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terça-feira, 7 de dezembro de 2010

Do hexâmetro em Português


Se algo chateia na música pop é a obviedade rítmica. Adorno sabia disso, Stravinsky sabia disso. Em poesia tem algo similar, como diz Érico Nogueira. Cansado do rock em "quatro por quatro"? Experimente o hexâmetro dactílico.

por Érico Nogueira

O hexâmetro, queridos, é o metro par excellence da poesia clássica, na qual o que conta não é a posição das átonas e das tônicas, como em quase todas as línguas modernas, senão a das longas e das breves, como em música:

Árma uirúmque canó, Tróiáe quí prímus ab óris

O acento agudo acima representa as sílabas longas, i.e., convencionalmente, aquelas que duram, na pronúncia, o dobro do tempo das breves. A chamada leitura escolar, porém, que todos fazemos no âmbito dos estudos clássicos, toma as longas mais ou menos como tônicas, como átonas as breves, reconduzindo-nos, pois, insensivelmente ou não, ao nosso próprio sistema acentual.
Toda essa patacoada para dizer que devemos ao ilustre Carlos Alberto Nunes a mais recente e bem sucedida tentativa de aclimatar o hexâmetro greco-latino ao português. Leiamos-lhe os versos iniciais da Ilíada:

Canta-me a cólera – ó deusa – funesta de Aquiles Pelida,
causa que foi de os Aquivos sofrerem trabalhos sem conta
e de baixarem para o Hades as almas de heróis numerosos
e esclarecidos, ficando eles próprios aos cães atirados
e como pasto das aves. Cumpriu-se de Zeus o desígnio
desde o princípio em que os dois, em discórdia, ficaram cindidos,
o de Atreu filho, senhor de guerreiros, e Aquiles divino.


Agora os mesmos versos, na recentíssima tradução de Frederico Lourenço:

Canta, ó deusa, a cólera de Aquiles, o Pelida
(mortífera!, que tantas dores trouxe aos Aqueus
e tantas almas valentes de heróis lançou no Hades,
ficando seus corpos como presa para cães e aves
de rapina, enquanto se cumpria a vontade de Zeus),
desde o momento em que primeiro se desentenderam
o Atrida, soberano dos homens, e o divino Aquiles.


Antes de mais, é curioso notar que a revolta contra as convenções, os hipérbatos e as figuras mais sutis e sofisticadas, em poesia, coincida, no tempo e no espaço, com o regime da ação direta, e o ódio às instâncias mediadoras, em política: o, digamos, 'imediatismo' poético contemporâneo nasceu de mãos dadas com os - sempre imediatistas e, pois, autoritários - movimentos de massa do começo dos novecentos. É o homem-massa, ou o homem vulgar - para usar expressões de Ortega y Gasset -, elevado a juiz do bom e a arauto do belo. Brutti tempi.
Pois bem: a tradução de Lourenço, numa palavra, não tem sal; o tradutor busca essencialmente verter o sentido do texto grego, e, por meio de uma distribuição mais ou menos regular das tônicas em cada linha -- mais algumas homofonias aqui e acolá --, imprimir uma aura de poesia à sua tradução em prosa. A Ilíada é solene -- é o que de mais solene já se escreveu; de modo que uma tradução, mesmo literal, fica 'poética', fica 'bonitinha'.

Mas para apreciar como convém a tradução de Nunes, é preciso de uma certa bagagem, o que a afasta um pouco do leitor 'comum': CANta-me a CÓlera -- ó DEUsa -- fuNESta de aQUIles PeLIda: trata-se de um hexâmetro clássico em português, sem tirar nem pôr. O leitor acredite: isso é uma proeza, e não é pequena.

Enfim: há um grande e mais ou menos recíproco desprezo, no que respeita à tradução dos clássicos - antigos e modernos -, entre Portugal e o Brasil. Portugal, às vezes com razão, recusando o coloquialismo e o excessivamente informal das traduções brasileiras; o Brasil, corretamente, vez por outra, fugindo do convencional e do muito engessado das portuguesas. São dois caipiras teimosos, dois inveterados provincianos.

Mudando de assunto, e à guisa de conclusão: um grande desafio seria reinventar o hexâmetro na própria poesia de língua portuguesa. Alguém se candidata?

Retirado de Ars Poetica.

Um comentário:

Anônimo disse...

Muito legal o texto sobre hexâmetro, e uma boa iniciativa também. Para mim, só uma coisa o autor pisou na bola: não seria óbvio o motivo de não utilizarmos atualmente esse metro?

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