por Roberto Campos
Sempre achei que o Brasil não se salvaria pelo silogismo. Mas poderia ser salvo pela anedota...
Nesse sentido, a contribuição de Paulo Francis para a modernização da mentalidade brasileira foi mais relevante que a minha. Enquanto eu produzia secos silogismos, Francis usava o veneno da ironia e o punhal do sarcasmo para colocar na defensiva os cultores da mitologia nacionalista e estatizante, que reduziu nosso potencial de crescimento e nos enfeudou à pobreza. Seu passado marxista o tornou conhecedor de técnicas de lavagem cerebral.
Que essa operação de exorcismo foi eficaz, prova-o a grande mudança na atitude popular. Os monopólios estatais, antes ungidos de sacralidade estratégica, são hoje vistos com indignação resignada. Alguns, como a Telessauro e a Embratel, caíram no plano anedótico e enriquecem o vocabulário de xingamentos dos devotos da Internet, neurotizados pelas dificuldades de acesso.
Começa-se a perceber que os funcionários das estatais há muito tinham privatizado as empresas públicas, sugando-as através de abusivas contribuições para os fundos de pensão, que se expandem comprando outras empresas. Fica o Tesouro à mingua de dividendos, e o público, à mingua de serviços.
Um pouco mais resistente à erosão da mitologia estatizante é a Petrossauro, cujo monopólio constituía uma aberração lógica por sermos no mundo o único país importador que preferia comprar petróleo de estrangeiros a receber capitais para produzi-lo internamente. (...)
Paulo Francis tinha carradas de razão ao dizer que "Petrobrás é uma excrescência arcaica e nos custa os olhos da cara"... A trajetória intelectual de Francis foi uma gradual contaminação pela verdade e uma contínua erosão de preconceitos. De radical de esquerda, nos anos 50 e 60, e vocalizador do protesto político nos ano 70, passou a "radical liberal" a partir dos anos 80. Qual o primum movens da conversão?
Um dos fatores foi, certamente, sua desilusão com o "socialismo real". Nunca foi, entretanto, entusiasta do despotismo burocrático de Stalin grande carniceiro. Preferia a visão trotskista, um pouco mais romântica, da "revolução permanente".
Em sua rota revisionista, Francis deve ter sido abalado pelas revelações de Kruschev sobre os crimes de Stalin e pelo massacre da Hungria em 1956. Talvez mais decisivo ainda tenha sido o aniquilamento do socialismo com face humana, na Invasão da Checoslováquia em 1968.
0 segundo fator, talvez mais fundamental foi seu auto-exilio nos Estados Unidos em 1970, depois de ter sido quatro vezes preso, como subversivo, pelos militares brasileiros, na histeria anticomunista que se seguiu ao Ato Institucional n. 5. Lá continuou a lutar pela abertura política no Brasil e seus textos, enviados de Nova York, deram-lhe popularidade como fazedor de opiniões na classe estudantil e na classe média, ansiosas pela descompressão política.
Com sua enorme capacidade de metabolismo intelectual, Paulo Francis logo se impregnou dos valores do capitalismo democrático, com uma fórmula imperfeita, porém insubstituível de conciliar minimamente três objetivos quase inconciliáveis: liberdade política, eficiência econômica e equidade social.
Para Francis, um elitista intelectual, não foi difícil assumir a visão realista de que, tendo os homens nascido completamente desiguais por desígnio divino, a tentativa igualitária é uma farsa despótica, não nos restando mais que uma administração humana das desigualdades.
Em minhas numerosas conversas com Paulo Francis, em Manhattan, dei-me conta de que ele, após um processo longo de desmistificação, havia percebido melhor que muitos economistas profissionais a receita misteriosa do desenvolvimento econômico: liberdade competitiva numa economia de mercado e entorno institucional e judiciário respeitador das regras do jogo.
As "riquezas naturais", supostamente cobiçadas pelos imperialistas, não são fundamentais, pois o Japão enriqueceu sem elas. A educação não garante o progresso, pois a Rússia entrou em colapso anos após realizada a fórmula de Lenin: educação mais eletrificação.
É importante a taxa de poupança, mas só se os investimentos não forem desperdiçados. A moeda estável seria uma condição necessária porém não suficiente. Também o capitalismo não basta, a não ser que seja liberal e competitivo, pois são desastrosos os capitalismos de Estado.
Tendo sofrido na fase autoritária brasileira por seu fanatismo pelas liberdades políticas, passou nos Estados Unidos a ser um fanático também da liberdade econômica.
Para trás ficaram as ingenuidades do Estado benfeitor, das estatais estratégicas, do controle social de preços e de mercado. Eram caipiragens retrógradas. De uma visão marxista do Governo como um "justiciador", passou uma visão nietzcheana do Governo como um "predador".
Em seus últimos tempos, Francis sofria de uma "inversão de patrulhamento"; na juventude, fora patrulhado pela direita; na maturidade passou a ser patrulhado pelas esquerdas, que nunca compreenderam, como e por que se livrara ele da sedução marxista.
Minhas conversas com Paulo Francis versaram quase sempre sobre a "angústia do atraso", à busca, ambos nós, de explicações para a tenacidade de nossa miséria. Mas seus interesses culturais eram de larguíssimo espectro.
Abrangiam o teatro (começara sua carreira como critico e ator teatral), o cinema (em que se tornou um erudito), a literatura nacional e mundial (que lia com ecumênica voracidade), o balé e a música. Nesta, esbanjava erudição, humilhando-me com disquisições sobre duas modalidades musicais que pouco me atraiam: óperas e Wagner.
As crônicas que publicou, ao longo dos anos, sob a rubrica "Diário da Corte", eram um esquisito buquê de crítica literária e artística, análise política, palpitologia econômica e saborosa psicanálise de amigos e inimigos. Seu estilo era inconfundível e inimitável. Afinal de contas, há muitos escritores mas poucos pugilistas de idéias. Deixa um vácuo em nossa paisagem literária. É uma pena.
In "O Globo", 9 de fevereiro de 1997.
Sempre achei que o Brasil não se salvaria pelo silogismo. Mas poderia ser salvo pela anedota...
Nesse sentido, a contribuição de Paulo Francis para a modernização da mentalidade brasileira foi mais relevante que a minha. Enquanto eu produzia secos silogismos, Francis usava o veneno da ironia e o punhal do sarcasmo para colocar na defensiva os cultores da mitologia nacionalista e estatizante, que reduziu nosso potencial de crescimento e nos enfeudou à pobreza. Seu passado marxista o tornou conhecedor de técnicas de lavagem cerebral.
Que essa operação de exorcismo foi eficaz, prova-o a grande mudança na atitude popular. Os monopólios estatais, antes ungidos de sacralidade estratégica, são hoje vistos com indignação resignada. Alguns, como a Telessauro e a Embratel, caíram no plano anedótico e enriquecem o vocabulário de xingamentos dos devotos da Internet, neurotizados pelas dificuldades de acesso.
Começa-se a perceber que os funcionários das estatais há muito tinham privatizado as empresas públicas, sugando-as através de abusivas contribuições para os fundos de pensão, que se expandem comprando outras empresas. Fica o Tesouro à mingua de dividendos, e o público, à mingua de serviços.
Um pouco mais resistente à erosão da mitologia estatizante é a Petrossauro, cujo monopólio constituía uma aberração lógica por sermos no mundo o único país importador que preferia comprar petróleo de estrangeiros a receber capitais para produzi-lo internamente. (...)
Paulo Francis tinha carradas de razão ao dizer que "Petrobrás é uma excrescência arcaica e nos custa os olhos da cara"... A trajetória intelectual de Francis foi uma gradual contaminação pela verdade e uma contínua erosão de preconceitos. De radical de esquerda, nos anos 50 e 60, e vocalizador do protesto político nos ano 70, passou a "radical liberal" a partir dos anos 80. Qual o primum movens da conversão?
Um dos fatores foi, certamente, sua desilusão com o "socialismo real". Nunca foi, entretanto, entusiasta do despotismo burocrático de Stalin grande carniceiro. Preferia a visão trotskista, um pouco mais romântica, da "revolução permanente".
Em sua rota revisionista, Francis deve ter sido abalado pelas revelações de Kruschev sobre os crimes de Stalin e pelo massacre da Hungria em 1956. Talvez mais decisivo ainda tenha sido o aniquilamento do socialismo com face humana, na Invasão da Checoslováquia em 1968.
0 segundo fator, talvez mais fundamental foi seu auto-exilio nos Estados Unidos em 1970, depois de ter sido quatro vezes preso, como subversivo, pelos militares brasileiros, na histeria anticomunista que se seguiu ao Ato Institucional n. 5. Lá continuou a lutar pela abertura política no Brasil e seus textos, enviados de Nova York, deram-lhe popularidade como fazedor de opiniões na classe estudantil e na classe média, ansiosas pela descompressão política.
Com sua enorme capacidade de metabolismo intelectual, Paulo Francis logo se impregnou dos valores do capitalismo democrático, com uma fórmula imperfeita, porém insubstituível de conciliar minimamente três objetivos quase inconciliáveis: liberdade política, eficiência econômica e equidade social.
Para Francis, um elitista intelectual, não foi difícil assumir a visão realista de que, tendo os homens nascido completamente desiguais por desígnio divino, a tentativa igualitária é uma farsa despótica, não nos restando mais que uma administração humana das desigualdades.
Em minhas numerosas conversas com Paulo Francis, em Manhattan, dei-me conta de que ele, após um processo longo de desmistificação, havia percebido melhor que muitos economistas profissionais a receita misteriosa do desenvolvimento econômico: liberdade competitiva numa economia de mercado e entorno institucional e judiciário respeitador das regras do jogo.
As "riquezas naturais", supostamente cobiçadas pelos imperialistas, não são fundamentais, pois o Japão enriqueceu sem elas. A educação não garante o progresso, pois a Rússia entrou em colapso anos após realizada a fórmula de Lenin: educação mais eletrificação.
É importante a taxa de poupança, mas só se os investimentos não forem desperdiçados. A moeda estável seria uma condição necessária porém não suficiente. Também o capitalismo não basta, a não ser que seja liberal e competitivo, pois são desastrosos os capitalismos de Estado.
Tendo sofrido na fase autoritária brasileira por seu fanatismo pelas liberdades políticas, passou nos Estados Unidos a ser um fanático também da liberdade econômica.
Para trás ficaram as ingenuidades do Estado benfeitor, das estatais estratégicas, do controle social de preços e de mercado. Eram caipiragens retrógradas. De uma visão marxista do Governo como um "justiciador", passou uma visão nietzcheana do Governo como um "predador".
Em seus últimos tempos, Francis sofria de uma "inversão de patrulhamento"; na juventude, fora patrulhado pela direita; na maturidade passou a ser patrulhado pelas esquerdas, que nunca compreenderam, como e por que se livrara ele da sedução marxista.
Minhas conversas com Paulo Francis versaram quase sempre sobre a "angústia do atraso", à busca, ambos nós, de explicações para a tenacidade de nossa miséria. Mas seus interesses culturais eram de larguíssimo espectro.
Abrangiam o teatro (começara sua carreira como critico e ator teatral), o cinema (em que se tornou um erudito), a literatura nacional e mundial (que lia com ecumênica voracidade), o balé e a música. Nesta, esbanjava erudição, humilhando-me com disquisições sobre duas modalidades musicais que pouco me atraiam: óperas e Wagner.
As crônicas que publicou, ao longo dos anos, sob a rubrica "Diário da Corte", eram um esquisito buquê de crítica literária e artística, análise política, palpitologia econômica e saborosa psicanálise de amigos e inimigos. Seu estilo era inconfundível e inimitável. Afinal de contas, há muitos escritores mas poucos pugilistas de idéias. Deixa um vácuo em nossa paisagem literária. É uma pena.
In "O Globo", 9 de fevereiro de 1997.
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