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segunda-feira, 11 de outubro de 2010

...like a bridge over troubled watters...


Por Eduardo Wolf

Imagine a seguinte situação: você está em uma dieta de emagrecimento (as razões para isso podem ser variadas) e, dadas essas circunstâncias, você sabe que não deve comer certas coisas – digamos, doces, por exemplo. E eis que de repente você se depara com aquela extraordinária torta, com aquele chocolate suíço magnífico – insira aqui o doce de sua preferência, leitor. Você nunca fraquejou em uma situação como essa? Claro, os exemplos poderiam ser de outra ordem. Por exemplo, imagine que você, mesmo sabendo que não deve consumir bebidas alcoólicas, pois está dirigindo, acabe, mesmo assim, fazendo isso. O vinho era bom – e não precisa ser um Alma Viva – e você, hélas, fraquejou. Mas afinal, porque isso acontece? Como podemos explicar satisfatoriamente esse fenômeno que, salvo engano meu, é tão comum entre nós?

Antes de responder a essa questão, vejamos ainda um outro caminho: imagine que você comece a se perguntar sobre o que faz com que você precise obedecer aquela lei que diz que você não deve ingerir bebidas alcoólicas e dirigir. Você pode responder que, ora bem, trata-se de uma convenção: é a legislação vigente, e é assim que funciona a vida em sociedade. Mas por que respeitamos as leis convencionadas? E por que essas leis, e não outras? Você poderia ir ainda mais longe e se perguntar por algo que extrapola qualquer sentido de convenção no que diz respeito ao nosso comportamento. Por que, por exemplo, nos sentimos chocados com a idéia de torturar crianças (no meu caso e no de muitos, bastaria o “torturar”, mas forço o exemplo com fins didáticos)? Não é preciso que esteja escrito em nenhum lugar que isso é algo ruim para que pensemos que, de fato, é (salvo, é claro, casos patológicos) algo ruim. Mas de onde vem essa nossa compreensão das coisas boas e más que fazemos ou que não devemos fazer?

Se você acha que nenhuma dessas questões faz sentido, aconselho que pare de ler por aqui (embora duvide que quem pense assim tenha chegado até aqui). Agora, se você reconhece que essas questões ao menos fazem sentido, peço que estique um pouco mais a corda do raciocínio e me acompanhe.

É provável que quem reconheça alguma validade para as perguntas acima, reconheça igualmente que elas são bastante comuns. E com isso quero dizer duas coisas: tanto que elas dizem respeito a situações comuns, ou seja, que constituem um tipo de experiência que os seres humanos compartilham entre si (que qualquer um de nós poderia passar por elas), mas também (e por causa disso mesmo) que são situações que não exigem de nós um grande esforço de abstração para compreendê-las. Não é como se alguém começasse a falar conosco sobre física contemporânea e teoria das cordas.

Pois bem. São exatamente esses os temas que motivaram filósofos como Platão e Aristóteles, como Agostinho e Tomás de Aquino, como Hume e Kant a refletiram sobre aquilo que chamamos de nossa vida moral: o que significa agir bem? Como somos felizes? Como podemos ser boas pessoas? Essas foram as perguntas que os grandes filósofos de todos os tempos, cada um a sua maneira, tentaram responder. Nada muito distante do que aquele livro de auto-ajuda que a sua vizinha está lendo, não? Nem tão longe daquele comentário que a cronista de jornal favorita que o seu colega de trabalho sempre cita, não é verdade? Não. Não é verdade.

Não é verdade porque o que esses filósofos fizeram foi precisamente o contrário do que fazem os que transformam nossa vida em receita bolo: foi recusar qualquer simplificação diante desses problemas. Não existem receitas para se viver bem em livros de filosofia – e aí está uma boa dica: encontrou um livro que as tenha, já sabe, leitor, não é filosofia. É um equívoco confundir a reflexão rica e nuançada de um problema moral – um problema sobre como devemos levar nossas vidas – que encontramos na obra dos filósofos com esses manuais do bem-viver que não são mais do que fonte de renda para o bem-viver material de quem os escreve.

A verdadeira interrogação filosófica sobre a nossa vida moral é aquela que, na verdade, precisa estar sempre atenta àquela questão de fundo: “qual é a natureza humana?”; ou outra ainda mais ao fundo: “o que significa dizer que temos uma natureza, se é que temos uma?”. Assim, o trabalho da filosofia moral não é dizer como se deve viver, assim, de modo simplista; antes, é perguntar-se pelo sentido de “dever”. Não é dar “dicas” sobre como ser feliz; pelo contrário, é interrogar-se pelo que significa, para um ser humano como nós, ser feliz. Somente assim é possível chegar efetivamente a respostas interessantes e, se for o caso, verdadeiras.

Trago à tona essas considerações por dois motivos muito simples. O primeiro deles é insistir em uma tecla na qual venho martelando aqui: dizer que a filosofia é uma disciplina puramente técnica, confinada ao trabalho de especialistas e exegetas, é uma visão deformada sobre essa fantástica aventura da inteligência humana. E, é claro, o segundo motivo tempera o primeiro: fazer passar por filosofia qualquer comentário rasteiro sobre a vida ou sobre o mundo, desconhecendo a especificidade e a dificuldade próprias ao verdadeiro exercício da filosofia é nivelar por baixo um de nossos mais belos patrimônios como espécie.

Tentar entender o que significa uma “boa vida” lendo Platão, e não a sua cronista de jornal, equivale a assumir que a experiência humana é muito mais rica e complexa e, mais que isso, que merece nossa atenção e nosso esforço. É certo que Platão e sua cronista, por vezes, podem estar tocando no mesmo tema acerca da vida humana – o amor, a felicidade, a educação. Mas só são o mesmo no sentido em que uma história de amor de uma canção de rádio e o drama de Romeu e Julieta são histórias de amor. Em suma, cabe a nós escolher a profundidade das águas em que vamos mergulhar. E a filosofia, nesse sentido, é como uma ponte sobre essas águas turbulentas da nossa humana condição – por vezes uma ponte frágil, que nos assusta; noutras vezes, firmes e sólidas como as mais portentosas construções humanas.

Ainda assim, o leitor que chegou até aqui pode argumentar que filósofos são difíceis de ler. É claro que quando nos deparamos com os detalhes técnicos da análise do texto desses filósofos – aquelas sutilezas que nos confundem, aquele uso dos conceitos que nos deixam perplexos, por vezes, e que mereceram, ao longo dos anos, milhares de páginas de comentários de especialistas – não devem interessar a qualquer tipo de leitor, nem mesmo os dessas Páginas Filosóficas, afinal, trata-se de um tipo de reflexão extremamente especializada. Agora, se nem mesmo as questões centrais sobre nossa experiência moral que são o verdadeiro objeto de interesse de um Aristóteles ou de um Kant (e que eu exemplifiquei aqui) interessarem ao leitor que chegar ao final dessas páginas, isso é mau sinal. Sobre você, leitor, é claro. Não sobre Aristóteles ou sobre Kant.

Texto publicado originalmente na Revista Norte, que, além de Eduardo Wolf, publica artigos de nossos colaboradores Felipe Pimentel e Pedro Gonzaga.

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