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terça-feira, 14 de dezembro de 2010

Amnésia Cultural - Sérgio Bernardes


Por Leandro Oliveira

Foi com Sérgio Bernardes que aprendi uma das melhores tiradas que conheço - que uso até hoje quando estou com alguma pequena doença qualquer: "ah, se não mandarem abrir estou excelente!". Era como Sérgio lidava com sua saúde já debilitada ao final da vida, no mesmo espírito alegre e simples com que ao chegar cumprimentava - fazia questão - todos funcionários e convidados da casa.

Para muito além do maior arquiteto brasileiro de sua geração - qualquer comparação possível somente talvez com as maiores inspiraçoes de Zanini -, Sergio Wladimir Bernardes (1919 - 2002) era um gentleman de rara inteligência e sensibilidade. Lembro a primeira vez que nos vimos: conquanto ele tivesse quase oitenta e eu cerca de vinte, as perguntas vinham dele. Pareceu uma curiosidade sincera, que hoje sei fruto menos de qualquer carisma de minha parte que de sua generosidade ao perceber minha timidez. Fazia questão de deixar-me à vontade.

Desde aquele primeiro encontro pude ficar algum tempo próximo de sua família, principalmente sua esposa Kykah, e seus netos Mana e Pedro, em aniversários e pequenas viagens ao litoral. Nunca fiquei sabendo de fato quem era Sérgio, pois conviver com um gênio nos faz crer que ele é alguém como nós. Sérgio não era.

Sua inteligência o fazia não só uma grande companhia mas um intelectual pulsante, permanentemente inspirado em coisas originais e vivas, jamais contente com a rotina de prancheta dos arquitetos. (Na foto acima, ele compete com sua Ferrari - comprada com o prêmio ganho na Bienal de Veneza de 1964.) Pensava o tempo todo, e pensava coisas formidáveis. De sua mente inquieta saíram projetos como a casa abaixo, cujo traço de ângulos retos consegue, incrivelmente, ser pouco intrusivo com a beleza da paisagem.


Sobre a casa, Lauro Cavalcanti comenta que

Petrópolis era o local de veraneio mais seleto das elites cariocas e foi um dos principais centros das construções de Sérgio Bernardes, na primeira fase da sua carreira – verdadeiras jóias arquitetônicas em termos de interação com a paisagem, detalhes construtivos e inventivas soluções formais e de espaço. A obra-prima desse extraordinário período foi a casa em Samambaia criada para Lota Macedo Soares e Elizabeth Bishop.

Lota não era uma cliente qualquer. Livre, culta, rica, intelectual não-esquerdista com sofisticação européia e simpatia norte-americana, uma postura pessoal irreverente, personalidade complexa e sexualidade heterodoxa. Amiga pessoal dos principais intelectuais brasileiros da época, era ligada ao grupo que funda o Museu de Arte Moderna do Rio de Janeiro, auxilia na constituição de seu acervo e, sobretudo, no contacto com Happy e Nelson Rockfeller, fundamentais no processo inicial de criação do museu. Sua companheira, a poeta Elizabeth Bishop, gostava da serra com o mesmo vigor e paixão com que estranhara, profundamente, o clima tropical e o ambiente do Rio de Janeiro. Lota comprara um terreno em um dos pontos mais altos de Petrópolis, um verdadeiro recanto das águias. Perfeito para uma casa isolada, mas aberta para personalidades e intelectuais. Era o modelo do lar de Gertrud Stein/Alice B. Tolklas, abrigo da geração perdida na Paris do início do século vinte, que encontrava nova versão e espaço naquele ponto da Serra do Mar. Com vista imponente, o terreno dominava as montanhas e o vale. Por vezes envolto por nuvens, apenas alguns cumes de montanhas surgiam da massa de neblina. Queria que a casa aproveitasse ao máximo o panorama e demonstrasse o mesmo arrojo que a paisagem.(...)

Sérgio Bernardes, com apenas 32 anos, elabora um dos mais radicais projetos de residência moderna. Um telhado de alumínio ondulado repousa sobre uma treliça metálica e finos pilares de aço, sobrevoando e protegendo a construção, que alterna espaços abertos e fechados. Planos de vidro, tijolos e pedra organizam os espaços: numa das extremidades estava o apartamento íntimo das moradoras, com nível um pouco mais elevado que os demais. Uma longa e elegante galeria em rampa de dois trechos serve como varanda e conduz ao estar social e aos aposentos dos inúmeros e constantes hóspedes, situados na outra extremidade, de modo a garantir-lhes o máximo conforto e privacidade. Visitas que incluíam, além daqueles amigos intelectuais já citados, estrangeiros ilustres que visitavam o Brasil, como o poeta Robert Lowell, Alexander Calder, Monroe Wheeler e Aldous Huxley. (...)

A casa obteve o prêmio para obras de arquitetos abaixo de 40 anos na II Bienal de São Paulo, conferido por júri ilustre integrado por Alvar Aalto, Walter Gropius e Ernest Rodger. Esse não foi, contudo, o único prêmio a contemplar a casa e seus habitantes. Elizabeth Bishop foi agraciada, em 1955 com o Pulitzer de Poesia, em reconhecimento a seu livro Poems: North & South – A Cold Spring. Escrito em Samambaia, tinha entre seus poemas um dedicado à própria morada, a “Canção para a estação das chuvas” que assim terminava: “o vapor / escala a vegetação espessa / sem esforço, volta-se / e envolve ambas, /casa e rocha, / numa nuvem particular”.


O impacto da casa, para leigos como nós, é exatamente aquele mais aparente: de sua beleza simples e pouco intrusiva. Ao contrário dos demais arquitetos cariocas – impressionados com a obra estranha e improvável de Le Corbusier – a arquitetura de Bernardes filiava-se de forma mais ou menos livre à elegância do traço de Mies van der Rohe e, ao mesmo tempo, à preocupação de dialogar com os elementos do  ambiente, tal como na obra do norte-americano Frank Lloyd Wright. Seu hibridismo reflete a mesma generosidade de seu trato pessoal: técnicas arquitetônicas são válidas enquanto vivas; a intervenção humana no ambiente respeitosa mas cheia de personalidade. Em sua riqueza de referências e cuidado afetuoso, Sérgio era um típico brasileiro.

E como típico brasileiro, alguém a quem o público médio não poderia conhecer per bene até agora. Esta semana, damos o primeiro passo contra a indigência: a editora ARTVIVA lança o primeiro livro sobre Sérgio. Dos cerca de 6.000 projetos encontrados em seu acervo, o livro destaca o Pavilhão da CSN, localizado no Parque Ibirapuera (São Paulo, 1954), o Pavilhão de São Cristóvão (Rio de Janeiro, 1957-1960), o Pavilhão de Bruxelas (1958), o Plano-Diretor para as favelas cariocas (1960), o Hotel Tambaú (João Pessoa, 1966), o Aeroporto Internacional de Brasília (1960), o Hotel Tropical de Manaus (1968) ou o Instituto Brasileiro do Café (Brasília, 1972).

A organização é do próprio Lauro Cavalcanti - arquiteto, antropólogo e escritor - e de Kykah Bernardes - viúva do arquiteto, jornalista e pesquisadora. Reúne ensaios de diversos autores convidados, entre os quais, Ana Luiza Nobre, Alfredo Britto, André Correa do Lago, Monica Paciello e Guilherme Wisnik.

O Lan;camento do livro é nesta quarta-feira dia 15/12, às oito horas da noite na Livraria Argumento do Rio de Janeiro – Rua Dias Ferreira nº 417, Leblon. Tratarei de estar lá.

3 comentários:

karen worcman disse...

Muito merecido e bom o post sobre sergio bernardes,Muito bom mesmo.
Uma curiosidade é que Lota, além de suas atividades, foi a principal articuladora para a realização do aterro do Flamengo. Tem uma peça de teatro belissima sobre isto, baseada nas memórias de elizabeth.

Ricardo Leal disse...

Todo sentido. Acho que são muitos os cariocas como este escriba, que por razões as mais diversas guardam algum registro de memória de Sérgio Bernardes e do sentido que ele ajudou a mostrar possível para a arquitetura moderna. Imagino que o livro contribua para recuperá-los mais amplamente, memória e sentido de um campo que chegou a ser tão bem cultivado no Brasil.

Samira Ferro disse...

Nooossa!!!
muito rico todas as informações postada neste tópico.
Tô pequisando para minha faculdade, sobre o Sérgio, e incluí muito conteúdo deste post, em meu trabalho.
Obriga e parabéns.

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