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quinta-feira, 30 de setembro de 2010

Exclusivo dos EUA - visita ao MoMA

Donald Francis Tovey já comentava que, no exercício de interpretação de obras de arte, é possível associar tudo a qualquer coisa; mas, concluía, isso não quer dizer jamais que aquilo que associamos seja de fato relevante para a interpretação. Boa parte da Arte Contemporânea vive da farsa da livre associação, uma espécie de nudez a ser apontada por "crianças" - gente invariavelmente pouco educada, de dedo em riste e alguma perplexidade bem humorada. Por vezes o Rei está nú, mas isso não o obrigará a deixar de se fazer muito importante. É o que nos mostra Joel Pinheiro da Fonseca em suas andanças por Nova Iorque.

Por Joel Pinheiro da Fonseca

Uma viagem parte turística, parte médica, tem me mantido ocupado aqui nos EUA e um tanto distante deste site. Mas agora que as coisas acalmaram, e que a Dicta terá, por um mês, um correspondente exclusivo em Baltimore, MD (”the greatest city in America”; ou pelo menos é o que está escrito nos bancos públicos ao longo do cais), tenho tempo de sobra para compartilhar as vivências culturais e sociais do coração do império.

Quero começar pela minha incursão ao MoMA (não vá ser grosseiro a ponto de errar as maiúsculas e minúsculas!) em Nova Iorque. Sim, sim, lá estão grandes clássicos da arte moderna (o Noite Estrelada de Van Gogh é, merecidamente, o maior destaque da casa); peguei até uma mostra especial de Matisse.

Mas para quê perder tempo com história antiga? O melhor da festa é o andar de arte contemporânea. Já de entrada se é brindado com cenas de muito bom-gosto em franca discordância com a moralidade sexual catoburgopuritana e uma mini-mostra de quadros protesto das “Guerrilla Girls”, que vai chacoalhar todos os seus preconceitos de gênero e raça.

Já devidamente conscientizado, pude elevar minha experiência estética com a obra de um artista – quem diria - brasileiro: Cildo Meireles. Vejam só a obra-prima (”first time on view at the MoMA”) que me aguardava.


Você é filisteu o bastante para ter achado que se trata apenas de um enorme bloco de feno? Think again...


Cildo Meireles
Brasileiro, nascido em 1948

"Thread" 1990-95
Quarenta e oito pacotes de feno, um fio de ouro 18 quilates, e cinqüenta e oito metros de fio dourado.

Presente de Patrícia Phelps de Cisneros, 2001

PRIMEIRA VEZ EM EXIBIÇÃO NO MoMA

Meireles cria esculturas e instalações que associam materiais ordinários a assuntos políticos e filosóficos mais amplos. "Thread" é um cubo modular, uma forma evocativa da racionalidade geométrica da arte Minimalista, construída de materias geralmente associados a agricultura. Um arame dourado envolve a estrutura de feno. Em uma ponta do arame, uma agulha única de ouro 18 quilates é inserido no cubo, remetendo a expressão popular "como achar uma agulha no palheiro." Ao associar substâncias com distintos valores monetários, apresentadas aqui de forma praticamente indistinguível visualmente, [Cildo] sugere a precariedade das relações econômicas; a pequena agulha, enclausurada no cubo massivo, o lugar do indivíduo dentro do sistema social.


Por mim, passaria horas naquela sala. Contudo, o doce aroma do feno que aos poucos adentrava minhas narinas acabou tendo um efeito diurético, e logo mais era minha vez de ter preocupações políticas e filosóficas enquanto promovia uma mistura de substâncias. Cota periódica de arte contemporânea: preenchida.

Retirado de Dicta.com.br

Querendo o Brasil de volta


Em semana eleitoral, é justo perguntar: e como vai a cultura? Paola faz um singelo protesto sobre a indigência da atividade de dança - certamente extensivo a outras áreas. Ela quer seu Rio de Janeiro de volta. Assim como todos nós.

Por Paola Secchin Braga

Sem vontade e sem entusiasmo de minha parte, o assunto do momento vem se impondo e uma pergunta insiste em aparecer no meio dos pensamentos: o que será da dança no Rio de Janeiro depois dessas eleições? Falo do Rio porque esta é a cidade onde vivi e trabalhei, onde vi a dança ter seu boom nos anos 80/90, passar por altos e baixos nos anos subseqüentes e pulverizar-se lentamente, até atingir o nível assustador em que se encontra hoje. O Rio de Janeiro, que já foi um dos mais importantes pólos da dança brasileira, palco onde se produzia a dança de ponta do país, se vê hoje reduzido a poucos sobreviventes trabalhando num nível assustador de precariedade, e que mesmo assim insistem em continuar, quase por implicância.

Sim, porque o que hoje ocorre nesta cidade é resultado da falta de uma política cultural pensada, planejada, duradoura. Houve um tempo em que ainda tínhamos a esperança de que, nos diversos níveis, seríamos ouvidos e respeitados. Quantas foram as reuniões organizadas, os comitês intimados, as comitivas criadas! Quantas horas gastas por inúmeros bailarinos, coreógrafos e amadores (aqueles que amam a dança) para exprimir em palavras as inúmeras necessidades da profissão! Não que em algum momento tenha havido de fato um pensamento político que levasse essas necessidades em conta, com planos e metas de longo prazo, que visasse ao crescimento e fomentasse a produção. Houve paliativos. Houve algumas pequenas ações. Ações sempre independentes e desconectadas do discurso da classe, tendo por conseqüência a criação de elefantes brancos, desnecessários e problemáticos, de idéias sem sentido, em desalinho com as demandas da profissão.

quarta-feira, 29 de setembro de 2010

Falando de música?!

Hora de entender um pouco mais da 5ª Sinfonia de Beethoven....

O sex appeal do bom selvagem


Por Leandro Oliveira

Me esforço para entender como a pregação da valorização do "estado natural" chega até hoje. Como tal idéia sai do âmbito das artes e entra em nossa vida cotidiana? Diversas mudanças comportamentais recentes - como por exemplo, o culto da alimentação orgânica - são desdobramentos das distintas matizes do mesmo projeto estético romântico transformado, como não poderia deixar de ser, em cultura. Quando nos identificamos com a mensagem de "Avatar" - a mensagem , esquecendo o efeito 3D - não percebemos mas estamos por reivindicar idéias caríssimas a Rousseau. Marina Silva não deixa de realizar uma apropriação muito particular dos discursos do jornalista francês.

Original de meados do século XVIII e cultivado em círculos do Iluminismo, atualmente, o sex appeal do "natural" nos alcança travestido em parte por "emoção espontânea". Isso me interessa, mais do que os rigores alimentares e candidaturas presidenciais, por ser o ponto de partida e justificativa para o solipsismo das expressões "intuitivas" e "únicas", tão claramente perseguidas pelo artista moderno e nossos contemporâneos. É quando la liberté se torna le mot para a vaidade.

segunda-feira, 27 de setembro de 2010

Poema de Borges

Com todos os pensamentos da equipe de Ocidentalismo.org, para um de nossos mais queridos amigos, João Vidal.

Cristo en la cruz

Cristo en la cruz. Los pies tocan la tierra.
Los tres maderos son de igual altura.
Cristo no está en el medio. Es el tercero.
La negra barba pende sobre el pecho.
El rostro no es el rostro de las láminas.
Es áspero y judío. No lo veo
y seguiré buscándolo hasta el día
último de mis pasos por la tierra.
El hombre quebrantado sufre y calla.
La corona de espinas lo lastima.
No lo alcanza la befa de la plebe
que ha visto su agonía tantas veces.
La suya o la de otro. Da lo mismo.
Cristo en la cruz. Desordenadamente
piensa en el reino que tal vez lo espera,
piensa en una mujer que no fue suya.
No le está dado ver la teología,
la indescifrable Trinidad, los gnósticos,
las catedrales, la navaja de Occam,
la púrpura, la mitra, la liturgia,
la conversión de Guthrum por la espada,
la Inquisición, la sangre de los mártires,
las atroces Cruzadas, Juana de Arco,
el Vaticano que bendice ejércitos.
Sabe que no es un dios y que es un hombre
que muere con el día. No le importa.
Le importa el duro hierro de los clavos.
No es un romano. No es un griego. Gime.
Nos ha dejado espléndidas metáforas
y una doctrina del perdón que puede
anular el pasado. (Esa sentencia
la escribió un irlandés en una cárcel.)
El alma busca el fin, apresurada.
Ha oscurecido un poco. Ya se ha muerto.
Anda una mosca por la carne quieta.
¿De qué puede servirme que aquel hombre
haya sufrido, si yo sufro ahora?

Jorge Luis Borges, Tóquio 1984.

Falsa cultura?

A humanidade se tornou histérica na Idade Média por não ter recalcado devidamente as impressões sexuais de sua infância grega.

Karl Kraus

Diário de Bordo 3 - Bruxelas


Em sua penúltima parada - Bruxelas - Érico nos leva a dois poetas de gerações distintas, a boas cervejas e talvez alguma esperança. O texto em francês, sobretudo o primeiro, não deve assustar: é obra de mestre. Comentávamos no final de semana que se tivesse condições financeiras Ocidentalismo.org deveria manter Érico eternamente na Europa; gostamos de imaginar que suas andanças por lá quase nos fazem bem mais que a ele.

Por Érico Nogueira

Saímos de Amsterdã neste último dia primeiro, com destino a Bruxelas; duas horinhas e meia, e pumba, já estávamos lá. Meu amigo, o poeta Zachary Lusten, nos reservara um hotel próximo da sua casa, a uns 20 minutos a pé de Brussel-Centraal. Tudo muito perto, tudo muito interessante.

Lusten nos fez de guia, e passou as primeiras horas daquela tarde a discursar sobre a cidade do seu coração: a diferença ente flamengo e holandês, Bélgica e Holanda, catolicismo e protestantismo, o reinado de Carlos V de Espanha, a independência da Bélgica -- e poesia, claro, francófona e neerlandesa, principalmente. Presenteou-me com Dans la chaleur vacante, do seu mestre André du Bouchet:

EXTINCTION

Le noeud du souffle qui rejoint,

plus haut, l'air lié,
et perdu.

Ce lit dispersé avec le torrent,

plus haut, par ce
souffle.

Pour nous rêver torrent, ou inviter le froid, à travers
tout lieu habité.

De la montagne, ce souffle, peut-être, au début du
jour.

L'air perdu m'éblouit, se fermant sur mon pas.

domingo, 26 de setembro de 2010

Seremos todos realistas ingênuos?


Nossa sede de realidade parece não ser saciada jamais, e a força da arte realista, em suas variadas formas, dá a impressão de confirmar a hipótese. Será mesmo? Em seu texto de estréia para o Ocidentalismo.org, Willian Silveira oferece uma saborosa crônica sobre nossa relação – por vezes ingénue – com a sétima arte. E talvez com as as demais também...

Por Wllian Silveira

Segundo nos transmite o passado, Ésquilo, militar e dramaturgo, um dos três nomes responsáveis pelo que entendemos hoje por tragédia grega, morreu vítima de uma tartaruga. Ironicamente, aquele que foi capaz de vencer a fúria dos de Dario e de domar os vocábulos não foi páreo - e quem o é? - para o destino que veio preso às garras de uma águia.

Lembro de frequentar, ainda garoto, uma loja de música na qual os CDs ficavam dispostos na parede à esquerda, logo na entrada. O lugar era pequeno, mas o bom atendimento e a qualidade dos álbuns compensavam. Sem gosto musical definido, tateava pelos gêneros que descobria dia após dia. Pedi uma indicação ao vendedor e este apontou para um álbum que trazia na capa um homem junto a um cão. O animal era desses tipos robustos e peludos; o homem, desses de chapéu que antecipam o sotaque. Não pensem em uma imagem piegas, se possível. Ao me explicar sobre o cantor – ou seja, não era uma dupla – o vendedor contou-me uma história inusitada.

Apesar de certo sucesso, o músico era, digamos, vítima de duas características que prejudicavam radicalmente sua carreira. Sofria, para desespero daqueles que dependem das plateias, de fobia social e, como se isso não bastasse, de um medo intransponível de viajar de avião. Era o arquétipo perfeito do homem do sul dos Estados Unidos que havia se resignado a permanecer em casa na companhia do cão e considerava tal possibilidade uma bênção. Eis que então brilhou sobre ele (literalmente) o sorriso sádico do destino, e o medo de morrer se desfez quando um avião caiu sobre sua casa e levou a vida do caubói. Não recordo seu nome. Não comprei seu disco. Guardei somente a história e a perplexidade.

sábado, 25 de setembro de 2010

Entre utilitários e resentniks


Qual é a "utilidade" daquilo que classicamente deveria continuar sendo objeto de estudo nas faculdades de humanas? Qual é a "utilidade" de passar anos a fio estudando as construções formulaicas em Homero? A teoria do conhecimento em Platão? O cânone de Bach? Em seu texto de estréia para o Ocidentalismo.org, Rodrigo de Lemos analisa essa situação de fogo cruzado em que vive o conhecimento humanístico.

Por Rodrigo de Lemos

Os resultados de um mestrado na minha vida mental até agora foram os seguintes: a) passei a entender um pouco mais de latim, um pouco mais de poesia latina, um pouco mais de poesia francesa e aprendi a escrever num francês um pouco menos botocudo do que há dois anos; b) desenvolvi a virtude búdica da paciência para explicar aos outros como alguém pode se interessar por esse tipo de coisa.

Claro, Deus me abençoou com amigos aos quais não preciso explicar nada disso, que entendem scholarship autofágica e até aspiram a uma vaguinha nesse pequeno Olimpo. Mas, digamos que the man in the street, que o homme de la rue não tem a mínima idéia do que acontece (e por que acontece) numa faculdade de história, de literatura ou de filosofia. Dias atrás, encontrei uma ex-colega de segundo grau (MBA terminado em 2008) muito gentil, muito queridinha (óbvio que ela me pediu o celular para “a gente marcar alguma coisa”), que, quando respondi qual era o tema da minha dissertação, me olhou quase com piedade “Mas para que serve isso?”. Curiosamente, eu mesmo não perguntei qual era a missão divina que o MBA dela viera cumprir na Terra.

O problema não está no fato de essas pessoas ignorarem as faculdades de humanas. O preocupante é que a ignorância de gente razoavelmente escolarizada em torno das faculdades de humanas dá mostras da ignorância geral com relação aos próprios temas que se estudam (ou que se deveriam estudar) nas faculdades de humanas, e até mesmo quanto à importância de ter algum conhecimento sobre esses assuntos. Ninguém precisa estar por dentro dos últimos lançamentos em matéria de teologia da Sorbonne, mas um “para que serve isso?” ao ouvir a palavra “soterologia” certamente não dá provas de uma inteligência lá muito fina.

sexta-feira, 24 de setembro de 2010

Imprensa golpista (ou: "Democracia demais")

Tal fraseologia é necessária se alguém quer nomear as coisas sem trazer à tona as imagens mentais a elas associadas. Pense, por exemplo, em um professor inglês, do alto de seu conforto, defendendo o totalitarismo russo. Ele não pode dizer às claras: “Defendo o assassinato de seus oponentes quando se pode obter bons resultados com isso.” Por isso, é bem provável, ele diria algo assim:

“Enquanto é senso comum que o regime soviético exibe certas características que os humanitários talvez estejam inclinados a deplorar, devemos, creio eu, concordar que um certo cerceamento dos direitos políticos dos opositores é uma inevitável concomitância em períodos de transição, e que os rigores que o povo russo foi chamado a suportar são amplamente justificados na esfera das conquistas concretas."


George Orwell em "Politics and the english language" (1946).

Book Curses


Quem nunca emprestou um livro e o perdeu de vista, não leia este post. Para todos os demais, Fernanda mostra que o problema não é típico da vida contemporânea. Emprestar às calendas estes nossos tão desejados objetos de desejo, ou mesmo tê-los literalmente roubados, são coisas de sempre - tanto assim que é possível inventariar algumas soluções já bastante engenhososas desde a Idade Média.

Por Fernanda Vaz

Não sou eu a maior fornecedora de livros - as bibliotecas dos amigos costumam ser muito maiores e mais interessantes do que a talvez meia centena da qual sou dona até agora. Aos emprestadores que sofrem com amigos caloteiros, entretanto, tenho uma dica oriunda da idade média: maldições escritas.

Numa época em que um único exemplar de uma obra era fruto do trabalho árduo de um monge copista, um livro que não fosse copiado não sobreviveria, bem como um que fosse adulterado ou tivesse suas boas cópias destruídas antes que outros pudessem reproduzí-las. O roubo de um livro criaria uma lacuna talvez irremediável na biblioteca de origem. Assim, para proteger de ladrões o fruto de seu trabalho, alguns monges depois de terminar a cópia deixavam escritas maldições como esta:

Em nome do Pai, do Filho e do Espírito Santo, Amém. No milésimo, duocentésimo, vigésimo nono ano da encarnação de nosso Senhor, Pedro, de todos os monges o menos importante, deu este livro ao [Monastério Beneditino do] mais abençoado mártir, São Quintino. Se alguém roubá-lo, que saiba que no Dia do Juízo o mais santo mártir será contra ele o acusador, diante da face de Nosso Senhor Jesus Cristo.

ou:

Thys boke is one
And Godes kors ys anoder;
They take the ton,
God gefe them the toder

quinta-feira, 23 de setembro de 2010

Celebração de música

- When you get the feeling that whatever note succeeds the last is the only possible note that can rightly happen at that instant, in that context, then chances are you're listening to Beethoven.... our boy has the real goods, the stuff from heaven, the power to make you feel at the finish: something is right in the world. There is something that checks throughout that follow its own law consistently; something we can trust, that will never let us down.

- But that is almost a definition of God.

- I meant it to be.


Leonard Bernstein em "The Joy of Music". Mais de Bernstein sobre o compositor:


Neste final de semana, a Osesp apresenta o Concerto para piano nº5 op.73 de Ludwig van Beethoven, na Sala São Paulo.

Das canções de Bilitis


Por Pedro Gonzaga

Inicio uma série de pequenas traduções, a partir do espanhol, da sáfica recriação de Pierre Louÿs, "As canções de Bilitis".

A gruta das ninfas

Teus pés são mais delicados do que os da argêntea Tétis. Recolhes, entre teus braços, cruzados, teus seios e os movimentas tão suavemente como a dois belos corpos de pomba.
Sob teus cabelos escondes os olhos úmidos, a boca trêmula e as vermelhas flores de tuas orelhas; mas nada, sequer o cálido alento do beijo, deterá meu olhar.
Porque na intimidade de teu corpo, ocultas, amada Mnasidika, a gruta das Ninfas de que nos fala o velho Homero, o lugar onde as náiades tecem lenços de púrpura.
O lugar de onde emanam, gota a gota, inesgotáveis fontes, e por cuja porta Norte descem os homens, enquanto sua porta Sul se abre aos Imortais.


O passado que sobrevive

Deixarei o leito como ela o deixou, desfeito e quebrantado, revoltos os lençóis, a fim de que a forma de seu corpo fique impressa junto a do meu.
Até amanhã não tomarei banho, nem usarei vestidos, nem farei penteados, porque temo apagar suas carícias.
Nem de manhã, nem à tarde comerei, e em meus lábios não porei carmim nem enfeites para que seu beijo perdure.
Deixarei os postigos fechados e não abrirei a porta porque temo que o vento arraste as lembranças que aqui estão guardadas.


O beijo

Beijarei de uma a outra ponta as grandes negras asas de tua nuca, ó doce pássaro, pomba cativa cujo coração sob minha mão palpita.
Prenderei tua boca com minha boca como um filho toma o peito de sua mãe. Estremece-te…! que o beijo penetre profundamente e complete o amor.
Passarei minha língua ligeira por teus braços, em volta de teu pescoço, e farei rodar por tuas costas inquietas a carícia rígida de minhas unhas.
Escuta sussurrar em teu ouvido todo o rumor do mar... Mnasidika, teu olhar me atormenta! Cobrirei com meus beijos tuas pálpebras ardentes como lábios.

Retirado de pedrogonzaga.wordpress.com

Especial Poa Em Cena II - A Beleza dilacerada


Talyta Carvalho arrumou uma boa maneira de passar férias - diretamente do Porto Alegre EM CENA, o festival internacional de teatro. Ali assistiu a adaptação de "O Idiota" de Fiódor Dostoievski realizada por Eimuntas Nekrosius, o mais importante diretor báltico da atualidade. A produção foi a primeira incursão do encenador no universo do maior romancista russo. Talyta fala do contexto do romance e aquilo que move seu protagonista. Na seqüência, Eduardo Wolf vai nos falar da grande montagem lituana.

Por Talyta Carvalho

Fomos assistir a uma montagem belíssima de O idiota (de Fyodor Dostoievski) feita por lituanos. Tenho um amor platônico pelo escritor russo - não raro sonho acordada em ser Anna Dostoiévskaia... Tento evitar mas é mais forte do que eu. O idiota é o meu romance preferido de Fiódor (notaram a intimidade?) em sua fase de “anos milagrosos”, como diria Joseph Frank. Os anos milagrosos foram o período pós-Sibéria em que o escritor produziu seus grandes romances como Crime e castigo, Os irmãos Karamázov, Os demônios, Memórias do subsolo, além de O Idiota, claro.

O tal "idiota" do título é um príncipe de nome Míchkin, que a julgar por suas reações e posturas diante da vida, de fato, parece um doente...um idiota. Mas seria isso mesmo?

Antes de tudo, o leitor deve ter em mente que os romances de Dostoiévski são permeados por uma forte religiosidade que não se pode, de forma alguma, desprezar. Uma das idéias mais caras ao autor é justamente uma ideia cristã: a de amor incondicional (caritas). Quase sempre esse amor aparecerá encarnado em algum personagem (por exemplo, na Sônia em Crime e castigo), e a partir dele estará a redenção em seus romances.

(Disse "quase sempre" porque há um romance sem redenção alguma que é Os demônios.)

Em O idiota, essa figura tomada de caritas é justamente o príncipe Míchkin; e como um sujeito que é arrastado por tal amor sempre parecerá “estranho” para nós, a impressão de Míchkin é de um doente: não reage quando lhe passam a perna, é o alvo mais fácil de enganação e, a julgar pelo trajeto de sua vida, aquele que deveria ser a pessoa mais completamente amargurada e rancorosa. E, no entanto, não é: parece mesmo um caso clássico de um completo imbecil...

quarta-feira, 22 de setembro de 2010

A causa material do universo. (se non è vero, è ben trovato)


Aqueles que acompanham o Ocidentalismo.org sabem que não evitamos perguntas difíceis, ou mesmo improváveis: exatamente aquelas necessárias e infelizmente ausentes em nossas revistas culturais ordinárias. Agora, excitados pelo entusiasmo da mídia sobre o mais recente livro de Stephen Hawking, retomamos internamente os debates sobre "Causa Primeira", origem do Universo, existência de Deus. Leibniz dizia que "todo estado presente de uma substância simples é uma continuação natural do seu estado passado"; Leonardo Valverde nos sugere uma leitura original sobre a discussão - e parte para isso da tradição vedānta.

Por Leonardo Valverde

Semanas atrás, um dos físicos mais conhecidos e respeitados hoje, Stephen Hawking, voltou a considerar a idéia de um universo não criado por Deus. E com esta declaração, o físico entrou num dos pontos cruciais da tradição vedānta - já estudado há milênios.

Para o físico e cosmólogo, os universos não precisariam de intervenção divina para serem criados, e mais, surgiriam do nada (ou do Nada?). O que chamam de Teoria-M.

A notícia - por conta do lançamento de seu novo livro "The Grand Design" - deixou-me com uma curiosidade enorme para rever o que a obra Vedānta Sūtra expõe a respeito.

E lá fui eu conferir...

Os aforismos abaixo estão no tópico 7, da sessão 4, do capítulo 1, este tópico é chamado de prakṛtyadhikaraṇam, ou o substrato da matéria.

प्रकृतिश्च प्रतिज्ञदृष्टान्तानुपरोधात्
prakṛtiśca pratijñadṛṣṭāntānuparodhāt (1.4.23)
Da não contradição de exemplo e proposição, (o Absoluto é) também (a causa) material.


अभिध्योपदेशाच्च
abhidhyopadeśācca (1.4.24)
Da referência ao desejo.

साक्षाच्चोभयाम्नानात्
sākṣāccobhayāmnānāt (1.4.25)
É (causa) direta, por conta da menção de ambos (criação e dissolução).

आत्मकृतेः परिणामात्
ātmakṛteḥ pariṇāmāt (1.4.26)
Autocriado por causa da transformação.

योनिश्च हि गीयते
yoniśca hi gīyate (1.4.27)
E é chamado, certamente, a origem.

Detalhe: os sūtra são como “mensagens de telegrama”, temos de compor o sentido.

O bistrô daqui


Existe uma mudança radical no papel cultural da comida nos últimos tempos. Poderíamos fazer análises políticas, econômicas e até morais das relações da alimentação na vida do Homem moderno - pois sabemos que sentar à mesa não é apenas abastecer de combustível o corpo, é antes, uma cerimônia social e um ato de gratidão e prazer. Para nos lembrar destes pequenos presentes da vida, nossa nova editora, Maria Celina Gordilho, compartilha a partir desta semana suas saborosas impressões gastronômicas.

Por Maria Celina Gordilho

Culinária afetiva. Em tempos de alta gastronomia, culinária ortomolecular, fusion food e "javali selvagem ao molho de chocolate de algum lugar obscuro", sentar em uma mesa a dois, escolher um vinho e experimentar um prato que lhe evoca lembranças afetivas – semelhante àquela cena de Ratatouille na qual o crítico, ao colocar o garfo na boca, rapidamente se recorda da infância e da comida de maman – é a melhor coisa que se pode fazer em semanas.


Foi isso o que me proporcionou o simpático e lotado "Ici Bistrot", um dos restaurantes da dupla Benny Novak e Renato Ades (os outros são uma hamburgueria gourmet e um italiano; ainda bem que eles separam as coisas). Em um sábado à noite encalorado, fui, sem reservar (desaconselhável, a não ser que você esteja sozinho, ou em casal; faça a reserva na hora do almoço, se quiser ir jantar), a esse bistrô recomendado por várias revistas que classificam restaurantes em São Paulo. Recomendado, também, por uma grande amiga, que repetia sem cessar a ladainha “mas foi super bem-recomendado pela revista tal” enquanto eu não conseguia reservas.

segunda-feira, 20 de setembro de 2010

Oxímoros e uma frase

Por Leandro Oliveira

É possível criar paradoxos musicais. Obtemos esse efeito, por exemplo,  quando um texto e seu caráter emocional mais imediato contrastam com as características da peça. Quer um exemplo? Ouça lá:


O texto do Lou Reed diz:

"Um dia simplesmente perfeito/ (...) E quando anoitece voltamos para casa (...)/ Tanta diversão(...)".

A descrição de uma rotina aparentemente banal, por si só, não seria capaz de contrastar com o ideal de "dia perfeito" tanto quanto Reed consegue com o apoio da música: é só ali que o dia perfeito de fato se torna bem deprimente e amargurado - ali, com as harmonias, o andamento, instrumentação e o contorno melódico pouco dados à alegria de um dia perfeito.

(Certamente não à toa a música serviu de trilha para Trainspotting - Sem Limites de Danny Boyle.)

Chico Buarque faz isso aqui e ali. Mahler faz isso à sua maneira no final da Sinfonia nº4 quando o texto da soprano descreve uma grande alegria e a música se desintegra (na escuridão?) paulatinamente...

***

For those who have a religious experience all nature is capable of revealing itself as cosmic sacrality. Mircea Eliade.

Diário de Bordo 2 - Amsterdã


A cidade dos canais foi a penultima parada de Érico Nogueira. Mais uma vez, generosamente para nós do Ocidentalismo.org, Érico deixa mais do que impressões de ponto turísticos, uma singela descrição daquela "paisagem humana" muito particular.

por Érico Nogueira

De trem, a viagem de Berlim a Amsterdã dura 6 horinhas... Tranqüilo; eu ia lendo As confissões de Agostinho de Hipona, então nem vi o tempo passar; desembarcamos em Amsterdam Centraal, e, como sempre, sem mapa nem nada - só com as indicações do google maps anotadas num pedaço de papel -, saímos desbravando a cidade, rumo ao hotel Adolesce.

Saí da estação, e fiquei de queixo caído; era a cidade mais linda que eu já vira, sem dúvida, e o povo, bem, o povo era uma espécie de alemão alegre e afetuoso (que, pois, deixou de ser alemão, ah ah), a cuja sociedade os imigrantes das Antilhas, do Suriname, da África do Sul e da Indonésia, principalmente - ex-colônias holandesas -, estão muito bem integrados; o holandês se lixa pra cor da sua pele, e pro lugar donde você vem: não há mau-cheiro de xenofobia no ar. Cidade moderníssima, portanto, aberta, multicultural e multirracial; e linda, linda linda linda. Pensei logo em Gilberto Freyre, e no conceito de democracia racial: lá sim, em Amsterdã, a coisa funciona...

Depois de nos perder um pouquinho - sempre acontece também -, chegamos, enfim, ao hotel, uma antiga casa à beira de um canal, totalmente reformada e modernizada, mas com um não sei quê de atávico, de tradicional. O proprietário, um senhor dos seus 50, 55 anos, estava ouvindo Simon & Garfunkel quando entramos, e foi muito simpático, como, aliás, todos os holandeses com que tratei. Perguntei-lhe por uma livraria, pelo poeta flamengo Karel van de Woestijne (1878-1929), citado pelo nosso Carpeaux e recomendado por Márcio José Silveira Lima. Spreek je Nederlands?, ele perguntou. Not yet, respondi, e soltei uma risada. Ele riu; e nós, agora com um mapa na mão, saímos turistar.

domingo, 19 de setembro de 2010

A infância que não podemos ter



Por Leandro Oliveira

Neymar, para quem não sabe, é o novo prodígio do futebol brasileiro, um jovem que com 18 anos encanta a todos pela sua agilidade, visão de jogo, malemolência, etc etc: e no etc, tudo aquilo que gostamos de ver no nosso futebol e que a cada dois anos permite despontar um ou mais fenômenos com tais aptidões.

O caso é que Neymar parece estar - com pouco mais de um ano de sucesso - com muito dinheiro e fama, dinheiro e fama que, obviamente, não acompanham sua maturidade emocional, intelectual e espiritual. E isso, pelo que tudo aponta, nos fará ver, de modo trágico pois costumeiro, a formação diante de nossos olhos de mais um marginal dos gramados, mais um prodígio perdido pela vacuidade do dinheiro fácil e poder desproporcional. Ou, como a história não terminou, qual um bildungsroman, a transformação do herói.

Torço sinceramente por Neymar e a superação desta tentação terrível. Torço não por ser santista, amar o futebol ou por tê-lo como um sujeito extraordinário. Torço por saber da beleza que tem a vida humana quando que não se deixa sucumbir qual um animal aos afetos e desejos imediatos, mas, fazendo-se moldar por eles, ultrapassá-los, educá-los: e faz despontar do animal, um Homem. Sua vitória é nossa vitória, pois tudo pelo que passa Neymar não deixa de ser um drama atávico, e seu dilema é aquele de todos nós em nossos sucessos diários; como diz o o velho adágio, "dê-lhe ouro e poder e então veremos do que verdadeiramente será feito".

É neste sentido que gostaria de contextualizar os comentários da psicóloga Rosely Sayão, publicados no jornal de esportes da Folha de São Paulo desta sexta-feira. Com o título "Eis o preço: quem não tem infância não amadurece", a psicóloga escreve um artigo onde, partindo de uma hipótese que ninguém ousaria dizer pouco original, identifica Neymar como "uma criança que precisa ser educada".

A originalidade da tese de Rosely evidentemente não está no diagnóstico de falta de educação do jovem astro. Isso qualquer criança de oito anos sabe. A originalidade da doutora Rosely está em caracterizá-lo - um marmanjo de 18 anos - como uma criança.

sexta-feira, 17 de setembro de 2010

גמר חתימה טובה - Gmar Chatimá Tová


Kol Nidrei, versão de Max Bruch (1838 - 1920).
Jacqueline Dupré (cello) e Daniel Barenboim (Regente),
Filarmônica de Israel, 1969.

Prêmio Macunaíma - Vencedor de Agosto/Setembro


Oliver Stone é o vencedor do "Prêmio Macunaíma - o Herói Sem Caráter" da edição Agosto/Setembro do site Ocidentalismo.org.

Das agências internacionais:

O cineasta norte-americano Oliver Stone acaba de ser premiado pelo site Ocidentalismo.org na primeira edição do "Prêmio Macunaíma - O Herói Sem Caráter". Stone foi indicado por uma série extraordinária de feitos recentes que tiveram início com o blockbuster "Ao Sul da Fronteira", seguiu com sua entrada sem visto no Brasil e culminou com seu retorno retumbante aos EUA. Ali, cheio de pompa pelo sucesso de sua acolhida na turnê bolivariana, considerou por bem dar voz aos oprimidos e acusar o domínio da mídia sionista como responsável pela descontextualização histórica de Adolph Hitler ("oprimidos" no caso são os nazistas... para saber mais, clique aqui e aqui).

Stone realizou uma campanha desigual, e alguns observadores internacionais comentam do uso da máquina pública, o lobby junto a institutos de pesquisa e redes sociais, assim como cooptação da mídia (sionista?) e abuso do poder econômico. Em sua defesa, o coordenador de campanha, o coronel Hugo Chávez, comenta que a agenda de Stone "corresponde integralmente aos critérios estabelecidos pelo prêmio". Para o cineasta, "o Prêmio é o reconhecimento de anos de trabalho pela criação de um verdadeiro mundo democrático. O Herói-Sem-Caráter é a metonímia de nossos valores pós-modernos e fico muito feliz por representar nossa cultura nesta primeira edição".

Os editores do site, responsáveis pela realização da premiação, asseveraram que "o Prêmio é fruto do voto popular e, mais uma vez, corroboramos o adágio que prega ser a voz do povo, a voz de Deus. Stone era o melhor candidato e sua vitória acachapante é sinal do poder e consciência dos eleitores deste país."

Robert Crumb parabenizou o vitorioso dizendo que de fato sua obra respeitável o colocava como o melhor candidato da contenda. Até o fechamento desta edição, a assessoria de Naomi Campbell não respondeu aos telefonemas e e-mails enviados pela redação.

Com 100% dos votos apurados, Stone venceu no primeiro turno com 67% dos votos válidos. O "Prêmio Macunaíma - o Herói sem Caráter" é uma iniciativa de Ocidentalismo.org e esta foi sua primeira edição. Os organizadores do Prêmio comentam aceitar até domingo sugestões para os indicados da edição Setembro/Outubro.

O projeto pretende ser um dos mais importantes prêmios internacionais do país.

Que país, hein?!

quinta-feira, 16 de setembro de 2010

Variações do acordo ortográfico


Recomendamos o texto de Érico Nogueira, que saiu hoje no Terra Magazine.

Bernstein e Mahler


por Leandro Oliveira

Leonard Bernstein foi o primeiro a estabelecer ligações entre sua vida e carreira e aquelas de Gustav Mahler. Ambos eram judeus, maestros famosos em vida e compositores pouco reconhecidos ou respeitados a seu tempo... Evidentemente, a comparação é positiva somente para Bernstein. As obras de Mahler são verdadeiros monumentos expressivos do sentimento de um mundo particular. Mahler tem como pares Stefan Sweig ou Arthur Schnitzler entre outros e a tão falada decadência da Viena de sua época aparentemente se tornará realidade política na ocasião da Anexação em 12 de março de 1938 - o Finis Austriae que Freud anunciará em seus diários.

Enquanto a arte de Mahler realiza uma espécie de profecia velada, as composições de Bernstein são fruto do fascínio auto-referente de uma América pulsante, cheia de orgulho de seus valores e que acaba resvalando em alguns grandes centros como Nova Iorque - onde Bernstein construi boa parte de sua carreira - em um certo (e como não?) provincianismo.

Não há paradoxo nisto: parte do espírito "cosmopolita" nova-iorquino se desdobra em um senso genuíno e sincero de serem, a cidade e seus habitantes, o "umbigo do mundo". Interessantemente, as obras de Bernstein são saborosas, divertidas, por vezes grandiosas e cheias de pretensões bem intencionadas - mas muito pouca profundidade. Isso não é necessariamente um juízo de valor, mas uma característica inegável: enquanto cada compasso da obra de Mahler se veste de uma trama rica de significados, alguns deles perdidos em referências de um mundo cultural que penosamente teremos acesso, a obra de Bernstein fala daquela profusão de informações recorrentes ao universo mental de seus pares - alusões a Stravinsky, jazz, a música judaica ou o que quer que o valha, tornam-se curiosamente apenas gestos de virtuosismo estilístico, jamais profundidade espiritual. As questões da arte no primeiro são metafísicas; no segundo são emocionais.

quarta-feira, 15 de setembro de 2010

Um Passo


Por Pedro Gonzaga

Ensaiavas um passo e eu te olhava da cama
a cabeça amparada pela guarda antiga,
nossos olhos espelhados a cada volta de teu corpo.
Era verão, e as cortinas
recolhidas como velas
deixavam entrar solenemente
um sopro crivado de jasmins.
Nunca mais seremos tão jovens
e no curto instante em que giravas
anoiteceu.
Quem diz que a memória é capaz de reviver as coisas
não entende nada.
Quem não se entrega à destruição física do momento
perde o que há de mais precioso na morte.
Giravas e giravas até o fim do dia e
aquela cama não mais se repetirá
ainda que dances
infinitamente para mim.

Retirado de pedrogonzaga.wordpress.com.

A elegância em "Mad Men"


"Mad Men" vem fazendo estardalhaço entre os fãs de séries de televisão. Se alguns pensavam que "Os Sopranos" seria uma concessão exótica, eis que surge esta série charmosa, de texto saboroso e politicamente incorreto. A televisão é capaz de coisas extraordinárias e sua produção pode ser matéria prima para boas reflexões, como demonstra Julio Lemos neste pequeno ensaio.

Por Julio Lemos

A série "Mad Men", já em sua quarta temporada, apesar dos altos e baixos, tem sido considerada uma das melhores séries de televisão. Devido ao seu sucesso, dispenso apresentações; você pode conferir aqui uma apresentação razoavelmente bem informada.

Não sou contrário a muitas mudanças dos últimos 40 anos. No entanto, basta assistir a uma bela caracterização dos costumes dos anos 60 (o resultado duradouro dos anos 50 na América) — e eis um retrato bastante exato de "Mad Men" — para sentirmos, eu e uns tantos, algumas saudades do tempo em que não vivíamos.

O único aspecto que gostaria de ressaltar é o topos (lugar comum) da elegância. A dignidade, a graça e a simplicidade são marcas de certas atitudes e realizações humanas. Basta pensar nas demonstrações matemáticas: o acompanha-las produz grande prazer, algo de difícil definição; além disso, possuem utilidade. São inteligentes, breves e... belas. Perguntei certa vez a um amigo matemático o que lhe atraía na sua profissão. Ele disse: “As demonstrações elegantes — a beleza de uma prova”. E reparem no paradoxo: uma demonstração que esconde a sua arte. Quod erat demonstrandum...

terça-feira, 14 de setembro de 2010

Anti-Capitalismo, escolha o seu


Há muitas formas de ser anti-capitalista - assim como há muitas formas de ser anti-americano, anti-sionista ou anti-qualquer coisa... No debate público ordinário, curiosamente, o que resta é um discurso fronteiriço entre a picaretagem e a verbalização hormonal: pouco se diz a partir dos elementos lógicos e pragmáticos que justifiquem de forma mais ou menos coerente as tantas variantes éticas e intelectuais de nossas escolhas sobre as relações econômicas. Joel, mais uma vez, nos ajuda a pensar.

Por Joel Pinheiro da Fonseca

Muita gente é contra o livre mercado porque, sem a intervenção do governo, a economia não prospera. Máquinas substituem trabalhadores. O capital, ao invés de ser usado na produção, vai para a especulação. O desemprego aumenta, uma minoria de ricos enriquece enquanto uma massa crescente de desempregados vive da mão para a boca ou morre de fome. Com menos consumo, a produção cai. Todos ficam tímidos e com medo de investir devido ao risco, e então entesouram seu dinheiro em casa, tirando-o de circulação; o mercado como um todo vai à falência.

Já outro argumento, vindo frequentemente das mesmas bocas, sustenta que o livre mercado é mau porque cria nas pessoas, por meio da propaganda, um milhão de falsas necessidades, fazendo da massa (exceção feita, claro, aos “conscientizados”...) zumbis do consumo, atrás de celulares, carros e tênis comprados em 20x “sem juros”. Escravos do consumo, perdem o gosto pela vida simples e pelos bens mais elevados do espírito.

Meninas preocupadas com o peso têm que escolher entre o doce e a fruta, jovens angustiados têm que escolher entre exatas e humanas; agora chegou a vez dos intervencionistas escolherem qual dos dois ataques ao capitalismo deve permanecer; pois os dois ao mesmo tempo não dá! Ou o livre mercado destrói empregos e empobrece as massas impedindo-as de consumir o básico, ou ele as enriquece de tal maneira que as permite viver atrás do supérfluo. Teses contrárias não podem ser ambas verdadeiras.

Não resisti

Por Leandro Oliveira

Mais off-topic impossível, mas não resisti:

segunda-feira, 13 de setembro de 2010

Wesley Duke Lee


Por Leandro Oliveira

Conheci Wesley nestas andanças da vida. É possível que não soubesse quem eu era, embora os tantos amigos em comum nos permitisse encontros relativamente freqüentes em dado momento do início do século XXI... Preciso dizer que naquele momento em que pude ter contato mais próximo com ele, infelizmente, também não sabia quem era - na verdade, era jovem demais para entender a dimensão de sua obra, importância e influência.

Mas hoje sei, e lamento verdadeiramente que o conhecimento só tenha vindo com a idade. Teria desfrutado melhor de seu papo cheio de humor e inteligência, sua personalidade e opiniões despudoradas. Sua morte nesta madrugada é mais que o desaparecimento de uma referência fundamental para história recente da arte brasileira, uma perda humana inestimável.

Que Wesley fique com Deus.

Um trecho do depoimento de sua história ao Museu da Pessoa pode ser visitado aqui.

Não deixe de votar!

Eleições para o Prêmio Macunaíma - o herói sem caráter do mês: hoje é o último dia para votação.

Para saber mais sobre os indicados, clique aqui.

Deixa de preguiça!

"Étonne-moi!" ou, quero o Diaghilev de volta


Por Leandro Oliveira

Outro dia conversando com uma amiga dileta, ouvi uma confissão: ela não entendia, havia desistido dos espetáculos de dança. Fora a um recentemente, de linguagem contemporânea e, definitivamente, curtira os meninos sarados, ficara com inveja das meninas bonitas mas... that's it. Não entendera o propósito, achara tudo hermético, se sentira uma idiota.

Comentei solidário - embora eu preferisse as meninas, é claro. Colaborei por muitos anos com espetáculos de dança contemporânea como compositor convidado e, embora tenha tido momentos mágicos na "Tanzhaus  Cia. de Dança" no Rio de Janeiro, posteriormente, me vi muitas vezes perplexo com a mentalidade dos responsáveis pela criação da coisa toda que ia ao palco. Eis que deparo-me com um artigo de Laura Jacobs no "The New Criterion" que reverbera essa nossa impressão. O primeiro parágrafo abaixo, o link para o artigo completo (em inglês), logo depois.

Como chegamos aqui? Como chegamos ao ponto onde exatamente cada novo "clássico" é sem sentido? Hoje, estréias de espetáculos de grandes companhias são apresentados com figurinos os mais "antenados" sobre os corpos mais sarados... Eles se jactam invariavelmente de uma série de altas referências, se valem do zeitgeist como se fosse sua própria natureza. Algumas dessas premieres apertam os botões corretos e geram estusiasmo suficiente para radiar sucesso, enquanto outros apertam os botões errados e desaparecem depois de uma temporada ou duas. Não importa qual botão, há muito pouca diferença entre o bom e o ruim. A média do estado-da-arte de cada estréia é tão derivada de Forsythe, Tharp ou Martins que ela parece de segunda mão (mesmo quando os balés são de Forsythe, Tharp, ou Martins, eles parecem de segunda mão). Ou traz de volta antigos clichés. (...)

Para o artigo completo, que parte de tais perplexidades para - através da relação de Balanchine com o empresário Sergei Diaghilev - apontar outros rumos para a cena contemporânea, clique aqui.

Diário de Bordo 1 - Berlim


Berlim, Amsterdã e Bruxelas: estas serão as cidades que bisbilhotaremos no diário de viagens de Érico Nogueira, poeta e tradutor que a partir de hoje é mais um dos seletos aristocratas que compõem este projeto Ocidentalismo.org. A primeira parada de Érico foi também para alimentar a si - e a nós - da mais bela poesia contemporânea.

Por Érico Nogueira

Terça-feira passada, 24/08, partimos, Adriana e eu, para Berlim, onde fomos muitíssimo bem recebidos por Ricardo Domeneck, que inclusive nos cedeu o seu apartamento, dizendo "Eu me arranjo em outro lugar: vocês ficam aqui"; isso é que é hospitalidade.

Afora a cerveja e a comida alemãs - de que sou suspeito para falar -, foi a cidade mesma de Berlim que nos chamou a atenção. Uma cidade ainda hoje de cicatrizes abertas, quase no segundo decênio do séc. XXI; uma cosmópole onde a cena poética não sofre de provincianismo agudo; um lugar estimulante para a vida, para o pensamento, - e para a poesia, claro.

Com a biblioteca de Ricardo à minha disposição, pude ler o incrível poeta português Al Berto (1948-1997), e me deliciar com a sua linguagem a um só tempo bruta e doce - uma lição a quanto inconformismo ingênuo, a quanto confortável tradicionalismo possa haver em poesia; a tradução de Mandelstam assinada por ninguém menos que Paul Celan - simplesmente um clássico; e a poesia completa (em inglês) do poeta polaco Zbigniew Herbert (1924-1998), cujo poema "Why the classics" condensa em poucas linhas tudo o que eu queria (e ainda quero) dizer com a minha poesia:

Why the Classics

1

in the fourth book of the Peloponnesian War
Thucydides tells among other things
the story of his unsuccessful expedition

among long speeches of chiefs
battles sieges plague
dense net of intrigues of diplomatic endeavours
the episode is like a pin
in a forest

the Greek colony Amphipolis
fell into the hands of Brasidas
because Thucydides was late with relief

for this he paid his native city
with lifelong exile

exiles of all times
know what price that is

2

generals of the most recent wars
if a similar affair happens to them
whine on their knees before posterity
praise their heroism and innocence

they accuse their subordinates
envious collegues
unfavourable winds

Thucydides says only
that he had seven ships
it was winter
and he sailed quickly

3

if art for its subject
will have a broken jar
a small broken soul
with a great self-pity

what will remain after us
will it be lovers' weeping
in a small dirty hotel
when wall-paper dawns

Traduzido por Peter Dale Scott e Czeslaw Milosz.


Saímos de Berlim domingo, 29/08, às 8h30, com destino a Amsterdã; Adriana levando muitas fotos e impressões e um pretzel na mochila, e eu com um exemplar de "Aroma", o último livro do poeta alemão Durs Grünbein (n. 1962), um dos maiores nomes da nova poesia alemã - se não mesmo o maior. Grünbein retoma e desenvolve o hexâmetro alemão, e, leitor de Horácio, Marcial, Ovídio - mas sobretudo de Juvenal -, opera nessa tensão entre o passado e o presente, ontem e hoje, atualizando os procedimentos formais da sátira latina. Eu amei descobrir esse poeta: sensação de não estar sozinho... Vocês aguardem: em breve vou traduzir aqui o fenomenal "Torso des Polyphem", poema alusivo, claro está, não só à tradição greco-romana, mas também a Rilke.

E chegamos a Amsterdã...

Retirado de Ars Poetica.

domingo, 12 de setembro de 2010

It is easy to miss something you are not looking for

Por Leandro Oliveira

A campanha mais inteligente que conheci, para o trânsito de ciclistas em Londres.

Teste dos passes


sábado, 11 de setembro de 2010

11/9 - In Memorian



I visited the site in March, about six months after the cleanup began. By then the area resembled just a huge construction project. It was only when one looked closely and noticed the many little shrines and spontaneous memorials and handwritten messages still in evidence did the lingering mystery and sombreness of the area begin to make itself felt. I had the good fortune to be taken around the area by several policemen who themselves had been right in the midst of the chaos and danger when the towers fell. Even after six months the intensity in their voices while describing the events was palpable. (...)

My desire in writing this piece is to achieve in musical terms the same sort of feeling one gets upon entering one of those old, majestic cathedrals in France or Italy. When you walk into the Chartres Cathedral, for example, you experience an immediate sense of something otherworldly. You feel you are in the presence of many souls, generations upon generations of them, and you sense their collected energy as if they were all congregated or clustered in that one spot. And even though you might be with a group of people, or the cathedreal itself filled with other churchgoers or tourists, you feel very much alone with your thoughts and you find them focussed in a most extraordinary and spiritual way.

I want to avoid words like "requiem" or "memorial" when describing this piece because they too easily suggest conventions that this piece doesn’t share. If pressed, I’d probably call the piece a "memory space". It’s a place where you can go and be alone with your thoughts and emotions. The link to a particular historical event–in this case to 9/11–is there if you want to contemplate it. But I hope that the piece will summon human experience that goes beyond this particular event. "Transmigration" means "the movement from one place to another" or "the transition from one state of being to another." It could apply to populations of people, to migrations of species, to changes of chemical compositon, or to the passage of cells through a membrane. But in this case I mean it to imply the movement of the soul from one state to another. And I don’t just mean the transition from living to dead, but also the change that takes place within the souls of those that stay behind, of those who suffer pain and loss and then themselves come away from that experience transformed.

John Adams (1947).

O compositor recebeu o Pulitzer Prize em 2003 por "On The Transmigration of Souls". Ela é resultado de encomenda realizada pela Filarmônica de Nova Iorque em memória às vitimas do 11 de Setembro.

quinta-feira, 9 de setembro de 2010

שנה טובה לכוווולם - Feliz Ano Novo a todos

No lo merezco. He hecho lo mejor que pude para ser un judío. Pude haber fracasado. Si pertenecemos a la civilización occidental, entonces todos nosotros, a pesar de las muchas aventuras de la sangre, somos griegos y judíos. Muchas veces me pienso judío pero me pregunto si tengo el derecho de hacerlo.

Jorge Luís Borges.

“Thais” ou Era uma vez...

De Shelley Duval a Santo Agostinho, Talyta Carvalho arrisca o improvável: explicar como os dilema morais perdem seu lugar de destaque na formação de nossa juventude quando contaminamos por ideologia, correção política ou o que quer que seja os "Contos de Fadas". Eles deveriam se preservar como uma reserva do bom e do justo... mesmo nos programas de TV.

Por Talyta Carvalho

Pois é, meu mestrado acabou. E digo isso sem a menor tristeza, como todos devem supor. Recebi, além do óbvio alívio e da paz de espírito tão esperada, muitas congratulações dos amigos e familiares. Mas algo especial ocorreu: não sei se já comentei antes, mas tenho uma irmã gêmea. Sim, ela é idêntica fisicamente a mim e se chama Thais. A Thais é uma mocinha doce e atenciosa, orgulho da família, estudante de Medicina em uma faculdade altamente conceituada de São Paulo. Thais é o sonho de qualquer pai e de qualquer mãe.

Mais ainda, Thais é o sonho de qualquer irmã.

Sou uma garota que tem lá suas obsessões banais na vida, como quase todo mundo. Uma de minhas obsessões é com uma lembrança vaga da infância que sempre tive o anseio de recuperar. Quando pequena, eu era uma dessas crianças geeks que passavam seus dias a ler livros de gente grande e a resolver problemas de matemática. Mas havia um ou outro dia da semana em que eu era uma criança como todas as outras, e esses dias eram os dias em que eu assistia um programa de TV acompanhada de meus pais e da Thais. Havia uma história que era minha preferida: “A rainha da neve”. O programa saiu do ar há muitos anos atrás, mas mesmo assim eu havia crescido obcecada por esta história.


Na última semana, Thais me entrega um presente por eu ter concluído a pesquisa. Quando abri o pacote não pude conter minha empolgação e alegria. Graças a minha irmã eu estava prestes a entender, finalmente, o motivo de minha obsessão. Obviamente, assisti ao DVD na mesma hora. O que eu achei? Bem, na realidade a história e a produção eram infinitamente melhores na minha imaginação. Contudo, ao final, Shelley Duvall (idealizadora e da série) narra a moral da história dizendo a importância da amizade. Aí então eu entendi minha obsessão.

Era uma obsessão com a moral da história agora finalmente relembrada. E digo “moral” em todos os sentidos. Percebi que esse era o motivo primordial do meu fascínio com os Contos de Fadas, afinal, eles são a maneira pela qual costumava-se ensinar sobre virtude e vício para as crianças.

quarta-feira, 8 de setembro de 2010

Aprendendo com Robert Schumann

Por Leandro Oliveira

No prólogo de seu "Álbum para Juventude", Robert Schumann (1810-1856) dá algumas dicas para o melhor aproveitamento do aprendizado musical; mas acho que podemos nos valer de seus conselhos para muitas outras coisas. Coloco algumas máximas preferidas - em sua tradução para o inglês pois assim não nos perdemos nas declinações do original...

The laws of morals are those of art.


Do not judge a composition from the first time of hearing; that which pleases you at the first moment, is not always the best. Masters need to be studied. Many things will not become clear to you till you have reached a more advanced age.


You will be most readily cured of vanity or presumption by studying the history of music, and by hearing the master pieces which have been produced at different periods.


Never help to circulate bad compositions; on the contrary, help to suppress them with earnestness.


As to choice in the study of your pieces, ask the advice of more experienced persons than yourself; by so doing, you will save much time.

All that is merely modish will soon go out of fashion, and if you practise it in age, you will appear a fop whom nobody esteems.

Let your intimate friends be chosen from such as are better informed than yourself.

Relieve the severity of your musical studies by reading poetry. Take many a walk in the fields and woods!

From vocalists you may learn much, but do not believe all that they say.

Remember, there are more people in the world than yourself. Be modest! You have not yet invented nor thought anything which others have not thought or invented before. And should you really have done so, consider it a gift of heaven which you are to share with others.

There is no end of learning.

Para estas e outras dicas preciosas, clique aqui.

Não falamos de política

Este blog não fala de política. E por isso não comentaremos a coluna de Dora Kramer no Estadão de hoje. Por mais impressionante que seja seu ponto de vista - que realiza, antes de política, uma belíssima análise da cultura que permite algumas licenças esdrúxulas de nossa realidade - temos por princípio não metermo-nos em dilemas eleitorais.

É isso. Não falamos de política e, embora sua coluna de hoje a permitisse ser uma colaboradora do site, decidimos vir a público tornar claro que não temos qualquer perspectiva de convidar Dora Kramer para ser uma de nossas convidadas.

terça-feira, 7 de setembro de 2010

Quebra-cabeças de Martin Gardner

Por Leandro Oliveira

1. Você deve fazer um corte ou desenhar uma linha (claro, não precisa ser reta) que divida a figura em duas partes idênticas.



2. Arrume quatro fósforos sobre a mesa como mostrado na figura. Eles representam um cálice de Martini. A cabeça de um quinto fósforo deve ficar no centro, indicando a azeitona do cocktail. O desafio é mover apenas dois fósforos para que o cálice fique reestruturado mas a "azeitona" - que deve ficar onde está - apareça fora do cálice. Ao final, o cálice poderá estar de cabeça-para-baixo ou em qualquer outra posição, mas precisa ter exatamente o mesmo formato de antes.


Em homenagem a Antonio Peticov.

segunda-feira, 6 de setembro de 2010

Ainda sobre o talento


O talento é uma aptidão, uma vontade, um cultivo? Em busca da resposta a este dilema é que Paola Secchin Braga se lança em um de seus deliciosos comentários sobre dança. A disponibilidade individual para lidar com as tantas situações da realidade talvez seja uma das mais decisivas distinções da existência: e o talentoso aquele que afinal mostra a todos algo notável mesmo em sua condição humana - inevitavelmente humana e, portanto, cheia de falhas.

Por Paola Secchin Braga

No conjunto de fábulas que permeiam o mundo da dança, a mitologia que ocupa o inconsciente de todos é daquela linda imagem da bailarina etérea, leve e que executa seus passos sem força e “naturalmente”... Por mais que tenhamos andado quilômetros em cena, por mais que os movimentos do quotidiano tenham entrado no repertório moderno, por mais que tenhamos descido ao chão e nos arrastado sobre ele, por mais mudanças que tenhamos passado, atrelada à palavra bailarina vem normalmente a sílfide leve e incansável.

E com esta fantasia, vem atrelada a outra, a do talento enquanto dádiva dos céus, presente divino, que se recebe sem nenhum esforço – e como se não bastasse, tem-se ainda a certeza íntima de que, quando se tem talento, se é notado e escolhido no meio da multidão, garantia de sucesso total!

Pegando carona na pergunta da Talyta, resolvi mergulhar no perigoso assunto “talento”. Talento se tornou com o tempo uma “palavra-gaveta”, onde colocamos todas as definições imagináveis e, no fim das contas, acaba perdendo todo e qualquer sentido. Pedindo ajuda ao dicionário, descobrimos que talento é:

s.m. Nome de um peso e de uma moeda, na antiguidade grega e romana; (fig.) capacidade; inteligência; aptidão natural; engenho; (lus. e bras.) força física; pulso; alento; vigor; pessoa de talento. (Do lat. talentu.)

Várias perguntas imediatas – e talvez alguns esclarecimentos. Nome de um peso e de uma moeda – imediatamente pensamos em valor: será que o talentoso vale quanto pesa? Por outro lado, a parte capacidade, inteligência, aptidão natural nos faz vacilar. O que é natural? Inteligência natural, aptidão natural? Então, a pessoa talentosa seria aquela que faria dança naturalmente? Isso existe?

Ciência, emoção e realidade

A emoção mais pura que podemos sentir é a mística. É nela que esta a origem de toda arte e de toda ciência verdadeira. É saber que o que é incompreensível existe e se manifesta na mais elevada sabedoria e na mais radiante beleza, cujas formas mais brutas podem ser compreendidas por nossas poucas faculdades. Esse conhecimento, esse sentimento, é a essência do verdadeiro sentimento religioso. Nesse aspecto, considero que estou entre os homens profundamente religiosos.

Albert Einstein apud Rabino David Aaron ("Dez Lições de Vida da Cabalá").

domingo, 5 de setembro de 2010

More than money


So that was Mrs. Lundegaard on the floor in there. And I guess that was your accomplice in the wood chipper. And those three people in Brainerd. And for what? For a little bit of money. There's more to life than a little money, you know. Don't you know that? And here you are, and it's a beautiful day. Well, I just don't understand it.

sábado, 4 de setembro de 2010

O broto e outros minicontos

Por Pedro Gonzaga

Luta de classes

Furibundo ao saber que a filha caçula, matriculada no mais seleto liceu da cidade, fora flagrada cabulando aula para manter intercurso sexual com um motoboy, o ex-sindicalista, explodiu:
- Como pôde fazer isso com o seu pai?
- Relaxa, velho…
- Não posso acreditar. Por que não namora um dos teus colegas, gente como a gente.
- Toma.
- O que é isso?
- O jornal de ontem.
O homem se reconheceu na foto. Acima, em garrafais, a manchete reproduzia o que ele dissera e que só era verdade nas entranhas da filha: “A luta de classes é coisa do passado”.

O broto

Outubro chegou, e só então os brotos pontilharam de verde os galhos da árvore no quintal. A menina acompanhava do quarto o atraso da primavera. Se até a natureza podia demorar um mês a mais para vir…

Um hipocondríaco

A cada ambulância branca, a certeza renovada: um dia será para mim.

Boletim do tempo

- Depois da chuva vem sempre o sol – disse a menina, faceira e inestática.
Para ela tudo era novo, as ruas de Londres, os vidros baços do pardieiro, lovely and charming para turistas.
- Vamos a Camden, vamos a Camden – gritou.
- Chove – respondi, cobrindo o peito murcho, as mãos ainda trêmulas do esforço.
- Mas olha ali, o céu já está clareando. Vamos, vamos logo!
Fé luminosa, crença singela de que o melhor virá com a simples seqüência dos dias…
Infinito aparente que é a juventude.

Liberta quae sera tamen

Aníbal estava cansado. Nunca suportara a poeira africana nos olhos. Por isso, conquistou a Espanha, cruzou os alpes no lombo de um elefante, tudo para chegar aos prados de Horácio, com os quais sonhara mesmo sem tê-los lido. Donde se depreende que nem Zama, nem o Arcadismo brasileiro foram males necessários.

Retirados de pedrogonzaga.wordpress.com. Para mais, o Pedro recomenda seu outro site, terradecossacos.blogspot.com.

The future is not what it used to be

Isaac Asimov foi um dos mais importantes escritores de ficção científica e divulgadores da ciência de todos os tempos. Na entrevista abaixo - de 1988 - algumas singelas previsões sobre educação e o século XXI. Impressionante pela aposta arriscada... e pelos acertos extraordinários!

Duas notas poéticas... de rodapé


T.S. Eliot em The Waste Land (1922):

Not only the title, but the plan and a good deal of the incidental symbolism of the poem were suggested by Miss Jessie L. Weston's book on the Grail legend: From Ritual to Romance (Macmillan). Indeed, so deeply am I indebted, Miss Weston's book will elucidate the difficulties of the poem much better than my notes can do; and I recommend it (apart from the great interest of the book itself) to any who think such elucidation of the poem worth the trouble. To another work of anthropology I am indebted in general, one which has influenced our generation profoundly; I mean The Golden Bough; I have used especially the two volumes Adonis, Attis, Osiris. Anyone who is acquainted with these works will immediately recognize in the poem certain references to vegetation ceremonies.

Allen Ginsberg em Howl (1955):

Holy! Holy! Holy! Holy! Holy! Holy! Holy! Holy! Holy! Holy! Holy! Holy! Holy! Holy! Holy! The world is holy! The soul is holy! The skin is holy! The nose is holy! The tongue and cock and hand and asshole holy! Everything is holy! everybody's holy! everywhere is holy! everyday is in eternity! Everyman's an angel! The bum's as holy as the seraphim! the madman is holy as you my soul are holy! The typewriter is holy the poem is holy the voice is holy the hearers are holy the ecstasy is holy! Holy Peter holy Allen holy Solomon holy Lucien holy Kerouac holy Huncke holy Burroughs holy Cassady holy the unknown buggered and suffering beggars holy the hideous human angels! Holy my mother in the insane asylum! Holy the cocks of the grandfathers of Kansas! Holy the groaning saxophone! Holy the bop apocalypse! Holy the jazzbands marijuana hipsters peace & junk & drums! Holy the solitudes of skyscrapers and pavements! Holy the cafeterias filled with the millions! Holy the mysterious rivers of tears under the streets! Holy the lone juggernaut! Holy the vast lamb of the middle class! Holy the crazy shepherds of rebellion! Who digs Los Angeles IS Los Angeles! Holy New York Holy San Francisco Holy Peoria & Seattle Holy Paris Holy Tangiers Holy Moscow Holy Istanbul! Holy time in eternity holy eternity in time holy the clocks in space holy the fourth dimension holy the fifth International holy the Angel in Moloch! Holy the sea holy the desert holy the railroad holy the locomotive holy the visions holy the hallucinations holy the miracles holy the eyeball holy the abyss! Holy forgiveness! mercy! charity! faith! Holy! Ours! bodies! suffering! magnanimity! Holy the supernatural extra brilliant intelligent kindness of the soul!

quinta-feira, 2 de setembro de 2010

Em 1966 como em 2010


Charge de Reginaldo Fortuna, publicado pelo "Correio da Manhã" (1966). Pertinente ali como aqui, por motivos diferentes, é claro.

Retirado do site do Millôr.

O Fogo Divino, os santos e os pecadores


A riqueza do simbolismo religioso é uma das permanentes fontes do conhecimento da humanidade - e neste sentido, podemos tranqüilamente falar de um certo ecumenismo, posto que as mais importantes referências simbólicas religiosas, para serem fundamentais devem antes ser universais. Mas, é claro, o problema do símbolo não reside em sua expressão, mas sua interpretação. É ali sobretudo, como objeto de cultura, que tal "ecumenismo" naufraga: a parte a clareza do símbolo, existem distinções teológicas evidentes e importantes que devem ser entendidas e interpretadas permanentemente, e preservadas ou não. No texto abaixo, Joel Pinheiro da Fonseca se debruça mais uma vez sobre um problema universal - a da puniçao e o juízo - relendo-o a partir de sua expressão última e radical: o fogo do inferno cristão.

Por Joel Pinheiro da Fonseca


Partiram de Sucot e acamparam em Etam, na periferia do deserto. O Senhor os precedia, de dia, numa coluna de nuvens, para lhes mostrar o caminho; de noite, numa coluna de fogo para iluminar, a fim de que pudessem andar de dia e de noite.” Êxodo 13, 20-21

"A coluna de nuvens que estava na frente postou-se atrás, metendo-se entre as tropas dos egípcios e as de Israel. Para uns a nuvem era tenebrosa, para outros iluminava a noite, de modo que durante a noite inteira uns não podiam ver os outros.” Êxodo 14, 19-20


Já defendi em outro lugar - e é uma tese em nada estranha à autêntica tradição cristã - que a punição do inferno está intrinsecamente ligada ao estado da alma ao qual ele corresponde: amar uma criatura mais do que ao Criador. Preferir um bem finito e relativo ao Bem absoluto, que é a única fonte possível da felicidade humana, é condenar-se à miséria eterna. A dor sensível é decorrência do mau moral.

Hoje quero explorar um ponto ligado a essa idéia: a dor dos condenados e o deleite dos santos provêm do mesmo objeto. Toda a diferença entre a alma em estado de beatitude e a alma condenada reside na disposição delas perante Deus. Quero ilustrar isso com a imagem do fogo, muito cara à tradição católica, que é composta basicamente da Bíblia, dos ensinamentos magisteriais e dos escritos de santos e místicos.

A primeira imagem que nos vêm à cabeça quando falamos de fogo num contexto cristão é o Inferno. A dor dos condenados sendo consumidos por seus próprios crimes, remorsos e desejos maus é comumente representada pelo fogo, tanto no Antigo quanto no Novo Testamento. O próprio Cristo, por exemplo, explica a parábola do joio e do trigo: “O joio são os filhos do maligno. [...] Como se junta o joio para ser queimado ao fogo, assim acontecerá no fim do mundo. O Filho do homem enviará os anjos e eles recolherão do Reino todos os escândalos e todos os promotores da iniquidade, e os jogarão na fornalha de fogo, onde haverá choro e ranger de dentes” (Mateus 13, 38.40-42). O remorso e o desespero de se saberem claramente maus consome a alma dos condenados; os desejos desordenados de sua vida agora queimam com intensidade máxima; com a morte, a alma dirige-se, determinada e sem titubeios, àquilo que amava em vida. O fogo é uma imagem particularmente forte: é aquilo que a tudo consome e destrói, implacável e doloroso.
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