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quinta-feira, 31 de março de 2011

Clássicos na web


por Leandro Oliveira

Na Itália eu tinha o prazer de passar os momentos em que não estudava piano vendo vídeos de música clássica... na televisão. Canais fechados dedicados ao gênero com 24 horas de programação não são raridade no Velho Mundo - depois, em Paris, pude seguir minha rotina sem qualquer desafogo.

Agora não precisamos mais estar na Europa. Alguns canais de música clássica online - gratuitos e pagos - podem servir para a vida de nossas retinas tão fatigadas. Vai lá:

Cité de la Musique Live - é o canal que transmite concertos gravados na Cité de la Musique e na Salle Pleyel. Recentemente com Valery Gergiev e outros blockbusters. http://www.citedelamusiquelive.tv/

Medici.tv - um dos mais tradicionais canais da web, com música clássica, ópera, documentários e que tais. Alta performance na veia (embora no momento Lang Lang esteja na chamada principal, e ele me lembre cada vez mais o Liberatti...). http://www.medici.tv/

Classical TV - espetáculos integrais do Metropolitan de Nova Iorque, grandes documentários e shows de jazz, peças de teatro. Tudo lá, a um clique - e o acervo gratuito é generoso. http://www.classicaltv.com/

Digital Music Hall - Concertos em HD video das mais importantes orquestras na Berliner Philarmonie. O dia-a-dia é feito pela Filarmônica mesmo, o que não é nada mal. O site acaba de ganhar o ICMA por melhor site clássico do ano. Imperdível, assim como as assinaturas da Osesp. http://www.digitalconcerthall.com/

terça-feira, 29 de março de 2011

Woody Allen e as leis do Universo

por Leandro Oliveira

Lembrança mais que apropriada da amiga Jussara Almeida:


Mother: He’s been depressed. All of a sudden he can’t do anything.

Dr. Flicker: Why are you depressed, Alvin?

Mother: (to Alvin) Tell Dr. Flicker... (to Dr. Flicker) It’s something he read...

Dr. Flicker: (to Alvin) Something you read, hun?

Alvin: The universe is expanding...

Dr. Flicker: (to Alvin) The universe is expanding?

Alvin: Well, the universe is everything and, if it’s expanding, someday it will break apart and that will be the end of everything.

Mother: (to Alvin) What is that your business?... (to Dr. Flicker) He stopped doing his homework!

Alvin: What’s the point?

Mother: (to Alvin) What has the universe got to do with it? You’re here in Brooklin. Brooklin is not expanding!

Dr. Flicker: (to Alvin) It won’t be expanding for billions of years, Alvin... and we gotta try to enjoy ourselves while we’re here, hun? Hun? Ahahahahahaha

Literatura e filosofia online

por Leandro Oliveira

A idéia é de Juliana Perez (da Universidade de São Paulo) e Giovanni Maddalena (da Universidade de Molise, na Itália): construir uma base da dados, uma espécie de biblioteca virtual, que reúna textos de diversas épocas e autores sobre as relações entre filosofia e literatura. O site chama-se Philosophy of Literature e pode ser acessado aqui.

O trabalho será feito de forma cooperativa, e todos estão convidados a fazer o registro no site (é bem rápido!) e enviar sugestões de links, textos ou arquivos (respeitados os direitos autorais, claro: cada texto exige um tratamento, dependendo da data em que foi publicado).

segunda-feira, 28 de março de 2011

Observatório Ocidentalismo

por Leandro Oliveira

Dica imperdível, o lançamento de "Herege" de G. K. Chesterton. Ieda Marcondes faz uma pequena apresentação:

“Hereges” apresenta vinte capítulos, cada um destinado a uma figura ou tendência moderna. Assim, o autor discute Rudyard Kipling, Bernard Shaw, H.G. Wells, o Comtismo, o “carpe diem” dos estetas, o Novo Jornalismo, a comunidade científica, entre outros. Para cada caso, ele emprega uma perspectiva teológica, analisando sua heresia e ressaltando a importância da ortodoxia. Dessa forma, Kipling é um herege por ser um cidadão do mundo, por não ter tempo ou paciência de se fixar definitivamente em nenhum lugar, ele representa o cosmopolitismo da sociedade moderna que avança e expande sem saber que a vida acontece quando nos enraizamos, quando nos prendemos em determinada causa ou comunidade; Shaw é um herege por não aceitar os humanos como são, por comparar homens com super-homens, com deuses ou gigantes, quando o segredo do cristianismo, e mesmo do sucesso em vida, está na humildade; Wells é um herege por duvidar do pecado original e da possibilidade da própria filosofia ao dizer que é impossível encontrar idéias seguras e confiáveis, que tudo sempre muda, mas são apenas as aparências que mudam, as idéias permanecem sempre as mesmas.

Na íntegra aqui.

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Resenha sobre o último livro de V. S Ramachandran - que sempre traz boas perguntas sobre arte e o nosso cérebro.

Twenty percent of art can now be explained by neuroscience. That, at least, is what V.S. Ramachandran thinks. Ramachandran is the Director of the Center for Brain and Cognition, and Distinguished Professor with the Psychology Department and Neurosciences Program at the University of California, San Diego. He is, in short, one of the top neuroscientists around at the moment. He is also a clear and engaging writer. His 1999 book, Phantoms in the Brain, brought him much popular attention and his most recent book, The Tell-Tale Brain, is doing more of the same.

Na íntegra aqui.

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As raízes históricas e culturais do Yoga em uma belíssima resenha de Wendy Doniger

Some American Hindus have recently argued that Hindus should “Take Back Yoga”. The Hindu American Foundation insists “that the philosophy of yoga was first described in Hinduism’s seminal texts and remains at the core of Hindu teaching”, that yoga is the legacy of a timeless, spiritual “Indian wisdom”. Other Americans agree that the Hindus should take back yoga – from the many Christians who embrace it: R. Albert Mohler Jr, president of the Southern Baptist Theological Seminary, advises Christians to abandon yoga if they value their (Christian) souls. This fight evokes for me the Monty Python skit in which Greek and German philosophers compete in a football game (which ends with Marx claiming that the Greek goalscorer was off-side). Declaring the Southern Baptists (or at least the Revd R. Albert Mohler) off-side, we may still ask, why do so many American Hindus care so much whether yoga is Hindu? And is it?

Na íntegra aqui.

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Os amigos do Falando de Música lembraram; em homenagem à Liz Taylor, uma passagem do filme "Rhapsody" - no trecho, o concerto para violino de Tchaikovsky que a Osesp tocou neste final de semana.


sábado, 26 de março de 2011

Duas críticas


seleção de Leandro Oliveira

The russian composer Tchaikovsky is surely not an ordinary talent, but rather an inflated one, with genius-obsession without discrimination or taste, such is also his latest, long, and pretentious Violin Concerto. For a while it moves soberly, musically, and not without spirit. But soon vulgarity gains the upper hand and asserts itself to the end of the first movement. The violin is no longer played; it is pulled, torn, drubbed. The adagio is again on its best behavior, to pacify and win us. But it soon breaks off to make way for a finale that tranfers us to a brutal and wretched jolity of a Russian holiday. We see plainly the savage vulgar faces, we hear cruses, we smell vodka. Friedrich Vischer once observed, speaking of obscene pictures, that they stink to the eye. Tchaikovsky's Violin concerto gives us for the first time the hideous notions that there can be music that stinks to the ear.

Eduard Hanslinck in "Music Criticism 1846-99" (Harmondsworth, 1963).

When Tchaikovsky came to me one evening, about thirty years ago, and presented me with a roll of music, great was my astonishment on finding this proved to be the Violin Concerto, dedicated to me, completed and already in print. My first feeling was one of gratitude for this proof of his sympathy toward me, which honored me as an artist. On closer acquaintance with the composition, I regretted that the great composer had not shown it to me before committing it to print. Much unpleasantness might then have been spared us both. (...)

Warmly as I had championed the symphonic works of the young composer (who was at that time not universally recognized), I could not feel the same enthusiasm for the Violin Concerto, with the exception of the first movement; still less could I place it on the same level as his purely orchestral compositions. I am still of the same opinion. My delay in bringing the concerto before the public was partly due to this doubt in my mind as to its intrinsic worth, and partly that I would have found it necessary, for purely technical reasons, to make some slight alterations in the passages of the solo part. This delicate and difficult task I subsequently undertook, and re-edited the violin solo part, and it is this edition which has been played by me, and also by my pupils, up to the present day. It is incorrect to state that I had declared the concerto in its original form unplayable. What I did say was that some of the passages were not suited to the character of the instrument, and that, however perfectly rendered, they would not sound as well as the composer had imagined. From this purely aesthetic point of view only I found some of it impracticable, and for this reason I re-edited the solo part.

Tchaikovsky, hurt at my delay in playing the concerto in public and quite rightly too (I have often deeply regretted it, and before his death received absolution from him), now proceeded to have a second edition published, and dedicated the concerto this time to Adolf Brodsky, who brought it out in Vienna, where it met with much adverse criticism, especially from Hanslick. The only explanation I can give of the orchestral score still bearing my name is that when the original publisher, Jurgenson, of Moscow, to suit the composer, republished the concerto, he brought out the piano score in the new edition, but waited to republish the orchestral score until the first edition of the it should be exhausted. This is the only way I can solve the problem of the double dedication. (...)

The concerto has made its way in the world, and after all, that is the most important thing. It is impossible to please everybody.


Leopold Auer in "Musical Courier" (12 de Janeiro de 1912).


O Concerto para violino em Ré Maior, op. 35 de Tchaikovsky foi apresentado esta semana pela Osesp na Sala São Paulo.

Bethânia, Adam Smith & um pouco de Gramsci

por Pedro Sette-Câmara

Sou reativo, só escrevo em função de algo que leio. E hoje leio uma pequena reflexão no Globo a respeito da polêmica com o blog da Maria Bethânia – aquele que recebeu autorização para captar 1,3 milhão de reais, dos quais 600 mil vão para o bolso da própria Bethânia pela “direção artística”.

Daqui do meu assento etéreo liberal, posso me perguntar se um blog vale esse dinheiro todo, e se Bethânia vale esse salário. E logo escuto a resposta: se alguém quiser pagar, vale. Isso é, se houver pessoas que queiram financiar esse projeto, vale. Será, indiretamente, dinheiro público? Claro que sim. Mas funesta é a lei que gera absurdos, e indignar-se apenas com um deles é mostra daquele estado mental de indignação seletiva que, dependendo da versão, aceita José Serra como campeão antiaborto ou considera que é “você é um preconceituoso, mesquinho, classe média babaca, deveria sim é morrer queimado na missa/culto que você tanto se orgulha em ir” é um discurso que não tem nada de ódio patológico.

Voltemos à Bethânia e aos salários. Diz o nosso companheiro Adam Smith que o trabalhador quer ganhar o maior salário possível e o empregador quer pagar o mínimo possível. Desses desejos nasce o famoso equilíbrio de mercado, porque nem um nem outro têm em si e por si o domínio absoluto da relação, e um ou outro podem estar em vantagem ou desvantagem relativa. Essa relação não pende necessariamente sempre a favor do empresário: por exemplo, se há no Brasil um “apagão da mão de obra”, as pessoas em certas áreas estão em tremenda vantagem.

O que Bethânia está fazendo é aquilo que todos fazemos: tentando jogar nosso valor lá no alto. Se colar, colou. Francamente, como tradutor, eu não reclamaria se me pagassem mil reais por lauda (só ontem eu teria ganhado 16 mil reais), e eu mesmo faço o máximo para ganhar o máximo possível.

Como se trata de dinheiro público, você pode afirmar, e eu também, que não quer dar a Maria Bethânia 600 mil para que ela recite poesias. Só que o problema jurídico é muito anterior: existe a lei, existe o Ministério etc. E existe ainda um problema político bastante grave, que não pode deixar de ser abordado. Vivemos numa república corporativa, num verdadeiro estado burguês gramsciano: cada “categoria” recebe benefícios do Estado e dá benefícios em troca. Os nossos liberais brasileiros não costumam saber que o Brasil defende em sua política externa o livre mercado, ainda que isso signifique “queremos a abertura dos mercados europeus para nossos produtos”. Nossas queridas associações empresariais também são grupos de pressão. Os trabalhadores das empresas também constituem sindicatos e, veja só!, grupos de pressão. Todos querem aumentar seus próprios rendimentos. Só quem defende o liberalismo de maneira pura e inocente (e ingênua, e utópica, e irreal: olá, eu mesmo em 1999) no Brasil são três ou quatro garotos cujo maior bem é uma conexão de banda larga.

Se você tirar dos artistas a Lei Rouanet e o Ministério da Cultura, eles passarão a ser um dos poucos grupos no Brasil desprovidos de uma estrutura oficial de lobby e de pressão. Esse é o jeito brasileiro. Por mais que eu ache justo em abstrato acabar com a Lei e com o MinC, não posso deixar de observar que, se o Estado dá benesses para todos, por que faria essa injustiça especial com um determinado grupo?

Permitam até que eu explique melhor. Se os artistas subitamente fossem obrigados a ser empreendedores de verdade (o que eu defenderia), eles enfrentariam as mesmas dificuldades dos empresários brasileiros, com o agravante de estar desprovidos dos lobbies e grupos de pressão de que esses empresários dispõem.

Eu gostaria muito que os preços que pago pelos produtos que consumo tivessem bem menos interferência dos grupos de pressão empresariais. E gostaria que os preços que pago pelos produtos artísticos e culturais que consumo também não tivessem essa interferência. Só que, mesmo aqui, não posso deixar de observar o seguinte. Se eu for comer ou beber algo (e, mesmo sendo autor de teatro, não nego que comida e bebida são mais importantes do que teatro), vou pagar um preço proporcionalmente mais alto do que o que pagaria pela vasta maioria dos ingressos à venda para qualquer coisa, ou mesmo um preço mais alto em valores absolutos (saia do teatro e vá comer alguma coisa, e me diga onde gastou mais). Quer dizer, de um lado os grupos de pressão empresariais estão jogando os preços para cima, e, ao menos no nível da minha experiência direta, me prejudicando muito mais do que a Lei Rouanet. Entre destruir imediatamente mecanismos que “protegem a indústria nacional” ou as leis de incentivo à cultura, não preciso pensar duas vezes.

Agora, para encerrar, se você acha que dinheiro na mão do Estado é dinheiro jogado fora, por que está reclamando dessa pequena possível privatização?

Retirado de PedroSette.com.

sexta-feira, 25 de março de 2011

Nostalgia do presente


por Jorge Luís Borges

Naquele preciso momento o homem disse:
“O que eu daria pela felicidade
de estar ao teu lado na Islândia
sob o grande dia imóvel
e de repartir o agora
como se reparte a música
ou o sabor de um fruto.”
Naquele preciso momento
o homem estava junto dela na Islândia.


Nota do editor: este poema neste site por carinho e amor a Débora de Mello.

O anjo da canalhice


por Leandro Oliveira

O professor Luís Felipe Pondé - um dos padrinhos deste site - realiza nos dias 2 e 9 de abril, das 11hs às 13 hs, o curso "O anjo da canalhice: o gênio de Nelson Rodrigues". Trata-se de uma perspectiva inusitada sobre um dos maiores dramaturgos brasileiros.

Na Livraria Cultura do Conjunto Nacional. Para inscrever-se, clique aqui.

Dezoito quilômetros de mulher nua

por Nelson Rodrigues

A barriga do Chacrinha é uma paisagem. Digo isso e paro. Não ia começar com o homem da buzina e sim com Dostoievski. (Chacrinha virá depois.) Eis o que eu queria dizer: — num aniversário da morte de Pushkin, o romancista fez-lhe um discurso. Falou uma hora, duas, sei lá. E o discurso foi uma alucinação. O olhar de Dostoievski vazava luz como o de um santo. Pushkin foi apresentado como um profeta. O poeta tem de ser profético ou não é poeta. E o que anunciava Pushkin? A Nova Rússia. Sim, anunciava uma Rússia que se virava e revirava no ventre do tempo. E essa Rússia ainda não revelada diria ao mundo a grande Palavra Nova. Foi isso, se bem me lembro, o que disse Dostoievski.

E, quando acabou, o auditório enlouqueceu. As pessoas se abraçavam, as pessoas se beijavam. Havia um choro unânime, um gemido geral e grosso, como que vacum. Uns trepavam nas cadeiras, outros as cavalgavam. Um velhinho soluçava: — “Quero morrer, quero morrer”. Ninguém entendia essa brusca e senil nostalgia da morte. E uma moça, de uma beleza jamais concebida, veio do fundo do salão. Caminhava, ereta, de fronte alta, como uma sonâmbula.

E, diante de Dostoievski, cai-lhe aos pés. Foi terrível o que se viu. Ela curva-se e beija as botas do romancista. Depois levanta-se e desaparece, para sempre, como se jamais tivesse existido. De repente, todos sentiram que o profeta não era Pushkin, mas Dostoievski. Era ele que via a Rússia ainda uterina, a Rússia não nascida.

Passo finalmente ao Chacrinha. Disse eu, no início da presente confissão, que a sua barriga é uma paisagem. Mas o que me importa, mais do que essa plenitude do ventre, é o ordenado do Chacrinha. Já disse e aqui repito: — seu ordenado deflagra, no momento, toda uma indignação nacional. Oitenta milhões por mês.

A princípio ninguém acreditou. Nenhum brasileiro merecia tanto. Mas chegou um momento em que a evidência varreu a última dúvida. Era a pura, santa e imaculada verdade. Lembro-me de colegas que, na redação, abriam os braços para o céu: — “Como pode? Como pode?”. Cabe então a pergunta: — e onde nasceu a primeira irritação? Resposta: — nas esquerdas.

Não sei que crudelíssimo fatalismo está sempre a empurrar as nossas esquerdas para o erro, para o equívoco, para a alienação. Um brasileiro ganha oitenta milhões. As esquerdas deviam estar exultantes. Sim, elas deviam sonhar com um Brasil de Chacrinhas. Seríamos oitenta milhões a ganhar oitenta milhões.

Mas as esquerdas não aceitam o Chacrinha ou, melhor dizendo, não aceitam o salário do Chacrinha. É o salário, e não vagos preconceitos éticos e estéticos, que explica o feio, o torvo ressentimento. Num domingo recente saiu um imenso ensaio, quase uma página inteira, em corpo seis. Seu autor era, justamente, uma flor das esquerdas. E metia o pau no Chacrinha, e não só no Chacrinha: — também na música popular, na escola de samba, no Chico Buarque, no Fla-Flu e, por fim, no sexo.

O esquerdista negava tudo o que o brasileiro adora. Li aquilo e saí perguntando: — “Você gosta de sexo? De música popular? De futebol?”. E, de repente, relendo o tal artigo, percebi por que a nossa esquerda não se comunica com ninguém e vive na mais obtusa solidão. Repito: — a nossa esquerda só fala, escreve, gesticula e só doutrina para si mesma. Por isso é que no 31 de março e no 1º de abril ela ficou mais só do que um Robinson Crusoé sem radinho de pilha.

Claro que no caso dos oitenta milhões há uma unanimidade. Até o Walther Moreira Salles está em pânico. Se um brasileiro passa a ganhar oitenta milhões mensais, algo mudou ou vai mudar. Semelhante fato não pode ser intranscendente. Por trás dessa abundância salarial esconde-se alguma ameaça apavorante.

Foi isso, mais ou menos isso, o que eu disse ao Otto Lara Resende; e foi isso, mais ou menos isso, o que ele me disse. Ontem, almoçamos juntos; o Hélio Pellegrino foi a terceira presença. E depois saímos. O Hélio foi para o consultório. Vim para a cidade na carona do Otto. Propus-lhe um itinerário praiano para pôr uma paisagem no nosso papo. Seguimos então a orla que vai do Forte ao Leme. O Otto bramava: — “São os mais lindos brotos do mundo. Olha ali, rapaz, olha!”.


“E o Chacrinha?” — perguntará o leitor. Já voltaremos a ele. Por enquanto, abro um parêntese paisagístico. O Otto reagia como se ele fosse a Idade Média atirada no meio dos umbigos em flor. Ele próprio reconhecia: — “Eu sou a Idade Média!”. E íamos dizendo, um ao outro, que somos o povo mais lindo do mundo. O Otto gemia: — “Dezoito quilômetros de mulher nua!”. Sentíamos que essa nudez, múltipla, molhada, inédita no mundo, era o aviso de um Brasil novo.

Há dois Ottos: — um, público, e outro, do terreno baldio. E poucos provam do bom, do legítimo, do escocês Otto secretíssimo. Ah, o que ele disse da esquerda. Claro que a esquerda tem o direito de ser esquerda. O que lhe negamos é o direito de ser tão inepta, tão incompetente, tão irrealista, tão alienada do Brasil e, repito, tão antibrasileira. Examine-se um esquerdista. Ele não chove uma chuva própria. Pensa “idéias feitas”, diz “frases feitas”, sente “sentimentos feitos”. Seu ódio aos Estados Unidos não é realmente um ódio, um sentimento, uma paixão. Não. É uma Palavra de Ordem. Se aqui faz calor, e nos Estados Unidos, frio, foi o imperialismo norte-americano que roubou a nossa neve e a faz chover como papel picado.

E já que o Otto chovia a própria chuva, eu quis chover a minha. Voltamos ao Chacrinha. Perguntei-lhe: — “E o padre Ávila?”. Que fazia o padre Ávila ou que faziam os outros sociólogos? Os oitenta milhões de Chacrinhas eram um dado sociológico gravíssimo. Não é por acaso que um brasileiro, altamente subdesenvolvido, passa a ganhar oitenta milhões. Minto, minto. O Chacrinha vai ganhar cem. Não mais oitenta. Cem milhões. Quem o afirma é, não o Otto público, inautêntico, das salas, mas o luminoso Otto do terreno baldio. A partir da Primeira Missa até a semana passada, o brasileiro não ganharia tanto, nem juntando cada vintém de várias encarnações. Hoje, em trinta dias, o Chacrinha vai ganhar cem milhões.

Eis o que eu queria dizer: — isso significa que começou todo um processo. Certas coisas não acontecem de graça. Há, nos milhões de Chacrinhas, um toque de mistério. Ou por outra: — é um mistério não tão misterioso, Se a nossa sociologia limpasse a poeira das próprias lentes, veria o óbvio ululante. Na verdade, o salário do Chacrinha é, para nós, o que Pushkin foi para a Rússia. Sim, o salário do Chacrinha profetiza um Brasil que vem por aí com uma saúde de centauro.

Foi isso o que eu disse ao Otto, foi isso o que o Otto me disse. O amigo me deixou na porta de O Globo. Assim me despedi: — “Até logo, Idade Média”. Ainda fiquei, por um momento, em cima do meio-fio vendo sumir na primeira esquina o seu medieval Fusca.


Retirado do livro "O Óbvio Ululante".

quinta-feira, 24 de março de 2011

Passagem de si


O mundo, para ele, se encolheu até ficar do tamanho de sua sala e, durante o tempo que for necessário para que ele venha a compreender isso, precisa ficar onde está. Só uma coisa é certa: não pode estar em nenhum outro lugar, seria absurdo para ele pensar em procurar um outro.

Paul Auster, “A Invenção da Solidão“.

Imi Lichtenfeld e Caetano Veloso?

Faça, mas faça certo
Por Leandro Oliveira

A frase da epígrafe é de Imi Lichtenfeld (1910 - 1998), o criador da arte de defesa pessoal israelense chamada Krav Magá. É paradigmática posto que a síntese de um modo de ver o mundo.

Imi lida claramente com um terreno específico e concreto da integridade física, ou seja, ele não pretende fazer filosofia ou proselitismo. Aliás, lidando com os tipos de problemas absolutamente práticos – e radicais, de vida e morte – com os quais lidava, pouco tempo e disposição havia para falsas soluções, dubiedades ou falação.

Mas se a frase de Imi é pragmática, sua leitura pode ser um pouco mais – como dizer? – reflexiva. E tomo a iniciativa desta reflexão pois sei que a arte de Imi tem por base uma mentalidade necessária, antídoto a esta espécie de "covardia positiva" do indíviduo e, ao mesmo tempo, da valentia grosseira dos que agem e pensam em bando.

Sua arte, assim como sua vida, são os espelhos deste novo espírito judaico que instaura o Estado de Israel em maio de 1948. Um espírito cuja transmutação, a propósito, fica bem clara no poema “Israel” de Jorge Luís Borges (Elogio da Sombra, 1969)

Um homem prisioneiro e enfeitiçado,
um homem condenado a ser a serpente
que guarda um ouro infame,
um homem condenado a ser Shylock,
um homem que se inclina sobre a terra
e que sabe que esteve no Paraíso,
um homem velho e cego que há de quebrar
as colunas do templo,
um rosto condenado a ser máscara,
um homem que apesar dos homens
é Spinoza e o Baal Shem e os Cabalistas,
um homem que é o Livro,
uma boca que louva do abismo
a justiça do firmamento,
um procurador ou um dentista
que dialogou com Deus em uma montanha,
um homem condenado a ser o escárnio,
a abominação, o judeu,
um homem lapidado, incendiado
e atirado em câmaras letais,
um homem que teima em ser imortal
e que agora voltou a sua batalha,
à violenta luz da vitória,
belo como um leão ao meio-dia.


(O crescendo do poema é extraordinário; entendo que ele lida antes de tudo com a transmutação do espírito de um povo do qual somos, cada um de nós, um verdadeiro fractal.)

Me explico melhor. Por um lado, somos, vivemos e cultivamos o just do it, este extraordinário slogan que marca uma década. Imaginando nossos atos pelo compromisso pouco exigente da paixão irrefletida, das ações irresponsáveis pois auto-justificadas. Idiotizamo-nos para sermos livres. Rebelamos contra tudo e todos, para levarmos a revolução que culminará não entendemos bem onde, pois o importante é reverberar a energia sem-causa das gerações pós-68.

Por outro lado, acabamos por demais fascinados pelo temor das certezas. Este hábito mental é aquele expresso por Caetano Veloso em seu “Estrangeiro” quando comenta “o certo é saber que o certo é o certo” apenas para elencar uma plêiade de equívocos como “o macho adulto branco sempre no comando” ou “reconhecer o valor necessário do ato hipócrita, riscar os índios nada esperar dos negros...”. Pelo medo de sermos os bárbaros cheios de convicção que andam à beira da Baía de Guanabara às costas de Caetano, nos obrigamos a solução equivocada da inércia, estrangeiros “entendendo o centro” das barbaridades "daquele cara e aquela".


Entendo e respeito, ahimé!, a tensão de uma convicção errada; imagino que seja exatamente esta tensão que justifique afinal a postura intelectual da "fé na errância" que permitirá Caetano colocar sob luzes duvidosas os "convictos" em sua música (que, aliás, acho extraordinária). Uma espécie de docta ignorantia pós-moderna.

Mas ela deve ser dosada, a bem da integridade de si. É exatamente por isso que assevera Imi. E por isso o Krav Magá não é uma arte marcial mas uma arte de defesa pessoal, onde a tomada de decisão deve ser constante, rotineira, responsável - e evidentemente individual. A arte da resiliência frente adversidades, mas sobretudo da tomada de posição pela preservação daquilo que é justo e integro no espírito humano. Imi Lichtenfeld decreta “faça, mas faça certo” após dar-se conta de que, para o povo judaico, antes da defesa do corpo em combate e guerra, havia a necessidade desta convicção do espírito, que deve ser cultivado dia-a-dia.

Para, nas agruras do mundo, teimar em voltar à batalha, "à violenta luz da vitória, belo como um leão ao meio-dia".

Em poucas circunstâncias do dia-a-dia ele podia novamente dar-se o luxo de errar. Me pergunto com Imi e seu povo: e nesta vida, que é uma apenas, posso eu me dar tal luxo?

segunda-feira, 21 de março de 2011

O Favor que nos faz Obama


por João Vidal

Caros amigos do Ocidentalismo.org,

É no venerável espírito dos correspondentes de guerra que lhes escrevo desde a cidade que se costumava chamar (ou melhor dizendo, cujo ‘nome original’* era) Rio de Janeiro. Pois há momentos em que nos vemos irremediavelmente desviados das elucubrações do exílio intelectual a que muitos de nós se dedicam pelo noticiário cada dia mais teratológico de nosso país. Por essa razão trato aqui não dos assuntos que gostaria, mas da visita ao Brasil do prodígio que é Barack Obama.

Procurei esquivar-me de todas as formas do tema e das notícias que afluíram por todos os meios de comunicação na última semana, mas fui vencido pelo cansaço e pelo simples fato de que Obama trouxe transtornos à minha vida pessoal. Pressenti que as coisas não iam muito bem no momento que tomei conhecimento de que o líder global havia resolvido, e não sido convidado a, discursar na Cinelândia. Farejei ali a subserviência que se confirmaria com detalhes sórdidos nos dias seguintes. Primeiro veio a notícia de que a praça seria fechada e que os nativos que desejassem aplaudir o rábula de south Chicago deveriam comparecer sem bolsas e com identidades à mão. Determinações do serviço secreto americano, às quais se somaram a seguir ordens – prontamente atendidas pelo prefeito da cidade – de se fazer fechar todos os restaurantes do bairro no fim de semana e as estações de metrô circunvizinhas. (Também foram fechadas duas vias da Avenida Atlântica, onde se hospeda Obama no Rio.)

Simultaneamente me chegaram (sempre involuntariamente, repito) notícias de que o PT proibira manifestações contra o ‘estadunidense’, fato não menos interessante que a indignação do presidente regional do PSTU após protesto em frente ao consulado americano frente ao que chamou de ‘infiltração do movimento’ por elementos que teriam arremessado um ou dois coquetéis Molotov contra um segurança do referido consulado (a propósito um brasileiro, como todos os demais seguranças do consulado). Já bastante aviltado, a ponto de quase juntar-me ao PSTU em seu protesto, recebo a seguir notícia de que o primeiro concerto da série ‘fora de série’** da Orquestra Sinfônica Brasileira (não a profissional, em quarentena, mas a dita ‘jovem’), que executaria (provavelmente em vários sentidos) a raramente ouvida no Rio "Paixão Segundo São João" de Bach, estava cancelado, uma vez que Obama desistira de falar ao público que nesse ponto já deixava suas bolsas em casa para aplaudir o lenga-lenga democrata de sempre para falar aos ‘super-vips’*** desde o palco do Teatro Municipal mesmo.

Devo dizer que o cancelamento do concerto representou para mim não apenas a perda da oportunidade de ouvir essa bela obra de Bach, mas também da possibilidade – e aqui reside verdadeiramente o ‘fora de série’ da coisa – de testemunhar a primeira Paixão de Bach na qual o crucificado seria não Jesus Cristo mas a própria orquestra. Como acontece com as grandes catástrofes, a notícias se seguiam num crescendo para baixo, numa katabasis que, segundo suspeitava desde o princípio, poderia redundar talvez numa grande lição sobre o que é afinal o Brasil na cadeia alimentar mundial. Assim, o estranhamento ao ver a Cinelândia e o Teatro Municipal revistados pela CIA (ou FBI ou seja lá quem fossem os cops da ocasião) deu lugar à perplexidade, quando ouvi no Jornal Nacional que em Brasília as forças de segurança americanas procediam a revista geral do próprio Palácio do Planalto! Estava então já tomado por aquele espírito (na linguagem de nossos algozes) ‘what the fuck?’ quando ouvi que moradores da Cidade de Deus não deveriam ocupar as lajes nem postar-se às janelas de seus barracos, e ainda que nem o prefeito, nem o governador e nem mesmo o secretário de segurança do Rio poderiam acompanhar Obama em seu passeio pela favela (os dois primeiros foram convidados, porém, para em algum momento caminhar com o presidente americano até a porta de seu helicóptero).

(Como uma pequena notícia animadora, tomo conhecimento de que a Central Única das Favelas rompeu com Obama!)

Mas a primeira das ofensas máximas foi reservada à visita de Obama ao Corcovado: todos os funcionários brasileiros deveriam ser dispensados e nenhum cicerone local seria admitido. A segunda? Sem dúvida a impagável revista (‘intensa’, segundo alguns jornais, com direito a violentas apalpadas nos países baixos) de alguns dos mais importantes ministros brasileiros, entre os quais os petistas Guido Mantega e Aloísio Mercadante (cena belíssima!), em pleno Palácio do Planalto. Tratar-se-ia de episódio destinado a mostrar como o PT, dedicado ultimamente a se apropriar compulsivamente de idéias do PSDB, levou esse comportamento to a whole new level?: Celso Lafer tirou o sapato nos EUA?, pois nós nos deixamos apalpar pelo americanos aqui mesmo! Como bater essa?**** Outro ponto baixo foi Obama recusar o convite para jantar com a ‘presidenta’ do Brasil, no mínimo uma deselegância sem tamanho. Circularam notícias ainda de que o espaço aéreo de Brasília teria sido fechado e controlado por aeronaves americanas, mas prefiro nem me informar a respeito e seguir acreditando que isso não pode ser verdade.

Imagino que muito mais poderia ser relatado da visita ainda em andamento do dignitário americano, mas isso aí é, pelo menos para mim, suficiente para chegar ao ponto, que é o favor que nos faz Obama. Bill Gates, Madonna e Michael Jackson, para os quais já se havia fechado o trânsito no Rio e montado extraordinários esquemas de segurança, já me haviam feito suspeitar que um tratamento no mínimo singular era dado aqui a visitantes americanos, e especialmente aos bilionários e famosos. Mas foi Obama, tripudiando da população e dos mandatários do Brasil, quem veio nos dar uma lição definitiva acerca do lugar do Brasil na ordem mundial. Se nosso ministro Patriota – ironia máxima! – avisava uma semana atrás que o Brasil desejava uma relação ‘de igual para igual’ com a América do Norte, Obama didaticamente (foi professor em Chicago, consta) nos colocou em nosso devido lugar de quintal dos EUA. Pois não se pode respeitar quem não respeita primeiro a si mesmo. Com políticos que rosnam para os que estão abaixo enquanto tiram seus sapatos e são apalpados pelos que estão acima, e com cidadãos dispostos a bajular até mesmo quem os humilha, afirmo (como diria Mangabeira Unger) que não poderemos avançar um milímetro sequer na direção de ganhar algum respeito na comunidade internacional.

Daquela que se costumava chamar (ou melhor dizendo, cujo ‘nome original’***** era) Rio de Janeiro, e (insolitamente) com o PSTU e a Central Única das Favelas,

J.Vidal.

* Inside joke.

** Notemos a originalidade do nome.

*** Segundo consta planejava-se dividir os ouvintes do discurso entre ‘povo’, ‘vips’ e ‘super-vips’. Naturalmente apenas os dois últimos participaram da festa, ao fim e ao cabo.

**** Uma outra ofensa grave seria Obama ter citado ‘Pal Coelo’, ao fim do discurso no Municipal, como um dos mais importantes escritores brasileiros. Se por um lado não esperávamos mesmo que o presidente americano soubesse algo sobre literatura brasileira, por outro o gracejo mostrou que ele é provavelmente tão burro quanto George W. Bush.

***** Inside joke.

Modernidade atormentada: curso sobre "Irmãos Karamazov"


por Leandro OLiveira

Recomendo vivamente: o professor Élcio Verçosa realizará análise minuciosa do clássico "Irmãos Karamazov" de Fiódor Dostoiévski - relacionando-o com os temas da filosofia política e da situação religiosa contemporânea.

Nos dias 21, 28 de março e 04, 11 de abril (segundas), das 19 às 21h30 na Livraria Cultura do Conjunto Nacional.

Informações em: http://www.culturasemlimites.com.br/.

Magistério e apostolado

Há muito tempo escutamos que o dilema da educação está nos baixos salários - ao lado da falta de "computadores na sala-de-aula", parece não haver outro problema na área, viciada em um discurso-lamento pela falta de incentivos do ponto de vista financeiro. Não estará faltando uma outra peça no quebra-cabeças? Rodrigo de Lemos mostra que sim.

por Rodrigo de Lemos

Não consegui chegar ao fim das memórias de Marcel Pagnol – apesar do clima M. Hulot de algumas páginas, sempre acho vagamente irritantes essas memórias de infância que não a minha. E, contudo, acho memorável o segundo capítulo de "La Gloire de mon père", no qual Pagnol, lembrando o pai instituteur, descreve o espírito das escolas na Terceira República francesa. As Écoles Normales, para transferir da Igreja ao Estado a responsabilidade pela educação, faziam dos candidatos a professores os modelos morais para os jovens da República. Eram campanhas anti-fumo (já então), anti-álcool, anti-adultério, discursos sobre a missão civilizatória dos mestres laicos, sobre o apostolado da ciência e do progresso – tudo para roubar aos padres o papel de exemplos para a nova sociedade. Não creio que o fim fosse o mais nobre, mas o meio não deixou de ser eficiente: a criação de uma classe devotada à causa laica, desdenhosa de riquezas, de vantagens pessoais, unida por um discurso coeso e obstinado, que viu triunfarem seus ideais na crise de 1905 (com a separação entre Igreja e Estado).

Nada disso combina com a imagem de professores a que nos acostumamos no Brasil e, em menor medida, também na França, imagem de gente insatisfeita com o salário, com a quantidade de trabalho, com a “desvalorização” da profissão. Como se contadores ou despachantes comerciais só vissem espinhas curvadas pelos caminhos, tal conquistadores em Alexandria.

Muito disso é exagero. Não tiro os motivos para choro dos que ganham pouco demais, mas a maior parte dos professores que conheci não tem salários muito menores do que os de outras profissões de classe média. O problema é que há um discurso, muito freqüente entre políticos e gente que precisa de votos, de que o destino da educação e, com isso, o futuro da sociedade dependem unicamente de um fator: o aumento dos salários. Educação, ao que parece, depende de “investimento”, e “investimento” quer dizer aumento para os professores, multimídia nas escolas. Por alguma virtude mágica, o mero contato com as telas de computador despertaria o intelecto adormecido dos alunos como uma donzela por um beijo de príncipe, o aumento na conta bancária dos professores desenvolveria neles um rápido e irresistível interesse por teoria da energia escura ou pelas pesquisas sobre o panteão indo-europeu, e eles torrariam o décimo terceiro e o terço de férias com DVDs de ópera ou com livros de lógica modal.

O investimento realmente imprescindível a um professor é o de seu próprio tempo, para estudar, e qualquer aumento de salário só se justifica na medida em que permita ao professor trabalhar menos e estudar mais. O magistério se assemelha, do ponto de vista da atividade, mais a um ministério, a um apostolado, do que a uma profissão como as outras. Dentistas, gerentes de banco não dispõem de horas e horas diárias da atenção total de 30, 40 pessoas ao mesmo tempo, horas durante as quais eles podem usar como quiserem da palavra, deitar erudição ou contar fofocas íntimas, persuadir os outros do que pensam. Só professores são assim, professores e padres. Mas esse privilégio, às vezes desconfortável, tem sua contrapartida, e, como padres, professores devem se acostumar a ambições materiais mais modestas, a condições de vida decentes, mas frugais; espera-se que a curiosidade intelectual, e que a possibilidade de sustentar-se disso, ofereça o surplus de satisfação que, em dentistas ou gerentes de banco, vem de ganhar melhor.

Pode ser que as reclamações se justifiquem quando a quantidade de trabalho obstrui o estudo, mas o número de professores frustrados por não terem ficado ricos, por não poderem consumir tanto quanto o primo empresário ou cirurgião, ultrapassa o razoável. Falta o mépris des richesses de que fala o Pagnol, aquele desdém pelos objetos de desejo das massas, aquela indiferença que experimentamos quando temos uma vida interior razoavelmente desenvolvida. Muito da insatisfação acabaria por aí. Professores do século XIII subsistiam com menos que professores de escola pública, vivendo de vaquinhas dos alunos, sem poder casar, sem estabilidade, sem três meses de férias. E – vejam só – foram esses pobres coitados, esses semi-indigentes, que elaboraram a escolástica.

PS: Este texto (original de 3 de fevereiro) havia sido retirado de nossos provedores no atentado do dia 11 de março. Como trata-se de matéria pertinente, e um dos posts mais queridos por todos nós, coloco-o novamente na primeira página.

domingo, 20 de março de 2011

Meninos (como Homens) em tempos sombrios


por Juliana Perez

Agora o que conta é reencontrar-se, iluminar-se reciprocamente, de pessoa a pessoa...

A frase foi escrita em 1942, alguns meses antes da decapitação de um de seus autores. Não se trata de escritores nem de filósofos ou de cientistas importantes, tampouco de grandes homens de Estado ou de revolucionários titânicos. Hans Scholl (1918-1943) estudava medicina na Universidade de Munique e – com sua irmã, Sophie (1921-1943) e um amigo, Christoph Probst (1919-1943) – foi acusado de alta traição ao regime nacional-socialista. Alexander Schmorrell (1917-1943), segundo autor da frase acima, Willi Graf (1918-1943), Kurt Huber (1893-1943), seu professor de filosofia, e outras dez pessoas foram condenadas à morte dois meses mais tarde.

Hans, Sophie, Christoph, Schmorell, Graf e Huber formavam o núcleo do movimento de resistência que ficou conhecido como "A Rosa Branca" (Die Weiße Rose). Sobre ele há dois filmes: o primeiro "Die Weiße Rose" (1982) dirigido por Michael Verhoeven, é baseado em documentos pertencentes às famílias dos envolvidos e teve ampla repercussão na Alemanha; o segundo, "Sophie Scholl: The Final Days" (2009), concentra-se nos dias que antecedem a prisão dos integrantes da Rosa Branca e focaliza a comovente experiência de Sophie Scholl. O roteiro utiliza documentos ainda não conhecidos nos anos oitenta - reproduzidos quase literalmente em vários diálogos do filme (no interrogatório, por exemplo).


As primeiras informações sobre a "Rosa Branca" tornaram-se conhecidas graças ao livro da irmã mais nova de Hans e Sophie, Inge SCHOLL, "Die Weiße Rose" (Frankfurt a. M.: Fischer, 2001). O livro é amplamente conhecido na Alemanha, em muitas escolas ainda está na lista de leituras obrigatórias.

Em tempo: houve outros movimentos de resistência ao nacional-socialismo na Alemanha – a Jüdischer Kulturbund, o Kreisauer-Kreis, Schulze-Boysen/Harnack Organisation, por exemplo. De diversas tendências políticas e religiosas, procuravam se opor ao regime da forma como lhes era possível: todos eles foram mais cedo ou mais tarde violentamente reprimidos pelo regime. Mais informações? Veja o estudo de Corina Petrescu, "Against All Odds: Subversive Spaces in National Socialist Germany" (Oxford et. al.: Peter Lang, 2010).

Quanto ao grupo "A Rosa Branca", o que faz dessas seis pessoas – que talvez contassem com a colaboração de vinte ou cinquenta estudantes dos cerca de oito mil inscritos na Universidade de Munique – algo especial?

Em primeiro lugar, a quase ingenuidade de suas ações: entre junho de 1942 e janeiro de 1943, os estudantes redigiram e distribuíram panfletos de crítica ao regime. Dos primeiros panfletos foram feitas cem cópias, do último, entre duas ou três mil. Os pesquisadores costumam dividir as ações dos estudantes em 3 fases: a que inclui a redação dos quatro primeiro panfletos, que exortavam à resistência passiva; a segunda fase acontece após a volta dos estudantes do front; e a última fase, que incluiu pichações de muro pela cidade de Munique – ato temerário na época –, e o último panfleto, que causou a prisão. Os panfletos impressionam tanto por unirem a reflexão filosófico-existencial a uma corajosa análise política, quanto por expressarem a convicção de que qualquer mudança social só seria possível a partir do momento em que a responsabilidade pessoal diante dos acontecimentos fosse plenamente assumida.

Mas a falta de sistematicidade das ações e a complexidade dos panfletos – de forma nenhuma dirigidos às “massas” – são apenas alguns indícios do que vários estudiosos do tema já confirmaram: a chamada “Rosa Branca” não chegou a se constituir como movimento, era um grupo de amigos. Suas iniciativas, que lhes custariam a vida, não nasciam de projeto político ou cultural, mas de um “anseio por liberdade individual e de uma coletividade que levava a sério o ser humano em sua subjetividade e respeitava a sua dignidade pessoal” (como diz Jens e lembrado por Corina Petrescu em sua pesquisa).

Seis pessoas, seis panfletos mimeografados, uns pouco mil leitores desconhecidos, se tanto, em busca de liberdade e respeito. Nada mais perigoso para um regime ditatorial.

Observatório Ocidentalismo


por Leandro Oliveira

Por que não pessoas mais maduras? Michael Kaiser, diretor do Kennedy Center de Washington traz um pouco de bom senso ao debate sobre políticas culturais da música clássica:

At virtually every discussion I have with board members of arts organizations (and many discussions with other arts managers as well), the desire to attract younger audience members is a primary topic. The issue is typically introduced by someone commenting negatively on the age of most current audience members: "Our audience is too old. Everyone has gray hair. Our audience members are likely to die away. We need a younger audience. How do we get young people to come to our performances?"

While I appreciate the spirit of this question, I don't really agree with the mindset of the speakers who speak as if the missions of our organizations are not aimed at servicing senior citizens. And the fear that the older audience members will die out is not exactly justified. Many people, as they reach middle age, increase their arts participation as their discretionary time and money increase; these people replace those senior audience members who do pass away. (...)


Na íntegra, aqui.

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As tantas perguntas que Greg Sandow (não) tenta responder:

(...)What is art, in a public policy sense? Is it a public good? A commodity? A service? A luxury? A form of entertainment and recreation? A social necessity? What is its purpose? To entertain and amuse, or serve as a diversion from "real life"?? To educate? To challenge? To be part of the public political discourse? Who gets to to say what is art, and what is worth preserving, producing or supporting? Professors? The NEA? The state arts council? The "man in the street?" Museum curators? Politicians? (...)

Na íntegra aqui.

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Letícia e os brasileiros no tsunami:

(...)A gente ganhou um monte de espelho em 1500 mas, pelo jeito, a novidade durou pouco.

Na íntegra aqui.

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Comprar compositores raros ou ouvir uma rádio dedicada e fazer a própria seleção, é o que oferece Classical Archives, o maior site de música clássica na internet. Vale conferir.

sexta-feira, 18 de março de 2011

Inscripción

De la serie de hechos inexplicables que son el universo o el tiempo, la dedicatoria de un libro no es, por cierto, el menos arcano. Se la define como un don, un regalo. Salvo en el caso de la indiferente moneda que la caridad cristiana deja caer en la palma del pobre, todo regalo verdadero es recíproco. El que da no se priva de lo que da. Dar y recibir son lo mismo.

Como todos los actos del universo, la dedicatoria de un libro es un acto mágico. También cabría definirla como el modo más grato y más sensible de pronunciar un nombre. Yo pronuncio ahora su nombre, María Kodama. Cuántas mañanas, cuántos mares, cuántos jardines del Oriente y del Occidente, cuánto Virgilio.


Jorge Luís Borges.

Day of Digital Humanities


por Leandro Oliveira

Hoje celebra-se em todo o mundo o "Day in the Life of the Digital Humanities". É claro que ninguém no Brasil ouviu falar do assunto, mas cá estamos.

Dois universos não tão distantes: scholars das humanidades e a produção digital. A web tem mais de vinte anos e não há dúvida que os estudos humanísticos tomaram para si muitas vantagens do potencial da tecnologia; infelizmente, nós estamos ainda relativamente tímidos - mesmo quando estamos na internet, preferimos o encastelamento tradicional, a conversa entre iniciados ou membros do clube, às plataformas abertas, colaborativas e de feedback imediato.

Um exemplo: ainda hoje, é mais fácil entendermos o uso da internet pela digitalização de nossos jornais e revistas que a criação de teias de retroalimentação de conteúdo (como, aliás, experimenta Ocidentalismo.org e seus blogs convidados). O "Dia" celebra exatamente iniciativas como a nossa, que buscam explorar como blogs e a mídia social suplementa, muda e seleciona nossas referências culturais.

Uma conferência - bem acadêmica, diga-se de passagem - acontece na Universidade de Alberta, no Canadá. Como nos anos anteriores, os participantes são convidados a definir o que seria "Digital Humanities". Algumas possibilidades selecionadas:

Digital Humanities is in its simplest form conducting humanities research with the help of a computer whether it is visualizations or text analysis. Digital Humanities can also include combining our expertise of computing and programming with the humanities to complete web based projects or other projects that require some programming knowledge.
Ashley Moroz, University of Alberta, Canada

A 'community of practice' (to borrow Etienne Wenger's phrase) whereby the learning, construction and sharing of humanities knowledge is undertaken with the application of digital technologies in a reflexive, theoretically-informed, and collaborative manner.
Kathryn E. Piquette, Humboldt-Universitaet zu Berlin, Germany

Using computational tools to do the work of the humanities.
John Unsworth, University of Illinois, USA

I do my small part to define it through my work as a humanist--by bringing traditional questions about values, norms, and the role of education to bear on the changing landscape of human expression, communication, and production.
Mark Fisher, Penn State b, USA

Production of knowledge in forms not limited to traditional (e.g. pre-electronic) media.
Trysh Travis, University of Florida, USA

Humanities is humanities, digital or not -- the study of literature, fine arts, history, language, and philosophy. We don't distinguish digital sociology or digital astronomy, so why digital humanities? Just because computers are involved doesn't mean the basic nature of the subject area is any different than it has been been traditionally. Computers allow for doing things with texts and other cultural artifacts that could not be done feasibly without the computational power and storage modern computers provide. Computers should be considered an extension of the scholar's mind -- very useful tools indeed.
Philip R. Pib Burns, Northwestern University, USA

The digital humanities, quite simply, is doing humanities work with digital media. Though much has been made about digital media, like video games, threatening the kind of book learning that humanists do, many of the same critical problems and questions we have been working on for centuries still apply and can be used to read these new media forms. Furthermore, these digital tools can be leveraged to help us do this kind of intellectual labor. So digital humanities includes both doing humanities on digital objects and using digital objects to do humanities.
Timothy Welsh, University of Washington, USA

It is the use of digital technologies to assist people working in the Humanities in ways unimaginable to re-discover the meaning of life (!) in this digital age.
Vu Thi Phuong Anh, CETQA, Vietnam National University , Vietnam

Digital Humanities is, increasingly, just Humanities - as far as I'm concerned. New tools lead to new methodologies, new perspectives, and new questions that all humanists should be aware of and concerned with.
Benjamin Albritton, Stanford University, USA

quinta-feira, 17 de março de 2011

A música no Império do Sol Nascente


por Leandro Oliveira

As notícias não são nada razoáveis pelo oriente. O tsunami que devastou cidades inteiras ainda desdobra algumas tragédias como as das usinas nucleares; trabalhadores locais já se tornam heróis nacionais, expondo-se como estão às conseqüencias da radiação.

Pelo mundo, solidariedades. A Sinfônica de Düsseldorf dedica sua récita da nona sinfonia de Beethoven (regida por Yutaka Sado) às vítimas da tragédia. Dia 26 de março.

A cidade parece ter a maior colônia japonesa na Alemanha. São Paulo, salvo engano, tem a maior colônia da América Latina.

Enquanto isso, a agitada temporada de Tóquio sofreu diversas baixas: a Filarmônica Tcheca e a BBC Symphony abandonaram a cidade.

A orquestra do Maggio Musicale Fiorentino foi pega de surpresa no meio de uma apresentação; cancelou todas as récitas restantes de "La Forza Del Destino" e "Tosca", mas não consegue sair de Tóquio. O cancelamento foi devido ao abandono de alguns solistas, com paura da crise nuclear. Todos do meio musical sabemos da responsabilidade extraordinária de Zubin Mehta nestas ocasiões. É notória sua dedicação à Filarmônica de Israel na ocasião da guerra do Libano - quando todos fugiam de Tel Aviv, o maestro fez o caminho contrário para exatamente ficar junto à orquestra.

Acredita que nas crises, é quando as pessoas mais precisam de música.

Membros do coro se prontificaram à substituição, o maestro Mehta esforçou-se para manter a temporada. Mas o sindicato dos músicos não cedeu - humano, demasiado humano.

A orquestra NHK realizava um concerto na ocasião do terremoto com o maestro Daniel Harding (Prelúdio do Parsifal e a Quinta de Mahler); a Orquestra Filarmônica do Japão apresentava-se com um programa russo (Stravinsky e Prokofiev).

A Nova Ópera Nacional cancelou sua temporada de balés e ópera. Não há previsão de novos concertos.

Para que nossos corações se voltem aos afetados, deixo-os com o "Requiem" do compositor Toru Takemitsu (1930-1996)

quarta-feira, 16 de março de 2011

Beethoven, Kubrick e outros paradoxos

por Leandro OLiveira

A Osesp abre sua temporada 2011 com a Sinfonia nº 9 de Beethoven. Pretendia ilustrar a aula mostrando parte da influência da peça em alguns ícones do pop. Me ocorreu, é claro, o extraordinário "Clockwork Orange" de Stanley Kubrick. (Coincidentemente, acabo de ler sobre o lançamento comemorativo de uma caixa especial pelos 40 anos do filme; isto me serviu de inspiração para o post.)


Não há novidade nenhuma: Kubrick foi um grande conhecedor de música e tinha prazer especial em selecionar a trilha sonora para seus filmes. O que mais me impressiona em "Laranja Mecânica", mas também, evidentemente "2001", "Full Metal Jacket", ou "Eyes Wide Shut" é como a música compõe a cena - não somente sublinhando o estado de ânimo de personagens, algo comum, mas ainda criando verdadeiros paradoxos áudio-visuais.

O que quero dizer com isso? Volto a "Laranja Mecânica" em minha cena preferida. Ela acontece logo após uma espécie de motim entre os Droogs: lamentam o jeito de Alex, seu líder, sua forma de dar ordens e disciplina, questionam seu tratamento ditatorial. Para acalmar os ânimos Alex sugere negociar e pagar uma rodada de "moloko-plus" no Korova milkbar; enquanto retornam ao bar pela marina (a cena é rodada em camera lenta), Alex reflete:

As we walked along the flatblock marina, I was calm on the outside but thinking all the time. So now it was to be Georgie the General, saying what we should do, and what not to do, and Dim as his mindless, grinning bulldog. But, suddenly, I viddied that thinking was for the gloopy ones, and that the oomny ones used like inspiration and what Bog sends. For now it was lovely music that came to my aid. There was a window open, with a stereo on, and I viddied right at once what to do.

A "música pela janela" é a abertura de "La Gazza Ladra" de Rossini. No caso, estamos diante deste tipico oxímoro feito com música, que não pela primeira vez trago à baila neste site: Rossini serve - e não só ali, mas em todo o filme - para banalizar ou, talvez naturalizar, a violência e tensão dos personagens.

Mais tarde, quando o tema do quarto movimento de Beethoven é introduzido como elemento para reeducação de Alex - behaviourismo extraordinário - não deixa de ser aflitivo perceber que uma música que todos reconhecemos como "a ode à alegria" possa gerar tanta dor-de-cabeça. O paradoxo áudio-visual é tão claro que precisei desistir da cena em minha aula: a força das imagens faria necessariamente que o público, na ocasião do concerto, fizesse semioses pouco pertinentes a uma sinfonia que, de uma maneira ou de outra, pretende narrar a passagem das trevas à luz; o último movimento é uma apoteose de esperança - a léguas de distância das funcionalidades pacifistas e socializantes do roteiro do filme.

O diretor, é claro, sabia disso - e, por isso, eu tive que mudar o plano de aula. Para ilustrar o impacto de Beethoven em nossas vidas, menos que Kubrick e seu cinema extraordinário, decidi mostrar a popularidade do último movimento da Sinfonia nº9 no toque do meu celular.

terça-feira, 15 de março de 2011

Os usos filosóficos de uma catástrofe

por Leandro Oliveira

Houve um tempo onde um grande desastre com o que flagela os habitantes do Japão poderia servir como oportunidade para giros filosóficos ou poéticos de alta monta. Na ocasião do terremoto de Lisboa, Voltaire vê a oportunidade de apontar a ausência de Deus no mundo; a despeito das idiossincrasias do autor, jornalista mais que filósofo, é fato que versos semelhantes são belos em sua revolta:

O malheureux mortels ! ô terre déplorable !
O de tous les mortels assemblage effroyable !
D’inutiles douleurs éternel entretien !
Philosophes trompés qui criez : « Tout est bien » ;
Accourez, contemplez ces ruines affreuses,
Ces débris, ces lambeaux, ces cendres malheureuses,
Ces femmes, ces enfants l’un sur l’autre entassés,
Sous ces marbres rompus ces membres dispersés ;
Cent mille infortunés que la terre dévore,
Qui, sanglants, déchirés, et palpitants encore,
Enterrés sous leurs toits, terminent sans secours
Dans l’horreur des tourments leurs lamentables jours !
(...)

Dessa perplexidade sai ainda o "Candide", que é, sim, uma bobagem. Mas que bobagem! Muito distante daquelas atrozes que li outro dia. O terremoto, seu desdobramento em um tsunami (na minha época se dizia "maremoto"), a perda de tantas vidas, conseguiu ser motivo para o mais baixo proselitismo, a oportunidade de acusar "the human-caused vulnerability of our civilization".

Ou de reavaliar as superstições atávicas que todos, de uma maneira ou de outra, cultivamos: um giro mental dos mais bizarros dando à Natureza poderes "sobrenaturais" - e assumindo assim um paradoxo que não é meramente nominal mas uma necessidade de justificar moralmente causalidades complexas e cegas, frutos de uma lógica por vezes madrasta que é aquela da Natureza.

Ars Grammaticae - o ensino da gramática no Brasil



por Leonardo Valverde

Tudo no Brasil, no que diz respeito ao estudo da linguagem, de nossa língua, é feito de forma que as pessoas odeiem a gramática, ou pior, não sejam minimamente curiosas ao ponto de consultá-la. Isso vem de uma falha do ensino de língua portuguesa por aqui. E certamente do Ministério da Educação também, por insistir em determinar apenas uma forma de ensino do português.

(Foi o que o Pedro Sette tratou em seu post, e cuja solução estou de acordo.)

Mas quero apontar mais claramente esta falha. Saber de onde vem.

Quando uma pessoa me diz que já ouviu falar de uma “oração reduzida de infinitivo” e não sabe me descrever o fenômeno, é sinal que há um problema aí. Afinal, para que seu conhecimento da língua fosse maior, bastaria ela me dizer para que serve o fenômeno e saber quando imitá-lo (sim, isso mesmo, imitar) em seu uso, sem precisar, inclusive, da menção da nomenclatura. Ou seja, conhecem a nomenclatura sem a identificação de seu fenômeno correspondente. Isso é basicamente o que acontece com o ensino da língua no sistema determinado pelo Ministério: ele ensina nomenclaturas gramaticais. E isso tanto no setor público, quanto no privado. É lógico que há aí a consciência do professor numa sala de aula, de tentar reverter esse quadro o máximo que pode. Mas é tarefa hercúlea, o sistema contaminado exige que o professor ensine de maneira que seus alunos “se dêem bem” nas provas (e educação no Brasil ainda é uma mera questão de “se dar bem”).

Já temos aí um dado importante: o sistema educacional brasileiro parte do princípio que o estudo da gramática (no molde imposto) faz com que o aluno escreva e fale melhor.

Pergunto: A gramática pode fazer você falar e escrever melhor? E de onde vem esta noção?

OBS: Este post é apenas um aquecimento (neste retorno), já volto para responder as questões.

Retirado de LeonardoValverde.com.

domingo, 13 de março de 2011

OCIDENTALISMO.ORG


Há tempos declaramos guerra. Sim, caros leitores, para nós são tempos de guerra. Talvez por sermos jovens, acreditamos estarmos travando batalhas épicas. O objetivo destas batalhas é a expulsão peremptória das hostes inimigas - expulsas todas, sem exceção, sob açoite, sem piedade ou dó, com toda nossa paixão, nossa força e comprometimento.

Há tempos declaramos guerra santa – Jihad! – à ignorância. À ignorância em geral, mas também e sobretudo à nossa própria, com a qual nascemos e contra a qual lutamos por toda a vida. Pois se as bestas nascem e desde o primeiro dia gato é gato, cão é cão, cavalo é cavalo, os homens, ao contrário, nascem mas não são ainda homens. Devem tornar-se homens. E para isso, precisam de aprendizado e educação, dos conhecimentos acumulados e transmitidos pelas gerações passadas. Em poucas palavras, de cultura e tradição. Sem ambas poderemos ser "homo", mas seguramente jamais "sapiens".

Ocidentalismo.org é uma revista digital sobre cultura e idéias, artes e ciência, filosofia e comportamento. Questões atuais, sejam elas locais, nacionais ou internacionais, são apresentadas à luz da grande tradição da cultura ocidental, trazendo parâmetros para a discussão de problemas reais do dia-a-dia de cada um de nós. Por isso, Ocidentalismo.org é atualizado diariamente, de segunda a sexta-feira em formatos variados como reportagens, ensaios pessoais, crítica, memórias, textos ficcionais ou registros de viagem.

Ocidentalismo.org é uma revista independente e seus colaboradores são voluntários convidados que escrevem para pessoas que curtem ler e pensar sobre aquilo que lêem. Acreditamos que a reflexão criteriosa exposta de forma clara é o que une de fato uma publicação à seus leitores – e isso independe de idade, gênero, nível educacional e salário. Depende apenas da vontade de compartilhar de modo sincero a curiosidade intelectual.

Uma publicação cultural é, de fato, uma empreitada sofisticada que, por mais leitores que tenha, terá sua qualidade medida, sempre, pela qualidade de seu pior leitor. Eis uma empreitada que seleciona - autores, temas e leitores. Isso queremos com Ocidentalismo.org e para isso convidamos nossos melhores parceiros. À luta pois, contra o obscurantismo de nossos difíceis tempos!

quinta-feira, 10 de março de 2011

Sinal de virtude

Dilema da cultura moderna, a liberação do aborto conta com defensores e acusadores em distintas vertentes do espectro ideológico e intelectual. A tomada de posição nem sempre prevê os dramáticos desdobramentos práticos - e é isso que leva a reflexões intrigantes sobre o limite dos meios para justificativa dos fins, sempre nobres à vista de ambos partidos.

por Joel Pinheiro da Fonseca

As duas imagens que tenho do militante são o socialista e o islamista. O que une a ambos? Uma coisa é o quererem implantar sistemas sociais não muito desejáveis para um homem racional, embora bem diferentes entre si (a não ser, é claro, naqueles que unem marxismo à umma). Mais do que nos fins, há uma igualdade que diz respeito aos meios: para fazer a revolução, implantar a ditadura do proletariado ou o califado universal, tudo vale. Vale matar inocentes (que, claro, por não estarem conosco, já não são tão inocentes assim), vale roubar, vale mentir. Pela causa posso cuspir na causa e jurar nada ter com ela.

Nem todos os movimentos dessas duas correntes têm essa característica. Mas ela foi e é prevalente o bastante para marcá-las. O mesmo já foi o caso até com o Catolicismo em certos lugares, mais especificamente na Inglaterra no início de era moderna (onde eles eram, verdade seja dita, brutalmente reprimidos; padres eram imediatamente condenados à morte). Alguns católicos, liderados por Guy Fawkes, tentaram explodir o Parlamento com todos os parlamentares dentro (a idéia ingênua de mandar uma carta para um parlamentar católico alertando-o do fato pôs tudo a perder, felizmente), indo inclusive contra os pedidos dos jesuítas disfarçados que ministravam em segredo pelo país. O problema é que mesmo entre os jesuítas circulavam diferentes versões da doutrina da equivocação e da reserva mental, o que ajudou na construção da caricatura do jesuíta sorrateiro, esguio, do qual é impossível extrair uma resposta que não seja dúbia. Houve muita propaganda falsa de protestantes e do governo inglês, mas os católicos no mínimo ofereceram material para tal campanha. Lições foram aprendidas.

Avancem a fita para os dias de hoje. Nos EUA, apesar da opinião pública radicalmente dividida, vigoram leis de aborto dentre as mais liberais do mundo; pode-se abortar por qualquer motivo e até bem tarde na gestação. Se o aborto falhar e o bebê nascer vivo, pode-se deixá-lo morrer. O movimento contrário ao aborto tem ganhado força. Gente que era pro-choice hoje é pro-life. Entre eles estão Bernard Nathanson, ex-médico abortista que, após ver imagens de ultrassom dos fetos que ajudava a matar, mudou de posição e passou sua vida fazendo campanha contra a prática, e até a Roe do Roe Vs. Wade, o processo que liberou o aborto, tornou-se ativista pro-life e converteu-se ao Catolicismo.

O movimento pro-life é difuso, abrangendo todas as classes e religiões (tendo inclusive partidários ateus), mas grande parte da força dele vem dos católicos americanos, que encabeçam diversas iniciativas. Uma delas, a Live Action, fez seus membros se apresentarem a clínicas de aborto da Planned Parenthood como prostitutas menores de idade acompanhadas de seu gigolô, que pede auxílio para testar e realizar abortos em suas “funcionárias”. O auxílio dado a eles prova que as clínicas da PP dão suporte a atividades ilegais e nada fazem para impedi-las; tudo devidamente filmado com câmeras escondidas.

Tática interessante, mas... seria ela moral? Afinal de contas, o que os membros do Live Action fazem é mentir, não é? Pode-se mentir por uma boa causa? Diferentes figuras do cenário católico americano deram suas opiniões. Peter Kreeft considera o ato obviamente correto. Mark Shea discorda.

É um caso difícil. Por um lado, não dá para negar que os membros da Live Action mentiram. Por outro, se concluirmos que sua ação é imoral, então todo o jornalismo investigativo e mais, toda infiltração policial em gangues de criminosos, tática consagrada da polícia, são igualmente imorais. Ademais, parece que há casos em que mentir é justificável, como o velho e conhecido “nazista à porta, judeus no sótão”. Alguns diriam que daí não se trata de mentira, mas apenas de um falsilóquio; na minha opinião, uma mal-sucedida tentativa de mudar definições para sumir com o problema.

O intuicionismo moral do Peter Kreeft não me convence; o argumento de autoridade do Mark Shea também não – embora ele faça uma distinção que me parece relevante: no caso do nazista na porta, é o inimigo que intima a responder-lhe; no caso da Live Action, são os próprios agentes que tomam a iniciativa de dar informações falsas para enganar o adversário. Ainda assim, aceitando sua posição, teríamos que concluir que o jornalismo investigativo e a infiltração policial em gangues criminosas são sempre imorais? Há uma diferença entre mentir e interpretar um papel falso (num contexto em que isso sirva para enganar o interlocutor)? Para mim a prova da honestidade de um movimento ou militância está na capacidade de fazer esse tipo de auto-questionamento. Ao invés de transformar a causa anti-aborto num ideal que a tudo santifica, colocam também ela dentro de uma estrutura moral.

Excesso de auto-questionamento é um vício destrutivo à própria causa; ausência dele é inescrupulosidade; na medida certa, um brilhante sinal de virtude.

Reitrado de Dicta.com.br

quarta-feira, 9 de março de 2011

Pensamentos soltos

por Leandro Oliveira

Desde muito não vejo novelas. Então, não há jeito, a cena é impagável mas se tornou conhecida por mim através do excelente site da Letícia L, o Flanela Paulista. E é com agradecimentos a ela que posto o vídeo, antes de falar de coisas mais pertinentes ao nosso mundinho highbrow.


Pois não é que a OSB teve seu momento Clô Souza e Silva esta semana quando, no meio do caos das novas audições, sobrou uma cobertura especial no blog do Norman Lebrecht, sem dúvida o crítico mais conhecido da música clássica internacional?

Está tudo lá: o protesto no facebook (com a estranhíssima carta de Alex Klein); a reverberação pelo mundo; o refugo da Isabelle Faust que participaria da comissão de julgamento das audições; a carta bizarra da Presidente da União dos Músicos do Rio de Janeiro apelando, vejam só, pelos "direitos humanos" dos músicos! (esses sindicalistas precisam aumentar um pouco o vocabulário, pois não...); os esforços do professor Jim Willt pela saída dos membros da banca julgadora; a carta do Roberto Minczuk diretamente ao Lebrecht (o que mostra antes de tudo a influência do crítico, mas também, o nível de pressão interna da administração da orquestra) além, ufa!, do desmentido dos itens da cartas do maestro pelos músicos da orquestra.

É a OSB no Projac!

O resumo de Lebrecht, tal como um editorial do Cid Moreira:

The musicians fear this procedure will cost many, perhaps most of them, their jobs. The conductor, Roberto Minczuk, insists that no jobs are at risk. On the contrary, the players who pass the audition will be paid more.

Clearly, neither side trusts or understands the other.

Why else would an orchestra hold auditions except to select and reject musicians? One of the international musicians named for the jury says she was unaware of any such role; another has withdrawn.

What happens now? Are the members of the Brazil Symphony Orchestra expected to play before the three remaining judges, one of who is contemplating resignation?

And how will the orchestra ever regain trust in a conductor and management who have such little faith in their own players? It would seem that many jobs are now at risk, including maestro and manager.

How soon? Your guess is as good as mine. But I cannot recall an orchestral dispute in recent years when the two sides were so far apart and good will was so low.


O que, aliás, ressalvo não por cabotinismo mas por respeito aos leitores, foi meu julgamento a respeito no post de alguns dias...

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Sabemos que não há musicologia de verdade no Brasil quando alguns dos nossos mais importantes mitos ainda precisam de real posicionamento - não para o grande público, que é naturalmente ingênuo, mas para os especialistas. Fernando Randau faz uma exploração interessantíssima sobre Villa-Lobos e seus vínculos políticos, descarnavalizando um pouco a lenda. E aponta para a tese "Um maestro no gabinete: música e política no tempo de Villa Lobos" de Analia Chernavsky, defendida em 2003 na Unicamp, que parece fundamental.

(O assunto é palpitante e se alguém se der o trabalho, verá que apontar tal indigência é algo recorrente no site).

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James Levine larga a Boston Symphony por problemas de saúde. O meu amigo Marcelo Lehninger, assistente da orquestra, vai ser o responsável pelo primeiro dos três concertos no Carnegie Hall. Mesmo feliz pelo Marcelinho, a verdade é que toda a história é melancólica, para muito além da saúde do maestro.

A nomeação e a sobrevida de Levine no cargo foi uma vergonha; não posso que me indignar quando da usurpação de nossos melhores homens no front: e o caso é que algumas instituições fazem o papel de nossos melhores homens, legitimando e dando parâmetros para nossas sensibilidades. Esta é a importância de um bom museu e de uma boa orquestra. Assim como ficaria triste com a má administração do Louvre, me entristece perceber que a Boston Symphony está desde muito tempo perdida por nós, nesta batalha que travamos, como cultura, pela nossa preservação (batalha dura entre ocidentais, coitados, tão suspeitos neste mundinho politicamente correto...).

Não bastasse o desastroso quarto de século sob a batuta do Seiji Ozawa - um gênio da técnica da regência mas um músico bem fraquinho, esta é a verdade - a orquestra mais rica dos EUA via agora como rotina um chefe dividido em tantas atribuições (seguia como regente do Met de Nova Iorque), e seus cancelamentos. O resultado não poderia jamais ser feliz a longo prazo e, qual um general envelhecido e senil deve saber a hora de deixar suas responsabilidades, Levine deveria ter há muito tempo pedido para sair.

Tomara que agora a orquestra encontre alguém que possa a ela se dedicar. E que não seja mais um selvagem como os dudaméis e outros tantos que estão por aí. Todo músico sério sabe, a Boston Symphony é uma boa tropa - onde, no entanto, há muito trabalho a ser feito.

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Queria falar também da crise da Detroit Symphony, a greve dos músicos que parece ser o único assunto de verdade no mundo musical atual - a OSB, entre os comentadores do norte, é querela aborígene, uma espécie de batalha entre líbios e seu khadafi particular, cuja intervenção civilizada só acontecerá com a chancela da ONU. Ali, no império, o problema é sério pois lida com a discussão sobre o papel de uma instituição musical como uma orquestra sinfônica em épocas de crise. A cidade de Detroit tem praticamente 30% de casas abandonadas por conta da última crise financeira. A posição dos músicos se tornou muito antipática ao público, léguas de distância das orquestras que, na segunda guerra, reuniam-se sob bombardeio para levantar o moral da população. Algo deve acontecer nos próximos dias, mas a chaga já deve estar rasgada: em meio a uma das mais graves crises econômicas de todos os tempos, os músicos de Detroit preferiram viver em seu universo particular, pleiteando aumento e que tais. Realizam a greve de músicos mais longa da história (já dura mais de cinco meses) e é possível que jamais saiam dela. Ao menos espiritualmente. Mas acho que é assunto para outro post... talvez não. A ver.

terça-feira, 8 de março de 2011

Cem anos atrás...



Carnaval — 1910
por Graciliano Ramos

Eram três dias bem desagradáveis. Sujeitos precavidos fechavam-se, olhavam suspeitosos a rua, mas isto não os livrava de pesares: se se distraíam, inundavam-nos jatos de água suja. Iam mudar a roupa, furiosos. Avizinhavam-se depois das janelas, atentos aos moleques armados de bisnagas enormes de bambu. Além desses inimigos, havia os indivíduos que traziam, em mochilas, pacotes de alvaiade, zarcão, ocre, tinta de todas as cores, com que se pintavam os transeuntes.

O doutor verboso declamava discursos irados nas esquinas, referia-se aos selvagens, aos tupinambás. Ninguém lhe dava importância — e a zanga esfriava. Bem, agora, molhado, não valia a pena recolher-se. O jeito que tinha era entrar na função, tornar-se também selvagem, vingar-se, provocar outras indignações e arrastar para a folia os amigos cautelosos.

Animavam-se todos e perdiam a compostura, acabavam achando aquilo interessante. Alguns viam perfeitamente que estavam fazendo maluqueira e desregravam-se com moderação, quase a pedir desculpas encabuladas à cidadezinha pacata. Homens graves, pais de família, tisnados, bebendo, aos gritos. Mau exemplo, doidice. Na quarta-feira retornariam a sisudez necessária.

Cadeiras nas calçadas. Meninas sérias e bicudas reprovando os excessos, sacudindo com espanto e enjôo as cabeças, onde se arrumavam papelotes. Não se contaminavam, estavam livres da pintura, dos banhos, de atracações perigosas: comportavam-se direito, como se aguardassem a passagem da procissão. Rapazes ousados atiravam nelas esguichos de água de cheiro e eram mal recebidos. Muxoxos. Que assanhamento! Nada de brincadeira. Brincadeira com moça findava na igreja ou rendia pancada. Os desejos não se escondiam sob nuvens de confete, não se amarravam com serpentinas, não se excitavam com éter.

Ainda se desconhecia o automóvel. A gente escassa pisunhava nas barrocas do calçamento ruim, equilibrava-se nas pedras pontudas.

As negras se haviam tingido com papel vermelho molhado. E andavam tesas para não desmanchar os enfeites do pixaim, branco de fiapos.

De longe em longe desfilavam parafusos, tipos envoltos em numerosas anáguas que se iam encurtando. As de cima, perto do pescoço, eram camisas de crianças. Esses espantalhos andavam inchados por dentro e por fora pacholas, cobertos de renda engomada.

Papangus vagabundos enrolavam-se em sacos de estopa, sujos, as caras escondidas em fronhas, as mãos calçadas em meias.

Bobos de máscaras horríveis se esforçavam por aterrorizar os meninos. Gingavam, falavam rouco e fanhoso:

— Você me conhece?

Se não conseguiam disfarçar-se, recebiam vaia e ficavam arreliados.

O índio, de penacho e tanga, era personagem obrigatória e silenciosa.

Passava o cordão, levantando poeira, causando entusiasmo. Um frevo decente em redor do porta-bandeira. Repetiam-se cantigas de dez anos sem nenhuma alteração, muito bem ensaiadas. As figuras marchavam na disciplina; o homem da maromba conduzia o bando, importante; papai velho exibia vaidoso a cabeleiras de algodão e as longas barbas de espanador; o morcego, na frente, fazia piruetas, agitando as asas de guarda-chuva.

Mascarados solitários produziam hilaridade com pilhérias antigas e ditos grosseiros, inconvenientes. Outros, reunidos, firmavam as críticas, motivo de receios e alarma. Alusões a notáveis acontecimentos do lugar, comentários a fatos melindrosos e particulares, mexericos todos, sem graça nenhuma. Criavam-se inimigos. E às vezes se liquidavam contas velhas.

Um cidadão espiava o morcego e o parafuso de longe. Dois ou três embuçados musculosos entravam-lhe em casa, batiam-no a cacete. Berros, súplicas, sangue, apitos sumiam-se na festa. Ninguém sabia donde vinham as pauladas — e era bom evitar opiniões. No ano seguinte as críticas seriam menos ofensivas.

segunda-feira, 7 de março de 2011

Sugestões e receitas antitédio...


por Hilda Hilst

Pequenas sugestões e receitas do espanto antitedio para senhores e donas de casa durante o carnaval.

I.
Pegue um nabo. Coloque duas ou três palavras dentro dele, por exemplo: bastão, ouro, amplidão. Chacoalhe. Você não vai ouvir ruído algum. É normal. Ai ajoelhe-se com o nabo na mão e diga:

“Com o bastão que me foi dado
Com o ouro que me foi tirado
E sem nenhuma amplidão
De conceitos e dados
Quero nascer brasileiro
E poeta.”

Quem te ouvir vai ficar besta.

II.
Colha um pé de couve e dois repolhos. Embrulhe-os. Faça as malas e atravesse a fronteira. Tá na hora.

III.
Pergunte ao seu filhinho se ele quer laranja descascada de tampinha ou de gomo. Se ele disser que quer laranja descascada de tampinha, diga que um menino bem educado sempre escolhe a de gomo. Se ele começar a chorar, chupe você a laranja. De tampinha, naturalmente.

IV.
Enfeite a mesa com flores. Compre um peru. Feche as crianças no banheiro. Antes de começar a ceia, convide seu marido para dançar ao redor da mesa (não mexa com o Peru). Inopinadamente pergunte se ele gosta de trufas. Se ele disser que sim, gargalhe algum tempo atrás da porta e diga que “trufas não tem não, amorzinho”.

V.
Compre manteiga. Passe-a nos dedos (esqueça Marlon Brando). Chupe-os. E diga em tom de oração: Que vida solitária, meu Deus! (Contenha-se).

VI.
Compre uma língua de tucano (é uma umbelífera), uma língua de vaca (Chaptalia nutans é seu nome cientifico), um lírio branco (Lilium candidum), dois caquis (não é cáqui, não vá comprar o brim da cor dos caquis), ferva durante cinco minutos. Depois jogue fora, olhando para o alto. É uma simpatia para você não dormir.

VII.
Corte um saco em pequenos pedaços. Um de estopa, evidente. Embrulhe vários ovos, um por um, em cada pequeno pedaço de estopa. Pinte caras descarnadas, dentes pontudos e beiços vermelhos na cara dos ovos (sempre esses de galinha ou de pato, é desses que eu estou falando). Quando alguma das tuas crianças começar a pedir aquelas coisas caríssimas e imbecis que são sugeridas na televisão, cubra-se de negro a noite, use tintas fosforescentes para ressaltar a cara dos ovos (aqueles) e quebre-os um a um nas pequeninas cabeças dizendo com voz rouca: parem de pedir coisas impossíveis a sua mãe, seus canalhas!

VIII.
(Se você for PhD, leia até o fim. Se não, pule esta).
Faca um buque de orelhas. É fácil. Peça apenas uma a cada um de seus dez amigos íntimos. Diga-lhes que é para uma causa nobre. Se perguntarem qual causa (não confundir com Cáucaso, é outra coisa), diga que você precisa mandar o buque para tua velha e querida preceptora inglesa (quando você tinha quinze anos, lembra-se?), que arrancou as tuas duas porque você insistiu inquebrantável durante doze horas seguidas que aquela primeira frase de Marco Antonio para o povão era, na “tua” tradução, “Emprestai-me vossas orelhas”. Todos concordarão, acredite, com o teu pedido. Ainda mais porque todo mundo sabe que “Lend me your ears” quer dizer isso mesmo.

IX.
Se você quer se matar porque o país está podre, e você quase, pegue uma pedrinha de canfora e uma lata de caviar e coloque ao lado seu revólver. Em seguida, coloque a pedrinha de cânfora debaixo da língua e olhe fixamente para a lata de caviar. Só então engatilhe o revólver. (É bom partir com olorosas e elegantes lembranças. Atenção: não de um tiro na boca porque a pedrinha de canfora se estilhaça).
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