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terça-feira, 16 de novembro de 2010

A escrita como uma tecnologia que reestrutura a mente - Parte II


Por Leandro Oliveira

É um aparente paradoxo, mas tecnologias são artificiais apenas na medida em que a artificialidade é natural aos seres humanos. O fato de não sentirmos comumente a influência da escrita como tecnologia decisiva para o processamento de nosso pensamento demonstra sua interiorização radical.

A tecnologia alfabética é tão imperiosa que a tomamos não raramente pela própria linguagem. (Tendemos a assumir como normativa a linguagem escrita e não à toa cunhamos o termo “analfabeto” a quem não domina a leitura. Pela raiz mesma da palavra, o “analfabeto” diz daquele a quem falta algo, ou seja, uma espécie de handicaped). Mas pensá-la assim é distorcer um processo de complexidade extraordinário. O que de fato está em jogo no processo do domínio da escrita é uma readequação muito específica das nossas funções intelectuais.

Por exemplo, se eu sugerir para uma pessoa com o domínio fluente do alfabeto, como qualquer um de nós, que pense na palavra "felicidade".

Alguém se habilita?

Provavelmente quem tentar terá presente na imaginação apenas letras - cursivas ou de fôrma - talvez de forma obliterada, mas incontestável. Isso é prosaico. O caso se torna mais instigante caso tentássemos fazer o mesmo exercício, pensando na mesma palavra, agora por um minuto e sem o uso de qualquer letra do alfabeto. Ou seja, pensar na palavra “felicidade” mas não pensar em consoantes e vogais.

Talvez seja impossível. Uma pessoa de formação inteiramente oral-aural teria uma relação absolutamente distinta e, por assim dizer, concreta: feita através de palavras reais. O que isso quer dizer? "Fe-li-ci-da-de", a palavra soada, não se coloca presente de uma só vez, mas em ato: quando o "de" é soado "fe”, “li”, “ci” e “da" já são passado. Neste contexto, palavras são antes de tudo sons, e os sons existem somente enquanto soados ou como memória de uma presença que já não há. Pensar na palavra "felicidade" é como pensar uma melodia em sua seqüencia no tempo. Na mentalidade inteiramente oral, uma palavra é um evento, um happening, não um objeto como as letras do alfabeto fazem parecer ser. E assim como as palavras é o pensamento: pensar, por exemplo, "este post é uma idiotice", nestes termos, é também sutilmente valer-se de uma ocorrência, organizar sucessões de eventos.

Parece uma obviedade, mas os desdobramentos desta realidade são inúmeros já que esta forma de apreensão dos elementos da linguagem é naturalmente extrínseca à escrita e ao modo de pensar que ela introduz na nossa mentalidade. A escrita falsifica a palavra ao assumir, por exemplo, "felicidade" ou “este post é uma idiotice” como objetos presentes e completos e, portanto, verificáveis, analisáveis e reflexivos. Seu mais radical e geral efeito é o de permitir dividir ou separar toda uma série de coisas que são originados de forma una e orgânica.

Foi o advento da escrita que possibilitou, entre tantas coisas, o salto intelectual radical do mundo grego: do conhecimento baseado na experiência e em certo tipo de "retórica" dialogal para outro de categorias conceituais e abstratas e da dialética ou lógica formal.

(Segue)

Um comentário:

Unknown disse...

Pedir para não pensar nas letras ou sílabas da palavra é quase impossível, mesmo para um analfabeto. É como pedir: "não pense em um cabide". Automaticamente a imagem de um cabide vem a sua mente...

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