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sábado, 5 de março de 2011

Alegorias


Os Romanos
por Rubem Braga

Foi no Leblon, no domingo de sol, e não era escola de samba nem rancho direito, era apenas uma tentativa de rancho, sem mulheres, sem música própria. Eram quase todos negros e mulatos, quase todos muito fortes e vestidos da maneira mais imaginosa, com saiotes e escudos e capacetes com muitos dourados e prateados, e de espada na mão. Cantavam o samba estranho “Maior é Deus no Céu” e no estandarte estava escrito assim: “Henredo o Império Romano”.

Todos achamos graça nesse H que dava ao enredo, que afinal não era enredo nenhum, uma súbita solenidade, sugerindo graves palavras históricas e heróicas, hostes de hunos, hierofantes, hieróglifos e hierarquias. E era muito guerreira a marcação da bateria – e Júlio César, com seu capacete de papel prateado de dois palmos de altura acima do pixaim, e brandindo com o enorme braço negro uma espada de ouro, nunca esteve tão soberbo na sua glória.

Não, não morreu o Império Romano, embora Mussolini fizesse questão de suicidá-lo pela segunda vez. Ele rebenta soberano do fundo dos carnavais e tu, Marco Antônio, continuas a suspirar pela serpente do velho Nilo. E tu, Cleópatra, continuas a dizer ao homem que envias para vigiar o teu amado: “Se o achares triste, dize que eu estou dançando: se o achares alegre dize que adoeci de súbito...” E esses pretos e mulatos que hoje dominam o mundo com suas espadas de bobagem, e se fazem Neros e Brutus e Calígulas, são os mesmos que de súbito se precipitam esfarrapados no “sujo” mais feroz – pois quando não são imperadores preferem ser miseráveis terríveis e não os pobres contribuintes da taxa sindical do ano inteiro.

A secreta gravidade e a espantosa riqueza do carnaval chocam-se com essa arrumação extraordinariamente pífia que os decoradores da Prefeitura fizeram na Avenida, em um requinte de mau gosto que tenta ser popular e sendo apenas ruim – e com a indigência mental desses carros alegóricos subvencionados, sem espírito, nem beleza, nem nada.Pelo gosto da Prefeitura acabaríamos na infinita palermice de um carnaval de Buenos Aires, com aqueles funcionários
municipais fazendo préstitos e a multidão aborrecida e enorme. Mas no seio do povo rebentam as imaginações como flores de loucura, esses sambas chorando, esses batuques heróicos, essa invenção incessante onde se despeja toda a fantasia, toda a tristeza, toda a opressão dos homens.

Bem-aventurados os que fazem o carnaval, os que não fogem nem se recolhem, mas enfrentam as noites bárbaras e acesas, bem-aventurados os gladiadores e Césares e chiquitas e baianas, e que a vida depois lhes seja leve na volta do sonho em que se esbaldam.

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