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quarta-feira, 27 de outubro de 2010

Em busca do roteiro perdido


Entre as características da arte de nosso tempo está o menosprezo pela narrativa. Que tal característica se desdobre no evidente distanciamento do público não é surpreendente: afinal poucos se dão ao luxo de passar suas horas vagas fazendo o esforço para tentar entender mensagens que, por vezes, nada querem contar. O fato estético é um encontro, mas o que fazemos quando uma das partes prefere o solipsismo?

Por Rodrigo de Lemos

Há uns 3 anos (talvez mais), Peter Greenway deu uma palestra em Porto Alegre falando sobre como o cinema deveria se concentrar nas imagens e deixar a narrativa para os romancistas. Mas aí lembrei de uma entrevista com um daqueles senhores divertidos do Nouveau Roman (Claude Simon, eu acho); para ele, o romancista devia se concentrar mais na descrição do que em contar histórias. Quem deveria então, para esse povo modernista/avant-garde, se dedicar à narrativa? Não poderiam ser os pintores; tenho dúvidas quanto à possibilidade de se contar uma história atirando tinta na tela com o pinto ou desenhando quadradinhos milimetricamente irrelevantes e perfeitos. O teatro, talvez; mas minhas dúvidas aumentaram ainda mais lembrando que teatro é rito, o que quer dizer uma horda de bichas semi-nuas atirando carne crua e leite materno no público. A poesia, mais difícil ainda; há modernistas que chegam a ter dela só uma definição negativa: exatamente o que não é narrativa.

Como só se conta uma história através de um meio (não existe narração no abstrato, sem a palavra escrita ou a imagem ou a encenação), e como cada arte, segundo o modernismo, devia se comprometer mais com o próprio meio do que com qualquer outro aspecto da obra, a presença de uma história não apenas é secundária como nociva para a criação do efeito estético mais elevado. Bobagem, claro. Levar as artes a esse nível de especialização (a pintura só deve investigar os meios da representação em duas dimensões; a poesia, os da “palavra” no sentido mais bobalhão do termo), além de criar uma tirania intelectual totalmente arbitrária, não deixa lugar para a narrativa. Como os modernistas esperam (ou esperavam) que se conte uma história se eles mesmos consideram todos os meios materiais disponíveis (palavra, imagem, encenação) muito acima da tarefa mesquinha de trazer à vida Fausto ou Tristão e Isolda ou Hamlet? Por transmissão telepática de cadeias de ações? Uma platéia conectada por sondas mentais aos atores enquanto eles transmitem o "Édipo Rei" por simples atividade psíquica?

Antipatia pela narrativa decorre de um – mau – elitismo estético, a idéia de que não ser compreendido coloca o sujeito automaticamente na galeria dos gênios, mesmo que na maior parte dos casos seja mais provável que numa turminha da APAE. A narrativa então é tudo o que se deve proscrever para ser devidamente incompreensível. Porque um bom enredo tende a tornar uma obra acessível. Ouvir histórias é o primeiro prazer artístico que a maioria das pessoas experimenta na vida, e em muitos casos o único. Qualquer integrante do U2 gosta de, e às vezes chega mesmo a entender, um conto dos Andersen. Mesmo o primitivo mais burro, burro de meter o dedo no ventilador para ver se corta, de usar clarinete como zarabatana, senta ao redor do fogo para escutar o velho da tribo contando as aventuras de um herói numa batalha mítica. Eu mesmo já testemunhei como uma boa história aproxima de obras sofisticadas o público mais desinteressado por arte. Assisti na companhia de um amigo highbrow, de outro middlebrow, à "Medéia" do Pasolini, com Maria Callas. Enquanto meu amigo highbrow ficou encantado com a beleza das paisagens e com a retórica da peça e aqueles detalhes que só a pretensão fazem perceber, o outro, o middlebrow, se deixou prender – e até mais do que qualquer um de nós – pelo lado Janete Clair de Eurípides.



Claro que admitir verdades simples assim não leva a qualquer tipo de populismo: a opinião do meu amigo highbrow, que conhece pintura e sabe grego e lê uns livros grossos e vive para isso, deve contar mesmo mais do que o outro que embarcou na alta cultura pulando a roleta (a não ser que o middlebrow seja naturalmente sensível à beleza, assim, como que por dom divino – o que não é o caso). Mas o que me chama a atenção é que, de Sófocles a Balzac, se a beleza de um verso ou as nuances de uma análise psicológica falavam a uma pequena elite capaz de perceber grandeza artística, uma boa história sabia atrair o povão, que às vezes podia mesmo levar para casa de brinde uma lembrancinha do Sublime. Com o modernismo, parece que as sensibilidades se dividem mais radicalmente: há a arte de massa – no geral somente uma história bem montada, sem grandes virtudes estilísticas – e uma arte para especialistas, na maioria das vezes somente cenas bem compostas e psicologias sutis, mas ambiciosa demais para se preocupar com essa coisa pífia que é a história.

O resultado são de um lado os filmes de Peter Greenway, que só não são soníferos coletivos porque as salas estão quase sempre vazias, e de outro um desses blockbusters de catástrofe, de aventura, prazeres a que não resistimos assim como não se resiste a uma hora de academia ou a uma mordida de cheesecake.

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