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sábado, 20 de novembro de 2010

Televisão para Adultos


Por Joel Pinheiro da Fonseca

Não sei se é o meu gosto que mudou, mas vejo cada vez menos motivos para ir ao cinema. A quase totalidade dos filmes (ou ao menos dos filmes que passam aqui no Brasil) são produções boçais para o público adolescente. Basta lembrar que o filão de maior sucesso são os filmes inspirados em histórias em quadrinhos (nada contra as HQs; algumas dão bons filmes; mas não matam o desejo por algo mais denso e profundo). Ao mesmo tempo, as séries de TV têm ficado cada vez melhores. Sem a limitação de tempo do filme, e sem os recursos bilionários para se perder em efeitos especiais, elas podem se dar ao luxo de construir bons roteiros e personagens interessantes, indo além da pose que passa por caracterização em nosso cinema pós-Tarantino.

Mesmo nas séries, há as adolescentes e as adultas. Nas adolescentes nada é permanente: empregos e relacionamentos mudam com facilidade; aliás, o enredo consiste basicamente na troca de casais, briguinhas explosivas e saídas repentinas. Apesar de constantes e irrelevantes, as mudanças são sempre acompanhadas de muito drama, e a falta de valor objetivo é inversamente proporcional à quantidade de lágrimas e considerações pseudo-filosóficas para convencer o espectador de que tudo aquilo é profundo e “importa”, sempre da forma mais óbvia e escancarada possível. O melhor exemplo desse tipo de série é Grey’s Anatomy.

The Good Wife, cuja segunda temporada acaba de começar, pode ser classificada na categoria oposta: a série adulta. Isso quer dizer que os eventos na tela de fato importam. Coisas reais estão em jogo: uma família, uma carreira, uma empresa, uma reputação. Por isso mesmo não há necessidade de se exagerar no melodrama; ela pode ser sutil.

O centro da série é a advogada Alicia Florrick, que teve que retornar à profissão quando o marido Peter, promotor público, é preso num escândalo envolvendo corrupção e prostituição. Até que ponto ele é corrupto nunca fica claro, mas quanto ao uso de uma prostituta não há dúvidas. Com o marido preso, Alicia e os filhos mudam-se para um apartamento e ela volta ao Direito que havia abandonado para se tornar dona de casa; mais especificamente, vai trabalhar na Sterne, Lockhart & Gardner, empresa de seu velho amigo e antigo flerte de faculdade, Will Gardner. O problema é que a própria empresa não tem ido muito bem das pernas, e só pode contratar mais um associado; Alicia terá que disputar a vaga com Carey Ago, um jovem promissor recém-saído de Harvard Law. Paralelamente, Peter e seu estrategistas conseguem aos poucos reverter a situação calamitosa e suas perspectivas começam a melhorar, de forma que ele não só talvez saia da prisão, como mesmo possa voltar à vida pública. A relação com Alicia, contudo, continua fragilizada; Peter a quer de volta, mas Alicia resiste.

Esse é, em poucas linhas, o enredo da primeira temporada de The Good Wife. Vamos ao que torna a série um produto superior. Em primeiro lugar, fugir de todas as resoluções fáceis. Uma série inferior com um enredo desses teria uma saída fácil e convencional: Peter como o grande vilão, o machista dominador que manipula sua esposa, ao passo que Will seria o verdadeiro amor da vida dela. Nada disso por aqui. Primeiro porque o próprio Will é alguém com sérios defeitos: é alguém que encarnou em si a lógica do Direito, e para quem vitórias no tribunal e dinheiro para a firma estão acima de tudo (a proximidade com Alicia parece abrandar um pouco sua inescrupulosidae); ao mesmo tempo, é alguém distante e defensivo, que foge de seus verdadeiros sentimentos em casos puramente carnais. Que o objeto de interesse ilícito seja imperfeito é até comum; o mais inesperado é a caracterização de Peter e sua mudança ao longo da temporada.

Seria muito fácil transformar Peter num crápula: corrupto, adúltero, dominador; e de quebra isso daria uma licença moral para Alicia jogar-se sem remorsos num caso com Will. Mas, surpreendentemente, Peter arrepende-se do que fez, defende-se com maestria das acusações legais e passa, na frente dos espectadores, por algo que, ao que tudo indica, é uma verdadeira e sincera conversão espiritual. Que um político queira aparentar piedade religiosa depois de envolvido num escândalo é comum o bastante, e inclusive é isso que leva seus assessores à igreja do pastor Isaiah. Mas que a conversão seja real e, para desespero dos mesmos assessores, leve Peter a conter os golpes baixos contra sua concorrência e a recusar possibilidades de adultério é surpreendente.

Como bem disse um amigo meu, The Good Wife é sobre tentação. A tentação de se abrir mão de quaisquer princípios para se perseguir com mais eficácia os próprios objetivos. No final das contas, princípios não-negociáveis são uma vantagem ou um obstáculo à vida bem-sucedida? Alicia é uma boa mulher e uma boa esposa; alguém que tem valores não-negociáveis. Ao assumir as novas responsabilidades do mundo do trabalho (ao qual ela volta inicialmente sob necessidade, mas no qual continua por decisão livre), ela será pressionada a deixá-los de lado. Terá ela que podar sua natureza benevolente e disposição de ajudar para o bem de sua carreira e de sua empresa? E estará disposta a usar de quaisquer meios para chegar aos fins que almeja? É possível ser um bom ser humano e um bom advogado?

Há dois personagens que representam o uso inescrupuloso dos meios: Eli Gold, estrategista da campanha de Peter; e Kalinda, investigadora privada contratada pela Lockhart & Gardner. Eli emana uma aura de invencibilidade e superioridade; Kalinda é obviamente alguém mais vulnerável. Reservada, ambígua (a começar por sua sexualidade, que é uma das ferramentas a seu dispor), implacável quando quer algo e, ao mesmo tempo, dotada de um lado benevolente. Fica patente que ela quer ajudar Alicia, e faz muito mais por ela do que o mínimo profissional exigiria; ela é a mentora de Alicia no lado negro do mundo do Direito. O que a leva a ajudar Alicia? Talvez veja na nova advogada o ideal de mulher que ela nunca conseguiu atingir. Alicia é alguém que, acima de tudo, se preserva; Kalinda se entrega e se vende, e carrega na alma as cicatrizes de suas decisões. Já Eli Gold, ao que tudo indica, não faz favores a ninguém; com ele tudo é uma troca, um negócio; e sua grande virtude é deixar isso claro, sem rodeios ou máscaras. Até que ponto isso tem afetado sua vida pessoal é algo deixado para a segunda temporada. Uma terceira personagem, que pode ser ou não uma manipuladora de primeira ordem, é a mãe de Peter, Grace; sempre por trás dos panos, ela mexe as cordas para ver o sucesso de seu filho e da família dele como um todo - uma boa vovó (que cuida e gosta verdadeiramente de seu filho, nora e netos) que pode ocultar uma leoa sanguinária por trás da doçura. Se sua influência é moralmente positiva (e portanto de acordo com seu nome, Grace, ou seja, a Providência que imperceptivelmente conduz todas as coisas ao seu legítimo fim) ou negativa (algo mais próximo das conspirações apenas superficialmente boas do diabo), é algo que ainda não se pode dizer.

Outro dado distintivo da série é que ela se passa no mundo real: na Chicago dos dias de hoje. Não faltam alusões e referências às figuras reais da política (Obama, Hillary, Sarah Palin) e nem à divisão cultural dos EUA. Liberais e conservadores aparecem e, novamente, nem sombra do maniqueísmo que facilmente se insinua até nas séries supostamente neutras. E ao mesmo tempo, a série deixa ver que a posição política do indivíduo é, por vezes, seu traço mais superficial. Diane Lockhart, uma das donas da firma, é liberal até a medula; e mesmo assim, mesmo contra todas as suas convicções políticas, envolve-se mais do que seria prudente (tanto profissional como pessoalmente) com os tipos mais reacionários que o Tio Sam tem a oferecer.

O mundo adolescente é o mundo das ações sem consequência. Troca-se de namorada, troca-se de emprego, troca-se de sonho de vida, troca-se de amigos, sem maiores conseqüências. Em The Good Wife estamos em território francamente adulto. Tudo tem conseqüências. Alicia tem um casamento e filhos, e agora uma nova paixão que é sua carreira; Peter tem sua reputação e futuro político na linha. A firma Sterne, Lockhart & Gardner é a grande obra de Will e Diane. Todos têm o que perder. Seguir um impulso, um desejo momentâneo (que por algum motivo a nossa sociedade confunde com o amor profundo), é uma burrice. E, ao mesmo tempo, os dilemas são reais; pois para que servem os laços duradouros se eles não dão ao homem aquela satisfação mais profunda que um arroubo momentâneo promete por alguns instantes? Pegue quaisquer dois personagens da firma, e você encontrará uma combinação de competição e cooperação. É impossível descrever os relacionamentos em sua complexidade. A graça mesma de assistir está em vê-los se desenrolar aos poucos; um olhar, um desencontro, um silêncio; há histórias progredindo nas entrelinhas, há o passado de cada personagem que descobrimos pouco a pouco e as inseguranças quanto a um futuro ainda indefinido. Tudo muito real e relativamente sutil.

A primeira temporada termina num clímax. Todos os conflitos se intensificam, e mesmo os que se resolveram dão uma virada nova (a disputa pela vaga entre Alicia e Cary foi resolvida mas deu lugar a algo ainda mais sério). Se a segunda e as subseqüentes mantiverem o mesmo nível, teremos bons motivos para ir menos ao cinema.

Retirado de Terra à Vista.

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