma bala e a transmissão da morte de um civil a milhões de computadores.

A grande questão é o que sairá desses movimentos. Há fortes traços islamistas, o que não impede que cristãos tomem parte (apesar das sempre cautelosas palavras do papa Shenouda III pedindo oração e não-participação; o momento é extremamente delicado). Islamismo não necessariamente significa algo pior ou mais odioso do que o que está no poder agora. É um fato curioso: governos seculares de países islâmicos incentivam a propagação do salafismo wahhabita importado da Arábia Saudita, pois ele nada tem a dizer de política, e portanto apresenta menos perigo imediato ao governo do que islamismos menos fundamentalistas mas mais politizados.

Rashid Ghannouchi, que voltou à Tunísia depois de anos exilado, defende governo secular, direitos das mulheres e poder aos sindicatos. Sua mensagem, embora sempre baseada no Corão, é essencialmente a mensagem de um movimento social por direitos humanos, sem nada do fanatismo de uma Al Qaeda. No próprio Egito, pouco antes dos ataques, foi publicado o “Documento de Renovação do Islã” assinado por diversos intelectuais; seu conteúdo é surpreendentemente moderno. Jihad, por exemplo, só defensiva e em terras islâmicas; convivência entre homens e mulheres aceita em universidades e ambientes de trabalho. Pode parecer pouco, mas se trata de um país onde, devido à influência saudita, o próprio convívio social entre os sexos ia sendo proibido, e no qual as mulheres são constrangidas a usar roupas cada vez mais “modestas”.

A principal característica do Islã saudita é a preocupação exclusiva com a adesão exterior a preceitos legais; todo homem deve ter barba e usar túnica, toda mulher deve estar completamente coberta, todo intercâmbio social entre os sexos é proibido, não se pode ter conta em banco, etc. Recentemente uma mulher perguntou a um doutor da lei em seu programa de rádio o que ela deveria fazer agora que as circunstâncias a obrigavam a trabalhar no mesmo recinto que um homem. O doutor sugeriu que ela amamentasse o colega. Sim, você leu isso mesmo: que ela desse de mamar a ele do próprio peito, e dessa forma seriam como mãe e filho, e portanto livres do risco da fornicação. No limite, o legalismo viola o espírito de suas próprias leis. A reação pública foi geral. A mesma reação que está por trás do documento dos intelectuais e das revoltas populares.

O discurso salafista (do qual o wahhabismo é uma vertente) de se manter fiel às práticas das primeiras gerações parece perder legitimidade entre o povo (ufa! Resta algum bom senso!). O documento dos intelectuais também adota o discurso de se preservar os valores originais do Islã. Só que, para eles, os valores não são a barba e o niqab, e sim “liberdade, igualdade, conhecimento, justiça e ciência”. Se isso tudo estava de fato na origem do Islã eu não sei; mas é bom que os intelectuais advoguem tais coisas.

Ao mesmo tempo em que as revoltas nos dão motivos para ter esperança, elas também trazem algo de preocupante. É o medo de dizer abertamente o que está em jogo, de apontar o verdadeiro valor a ser defendido, que acaba tomando segundo plano para uma outra bandeira que é necessariamente secundária: a democracia. Colocar a esperança na democracia enquanto tal é ingênuo. Ahmadinejad foi eleito democraticamente; seria ele muito melhor que Mubarak? Democracia é uma forma de se organizar o funcionamento da política; ela não traz consigo nenhum conteúdo; será o que a maioria quiser. E se a maioria quiser uma teocracia islâmica na qual cristãos e judeus pagam impostos extras e membros de outras religiões são expulsos ou mortos, é o que terão, democraticamente. O ponto fundamental, o valor que a democracia supostamente defende melhor do que outras formas de governo e por isso deve ser preferida, é o respeito aos direitos individuais. Sem isso, não há governo justo e não há esperança de melhora. Há algo de angustiante em um intelectual cristão animado com o prospecto de democracia no Egito (num dos artigos acima citados), sob a qual a minoria cristã (entre 5% e 10%) poderia ser representada.

Mas minoria no governo não significa nada; nem uma maioria significa se não há comprometimento do Estado em fazer valer os direitos individuais, como o Líbano tem mostrado claramente. A bandeira tem que ser os direitos individuais; não a democracia e não o direito das religiões ou das minorias; pois aglomerados não têm direitos, e é perfeitamente possível representar uma minoria oficialmente no governo e ainda assim tratar muitos de seus membros como cidadãos de segunda classe (por exemplo, impondo infinitas restrições à sua fé, como ocorre na Turquia, onde é praticamente impossível conseguir permissão para coisas como consertar o telhado de uma igreja), deixando os representantes oficiais da minoria a choramingar por uma tolerância cada vez menos respeitada. O que realmente importa é o direito individual, que inclui o direito a aderir à religião que lhe parecer verdadeira (e cujo corolário é, portanto, o direito a mudar de religião sem qualquer sanção), até mesmo se ela não constituir uma minoria significativa.

Os direitos individuais são a pedra de toque para saber se uma convivência minimamente harmônica entre Ocidente e Islã é possível. O que distingue o Ocidente das demais civilizações é sua base espiritual, que se concretiza em posições filosóficas: a afirmação da razão humana como eficaz para conhecer a realidade e, como consequência disso, a descoberta de uma moral objetiva. Um dos maiores méritos de S. Tomás de Aquino é exatamente esse: a elaboração racional da ética sem necessidade de fé e não circunscrita a um “povo eleito”. Nossos direitos universais inalienáveis são descendentes diretos da lei natural de S. Tomás. É muito significativo que, nos séculos XVI e XVII, enquanto a Espanha expandia seu império e escravizava povos inteiros, os teólogos de Salamanca afirmassem que os índios tinham direito às suas terras e liberdade, que nada justificava o roubo de suas posses e sua escravização, nem mesmo a recusa em se converter ao Cristianismo. Parece pouco, dado que os crimes ocorreram sem grandes empecilhos práticos? É verdade, ocorreram; mas ninguém duvidava seriamente de que eram crimes, ou seja, violações de uma ordem moral objetiva. No campo do espírito Salamanca venceu, e isso fez toda a diferença.

As grandes conquistas do Ocidente decorrem da afirmação da eficácia da razão humana no plano teórico e dos direitos individuais no plano prático. A ciência, a arte, a riqueza são consequências disso. Os muçulmanos não têm nenhum pudor em se apropriar da tecnologia ocidental (embora incapazes de contribuir eles próprios com ela) e de certas filosofias ocidentais. Marxismo, relativismo, desconstrucionismo; de fato, todas vieram do Ocidente; mas o que as caracteriza é justamente a negação daquilo que nos constitui. A razão humana é incapaz de conhecer o mundo real, e o discurso moral e político não passa de máscara para jogos de poder. Elas caem como uma luva para uma visão de mundo fideísta como é a do Islã convencional (e isso vem de muitos séculos): a razão é impotente, portanto tudo é questão de fé, e portanto ninguém tem como criticar minha fé. Não há certo e errado objetivos, apenas vontades arbitrárias em conflito; portanto, entreguemo-nos à vontade arbitrária de Deus; e ninguém pode questionar as minhas práticas. Como evidência deste casamento funesto apresento este artigo de opinião pós-moderno da Al Jazeera.

A grande questão nas atuais manifestações é se os muçulmanos serão capazes de aceitar (e eu acredito que serão, pois o bom senso natural do homem está do nosso lado) o nosso verdadeiro patrimônio, a idéia de direitos individuais válidos para todo e qualquer homem, que é o que permite que a democracia não degenere na mera vontade tirânica da maioria. A outra possibilidade é bem representada pela queima de uma efígie de Mubarak com a estrela de Davi desenhada no rosto. E daí teremos mais do mesmo: nações pobres espiritual e materialmente por restrições irracionais auto-impostas, violando a dignidade de seus próprios cidadãos e atribuindo suas mazelas a terceiros que não têm nada a ver. Importa se isso ocorre democrática ou ditatorialmente?

Retirado de Dicta.com.br

quarta-feira, 2 de fevereiro de 2011

Direitos autorais?

por Leandro Oliveira

Nossos ministros cantores. Depois do Gilberto Gil, Juca Ferreira... Juca não canta? Ah, mas isso é um detalhe! No saguão do aeroporto, retornando do Rio, encontrei Ana de Hollanda. Soube depois que fizera uma canja no show da Miúcha, ali no CCBB. Achei um pouco sui generis, mas era coisa de família.

Agora é, inevitável, a hora e a vez da Ministra (ops!). E com ela uma discussão muito nobre sobre direitos de autor, Creative Commons e tudo isso que nos atormenta desde pelo menos o Renascimento. O problema se torna evidente com a internet, que permitiu o elogio à pirataria e o acesso a informações aparentemente sem qualquer possibilidade de controle.

Para nós que amamos música clássica tais características dificilmente poderiam ser ditas "problemas". Hoje, uma benção, podemos ouvir, ou por vezes ver partituras e performances de virtualmente todo o repertório composto pela humanidade. O Google é o maior amigo da atual musicologia.

Mas para o mercado clássico a coisa está longe de deixar de ser controversa. Demorou um pouco mas infelizmente a política de direitos de autor tomou conta dos canais clássicos do YouTube. Basicamente, se uma orquestra ou selo encontram uma de suas performances no site sem sua autorização podem requerer sua retirada - ou, mais bizarro, seu emudecimento. Considero uma bobagem, a perda da oportunidade de alcançar um novo mercado, mas isso fica para outro post. Chama atenção outro incidente, hilário. Primeiro, o vídeo abaixo:


Algo estranho? Algo muito estranho. Trata-se da gravação de 4’33″ de John Cage, a famosa música onde prevê um pianista que, ao entrar no palco, fica por quatro minutos e trinta e três segundos em silêncio... uma provocação cheia de intenções filosóficas (ou pseudo-filosóficas) mas que nem sempre é bem entendida. Agora o inusitado: se tentarmos tocar o vídeo em sua página original veremos a seguinte informação:

AVISO Este vídeo contém uma faixa de áudio que não foi autorizada por WMG. O áudio foi desativado.

O ápice do nonsense burocrático desautorizar a "execução" do silêncio. (E nem é a primeira vez que a performance da peça cria tais embaraços). É ou não não uma maravilha?

terça-feira, 1 de fevereiro de 2011

Invasões bárbaras

¿Es un imperio
esa luz que se apaga
o una luciérnaga?

por Leandro Oliveira

Recebo pelo mailing da Filarmônica de Berlim - ainda a mais prestigiosa instituição sinfônica do universo - o link para o mini documentário abaixo:


É Lang Lang agitando as multidões. Dona Tania - que de música entende só por ouvir por aí - perguntou "são meninos pobres?". Eu dei um muxoxo: "não mami, são estudantes alemães".

Nascido em 1982, Lang é celebrado pelo New York Times como o “hottest artist on the classical music planet”. O adjetivo é adequado, ele é "hot" como o são Penelope Cruz e Johnny MArco do último filme de Sophia Coppola... E ao lado de Gustavo Dudamel e alguns outros, botam para quebrar o nada decadente mundinho clássico com as caras e bocas dos astros de rock. É uma necessidade: todas as jovens figuras atuais da tradição clássica cumprem o figurino - e a mais recentemente "trabalhada" pela mídia internacional é a eloqüente Alice Sara Ott, que pode ser apreciada no vídeo abaixo.


Como com Lang, o vídeo não dá ênfase à música alguma. No caso de Ott, parecem impressionantes mais seus dotes como desenhista que qualquer outro. Assim como Lang, ela fala mal mas fala - tartamudea algumas obviedades sobre os "Estudos Transcendentais" de Liszt. Ao mostrar sua caminhada e postura para foto de charmes inegáveis Alice parece, de fato, saída do catálogo de modelos da Ford. Tem 21 anos, e com tantos talentos será difícil negar-lhe o espaço: afinal, de passagem, ela ainda toca piano com bastante proficiência - e tal como Lang Lang, Dudamel e tutti quanti, cultiva as expressões faciais e gestual de mãos ao vento, como que regendo uma orquestra imaginária, necessários para "ficar bem" no vídeo.

Mas o que antigamente seria importante para concurso de Miss Paulínia, hoje é fundamental para subir aos palcos de concerto de todo mundo. Parece uma tendência irreversível: a música clássica se deixou fascinar pelo canto da sereia do show business e, com ele, os tons pastéis dos homens de marketing. Acontece o mesmo em toda parte, e na política isso chega a ser patético. Mas lidando com uma linguagem hermética que não é aquela do discurso público, hoje maestros, pianistas, cantores se vêem reféns de expedientes que não os dizem respeito. Outra: não lhes é mais necessário ter inteligência, disciplina e o cultivo permanente da imaginação musical, aquelas ferramentas que fizeram os grandes mestres das gerações de artistas clássicos do século XX; precisam - e o Lang Lang é apenas a referência mais vistosa - apetecer ao vídeo (o que é uma forma de beleza), parecer simpáticos e tagarelas (o que hoje é uma forma de carisma) e tocar bem rápido e forte (o que hoje é uma forma da musicalidade).

É o admirável mundo novo, e ele chegou a Berlim encantando multidões de jovens estudantes de música - de sete a setenta anos.

O norte da cerveja

Crônicas de viagem e as andanças pelo norte da Europa de Érico Nogueira.

por Érico Nogueira

Estive ausente por vários dias. Tratava-se da última viagem desta minha temporada européia, desta feita para Estocolmo, Copenhague, Amsterdã revisited e Londres, - em que, avariado da esbórnia, encontrei o meu caro Dirceu Villa, sempre um gentleman, cujo ouvido fiz de pinico. Sorry, Mr. Villa: that's the way the world ends.

Estocolmo é do outro mundo; Copenhague é fenomenal; Amsterdã não precisa de comentários; e Londres é a matriz da junk food. Mas calma lá.

A Suécia, pra mim, eram as cenas e enredos do Bergman e do Strindberg. Mas ela é muito mais: é frio pacacete, sem dúvida, mas o frio é adoçado, é mitigado, é derretido, em suma, pela afabilidade do povo - e pelo gosto da cerveja e do snapps, consumidos à larga pelos suecos, sim, e também pelos turistas com American Express. Obrigado Corvão.

Na cervejaria "Falcon", regados à cerveja homônima, topamos com um sessentão norte-americano radicado em Estocolmo, que lá ia "fazer um som". Meu irmão gritou logo "Neil Young!", e eu continuei "Tell me why!"; fomos atendidos; e lá nos deixamos estar (e deixamos nossas calças), pedindo e recebendo "Creedence!", "Grateful dead!", "Johnny Cash!", "Bob Dylan!"... Foi incrível.

Acordamos às seis da matina, fazia uns menos quinze, - mas lá fomos nós pra estação de trem, rumo a Copenhague. O bom da ressaca é que o radiador ferve.

Chegando ao reino da Dinamarca, um passeio daqui, uma água dali, um repouso de uma horinha: e dá-lhe cervejaria "Apollo", em que o néctar da casa foi acompahado de uma costela no bafo simplesmente sublime; ficamos sem palavras. No dia seguinte, depois de conhecer o cais, o palácio real e tudo o que havia pra conhecer, a dobradinha foi a lendária "Carlsberg" com Frikadeller, ou almôndegas de peixe, no almoço - outro prato típico -, e estas bombas da "Vesterbro Bryghus" no jantar, antes do avião para Amsterdã:


Minha cara diz tudo: uma paulada. "A Dinamarca é para os fortes", pensei. E fomos rever Amsterdã.

Quem diz Amsterdã, diz "Café Hoppe", que tem servido cerveja e bitterballen desde 1670, e diz também "Amstel", uma das melhores cervejas que pode haver, para o paladar brasileiro: leve, sem ser aguada, e muito saborosa, sem ser enjoativa. Em suma: um primor.

Entre outras coisas, revi o parque Vondel, achei uma edição de 1928 das "Werken" de Karel van de Woestijne, e visitei o Museu Van Gogh. Amsterdã é uma das cidades do meu coração. Eu ainda vou traduzir o "Lucifer" de Joost van den Vondel, podem anotar.

London, London.

Não sei se foi o muito de cerveja e de quitutes deliciosos que experimentáramos, mas o fato é que Londres, e a sabidamente oleosa e sem graça culinária inglesa, não nos pegou. A cidade é suntuosa, evidentemente. Mas, se é que dois dias por lá são o suficiente para fundamentar um juízo justo, supeito que o "algo mais" do Reino Unido esteja no campo, em Oxford, Cambridge, a Escócia e a Irlanda. No pé em que as coisas estão, porém, pode ser que o errado seja eu, que dirijo pela direita.

De volta a Roma, Adriana e eu ficamos meio tristes: agora é arrumar as malas e voltar para o Brasil. Foi um ano maravilhoso, aqui na velha Europa.

Retirado de Ars Poetica.
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