Saiba mais

segunda-feira, 22 de novembro de 2010

Alguma Poesia de Pablo Simpson

Por Érico Nogueira

Em tempos de ENEM fodendo, me agrada lembrar que, além de Dirceu Villa e Caio Gagliardi, conheci também o poeta, professor de literatura francesa, enófilo e gourmand Pablo Simpson quando trabalhei naquela terra ruim...

O poeta estreou em 2003, com "Mitologias", um belo livro, sem dúvida, mas que, edição do autor, só foi distribuído entre uns poucos privilegiados. Sempre gostei do poema de abertura:

O anúncio da voz cruza teu rosto branco.

As tardes se evocam em ti, guirlandas e arcos de sol.

Observo a casa engastada nas pedras.
Também quis curvar-me sombra aos temores do vento,
esconder-me nos homens. Também quis curvar-me
aos desígnios da luta.

Mas o ocaso da tarde inclina-me as sombras duras do corpo.
O anjo sem equilíbrio da tarde risca no ar
denso azul de chuva.

As águas então se afeiçoam a mim, súbito
uma poça se forma em meus pés,
prende-me os passos.

Mas miro-me nas ladeiras da tarde que se erguem de ti.
Miro-me na veste luminosa que se dobra em teu peito:
na íntima claridade do nome.

E vejo que uma chuva fria transborda
um verde seguro na margem de teu olho.

O que temos aqui é a mais fina flor da moderna tradição francesa transplantada -- e muito bem aclimatada -- para solo brasileiro. Valéry, Char e Bonnefoy, eu diria; mas também, quem sabe, um pouco de Saint-John Perse... Rastrear referências, porém, é o de menos: o que importa é notar como o poeta consegue, já no seu livro de estréia, fazer uma poesia leve, aguda e sutil, de sugestões e murmúrios quase surdos, sem cair na tentação de teorizar em verso. Esse equilíbrio, leitor, é muito difícil de conseguir...

O poeta hoje vive nos Camarões, onde é leitor de língua portuguesa e literatura brasileira na principal universidade do país. Encontramo-nos em Paris meses atrás -- encontro recheado de visitas a museus, ótimas conversas, vinhos excelentes, e, claro, poesia. O poeta vem há tempos trabalhando num segundo livro, do qual me mandou alguns poemas. Destaco especialmente estes dois:

A casa escura acolhe em pedra

os rastros do Centauro.

A cada passo, a linha
– ela, marca do início –

risca a superfície. O frio
e a lucidez tateante

reclamam suas fugas, abrem
as portas do amor. Ele segue

as quadraturas, os signos
dispersos e infalíveis.

Eu vi, amiga, duas janelas
de rio, os grandes rostos.

Eles se tornaram de luz viva.
E recusaram-me. Que buscar?

Eu que fui tolo, tramando.
Eu que hesitei como homem.

As paredes, as feras, o animal
transido de sono.

As flores e a música – que imagem
livrar destes caminhos?

Duplicar-se e eram outros
sinais da consciência:

os muros rasgados, a fome
dobrada sobre si como uma pétala.

*

Duas janelas, mas podem
ser dois sexos – leio e os descubro

à minha frente, incontinentes
agora ajeitam as colunas

submergindo e nada nos diz
que comem ou se comem

alguém disfarça a nuvem
que não encobre o rosto,

vinde, ó putas e donzelas
com cherume, e com gosto

os centauros, dizem-me
yo comprendo el secreto de la bestia:

tropel de força, encetam
e de gozo, espuma marinha
locupletam-se.

As coisas, agora, não são tão leves quanto no passado: esses novos poemas são também agudos e sutis, com efeito, mas têm uma carga emocional, e uma decisão de explorar os liames entre o grotesco e o sublime, que antes eram exceção na poesia do autor. Gosto especialmente de "... e nada nos diz/ que comem e se comem/ alguém dirfarça a nuvem... ". O leitor certamente já entendeu.

Por fim, reitero: não se trata de um panorama exaustivo da poesia brasileira mais recente, mas apenas do meu panorama; não da biblioteca enfim, mas da minha biblioteca. Vou ter que desenhar?

Nenhum comentário:

Related Posts Plugin for WordPress, Blogger...