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segunda-feira, 22 de novembro de 2010

Elogio à Caecilia


Padroeira da música, Santa Cecília poderia servir de mote para mais este elogio à beleza do empreendimento humano: a "fonte" ou tecnicamente a família tipográfica criada por um jovem genial chamado Peter Matthias Noordzij. Assunto interessante e pouco conhecido, é a estréia do designer José Luís Bomfim no Ocidentalismo.org.

por José Luis Bomfim

"Caecilia" é uma família tipográfica desenhada por Peter Matthias Noordzij e publicada no ano da graça de 1991 pela Linotype. Trata-se de um marco; o fito desta nota é explicar o porquê.

Corriam na época as primeiras tentativas sérias de desenhar uma fonte que fosse adaptada à fotocomposição digital, conhecida também como off-set digital. O fato é que uma família tipográfica, uma fonte, não existe no ar. Uma família tipográfica é boa na medida em que serve para um determinado projeto tipográfico, e um projeto tem como fim uma boa impressão. Tipografia à moda antiga, com tipos em metal, é um tipo de impressão de resultados escultóricos: o tipo escava o papel dando-lhe aquele matiz aveludado, onde as terminações (tecnicamente terminais) se fazem mais presentes do que na impressão offset, na qual a letra é colocada sobre o papel de forma homogênea. Ora, o desenho deve acompanhar tais mudanças para poder refletir não somente o Zeitgeist, mas para servir ao leitor, que certamente esquecerá da fonte se esta for boa, se for, enfim, legível.

Aí que entra Noordzij, o estudante de tipografia que tinha recebido de seu pai uma educação que insistia na confiança no traço manual. Entre 1985 e 1986 Noorddzij empreendeu uma façanha: queria desenhar uma fonte que fosse um reflexo da vitalidade humanista presente nas fontes renascentistas, dada pelo resquício do sabor do traço dos calígrafos no desenho da fonte e ao mesmo tempo incorporasse o traço contínuo, não modulado, típico das fontes com serifa quadrada ou egípcia tão marcadamente técnicas e sisudas. Para isso ele teve de recuperar o arquétipo de cada letra e combiná-lo em um ritmo que fosse, no desenrolar do texto, gracioso.

Quando Adrian Frutiger, um dos patricarcas da tipografia do século XX, viu os rascunhos do jovem holandês, não teve dúvidas e o recomendou avidamente à Linotype.

Para vir à luz, porém, Caecilia, demorou outros cinco anos. Isto porque a edição da fonte dependia de tecnologias até então não testadas totalmente, uma vez que se passava do offset analógico ao digital. Mas a persistência e o cuidado nanométrico com os detalhes fez com que a fonte se tornasse um clássico de nascença.


Caecilia foi o nome escolhido para homenagear sua esposa, Marie-Cécile, mas pode evocar também santa Cecília, padroeira da música; pode evocar ainda a síntese do que parecia contraditório, o triunfo dialético do esforço humano sobre a matéria. Isto porque, como disse ao início, a fonte resiste bem às mais humildes impressões, inclusive àquela página que a tua laser de 300 dpi imprime com diligência. Coisa que a badalada ̶ e com as devidas razões ̶ Palatino, não faz com a mesma argúcia. O triunfo definitivo da fonte viria mais tarde, quando a Amazon resolveu escolher a Caecilia como fonte padrão de leitura no Kindle. Noordzij transcendia assim mais uma vez a idéia pós-moderna de técnica, algo que limita o homem, e dava humanidade à leitura, ligando com persistência e graça o passado do calígrafo renascentista ao moderno e-book.

Pode-se acessar o especimen da fonte em extensão pdf aqui.

2 comentários:

Caluã disse...

Parabéns pelo artigo, Zé! Mas, diga, você sabe se a Caecilia funciona bem no papel eletrônico do Kindle?

Zé Luis disse...

Obrigado, Caluã. Bem lembrado: o papel eletrônico é diferente do tubo catódico, do plasma ou do LCD. A luz não vem de trás, mas é refletida, é a luz do ambiente que dá o tom correto à leitura. Pelo que Pelo que pude testar a Caecilia funciona bem sim.

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