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quarta-feira, 3 de agosto de 2011

A grande literatura do pequeno gesto no cinema


Não estou em idade adequada mas é fato que ultimamente tudo e qualquer coisa que me animam são reminências. Bashevis Singer, por exemplo: ler sobre o sujeito na belíssima resenha de Luiz Oricchio me fez lembrar a primeira vez que li o autor polonês.

Lembro - lembrei esta manhã novamente - que quando o li fiquei alerta: seus contos, passados na comunidades judaicas de Nova Iorque e Varsóvia, ou de pequenos stetl do leste europeu, são jóias de psicologia, humor e servem de deleite para qualquer pessoa sinceramente encantada com o mundo de vidas e encantos prosaicos que é este o nosso.

Coloco Bashevis Singer, a partir de expressões bem diferentes, ao lado de V.S. Naipaul que comentei em outro post logo abaixo. E sua diferença é como a das faces de uma mesma moeda: enquanto Naipaul parece encarnar a idéia tão cara à modernidade, do homem cosmopolita, a que tudo no mundo devora, Singer é um definitivo artesão a laborar miudezas de sua comunidade, de seu obtuso microcosmos. O primeiro, expressa aquela perplexidade que nos dá olhar o diferente, e perceber a nós; o segundo, outra emoção, a que mostra que o microcosmos particular espelha nuances de todo o universo.

Não sei qual dos dois modos mais me movem, mas sei que em Singer reencontrei uma dívida cara. E lembro que lê-lo foi uma aventura de um mundo que me fez reler em melhores moldes esta outra aventura que é o meu dia-a-dia e suas idiossincrasias. "O amor chega tarde", filme baseado em elementos de sua obra, parece-me ser, segundo posso ler no Estadão, a melhor dica para este final de semana.

Entre seus livros, "No tribunal de meu pai" é uma obra-prima. Se Joel chamou atenção no site da Dicta para referências sobre "o problema do divórcio" na mídia americana recente, Singer traz neste livro, em dado trecho, uma visão muito particular, como solução curiosa, ancestral e nobre. Chama-se "O Sacrifício".

Há neste mundo indivíduos muito estranhos, cujos pensamentos são ainda mais singulares que eles próprios.

Em nossa casa em Varsóvia - na rua Krochmalna, número 10 -, dividindo o hall de entrada conosco, vivia um casal de anciãos. Eram pessoas simples. O homem era artesão, ou talvez vendedor ambulante, e seus filhos já estavam todos casados. Contudo os vizinhos diziam que, apesar da idade avançada, os dois continuavam apaixonados. Todo sábado à tarde, após o cholent, saíam para passear de braços dados. Na mercearia, no açougue - aonde quer que fosse fazer compras -, a mulher só falava do homem: "Ele gosta de feijão... ele gosta de um bom pedaço de carne... ele gosta de vitela...". Há mulheres assim, que vivem falando de seus maridos. Ele, por sua vez, estava sempre dizendo: "Minha mulher".

Minha mãe, descendente de várias gerações de rabinos, implicava com o casal. A seus olhos, tal comportamento era uma demonstração de vulgaridade. Mas no fim das contas, o amor - sobretudo entre duas pessoas idosas-não pode ser tão facilmente repudiado.

De repente começou a correr um boato que escandalizou a todos: os dois velhos pretendiam divorciar-se! (...)

Nesse ínterim, em nossa casa, a verdade veio à tona.

A velha procurou minha mãe e falou-lhe em termos tais que o rosto pálido de mamãe enrubesceu de constrangimento. Apesar de ela ter tentado me despachar para longe dali, a fim de que eu não escutasse, acabei escutando, pois estava ardendo de curiosidade. A mulher jurava que amava o marido mais do que qualquer outra coisa no mundo.

"Cara senhora", argumentava ela, "eu daria minha vida para salvar uma unha dele que fosse. Pobre de mim, estou velha - sou um trapo de gente -, mas ele, ele ainda é um homem. E precisa de uma mulher. Por que obrigá-lo a carregar esse fardo? Enquanto nossos filhos viveram conosco, era preciso ter cuidado. As pessoas falariam. Mas agora o que elas dizem me preocupa tanto quanto o miado de um gato. Já não preciso de marido, porém ele - oxalá continue assim-é como um jovem. Ainda pode ter filhos. E agora encontrou uma moça que o quer. Ela tem trinta e poucos anos; é a hora dela de também ouvir a música das bodas. Além do mais, é órfã e trabalha como criada numa casa; será boa para ele. Com ela, ele gozará a vida. Quanto a mim, não passarei necessidade. Ele garantirá meu sustento, e eu sempre ganho alguns trocados vendendo badulaques. De que preciso na minha idade? Só quero que ele seja feliz. E ele me prometeu que - após cento e vinte anos, quando chegar a hora - jazerei a seu lado no cemitério. Voltarei a ser sua mulher no outro mundo. No Paraíso, servirei de escabelo para seus pés. Está tudo combinado."

A mulher viera a fim de, simplesmente, pedir a meu pai que cuidasse do divórcio e celebrasse o matrimônio.

Minha mãe tentou dissuadi-la. Como as outras mulheres, ela via naquele caso uma afronta ao sexo feminino. Se todos os homens de idade dessem para se divorciar de suas esposas e casar-se com mocinhas, em que bonito estado ficaria o mundo. Mamãe disse que a idéia toda era evidentemente obra do Diabo e que tal amor era uma coisa impura. Chegou a citar um dos livros de ética. Porém aquela mulher simples também sabia citar as Escrituras. Lembrou a minha mãe que Raquel e Lia haviam dado suas servas Bala e Zelfa como concubinas a Jacó.

Embora eu fosse apenas um menino, não me achava completamente indiferente à questão. Queria que os velhos fossem em frente. Em primeiro lugar, adorava assistir a um divórcio. Em segundo, nas cerimônias de casamento, eu sempre ganhava um pedaço de pão-de-ló e um golinho de conhaque ou vinho. E em terceiro, quando papai recebia algum dinheiro, costumava me dar umas moedinhas para eu gastar em doces. Não bastasse isso, no fim das contas eu também era um homem... (...)


Solução curiosa esta, a da separação como ato de amor. Lembro de Hoffmansthal e sua Marschelin no "Rosenkavalier" de Richard Strauss... Mas isso é outra coisa.

O trecho de Singer na íntegra aqui.

por Leandro Oliveira

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