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terça-feira, 22 de fevereiro de 2011

"O Cisne Negro"


Talvez cheio de referências demais, o fato é que "O Cisne Negro" é um filme radical. Seu estilo "ame-o ou deixe-o" não escapou aos nossos colaboradores. Agora Dirceu envia, de Londres, suas explorações sobre a nova criação de Darren Aronofsky.

por Dirceu Villa

Darren Aronofsky, diretor de "Pi" (1998), filme fundamental no cinema, sobre um matemático extraordinário, seu professor sábio e sobre como um número descoberto quase ao acaso num aparente bug computacional se torna a chave tanto para judeus ortodoxos que buscam na Torá uma combinação de palavra e número que seja o nome de deus, quanto para umas pessoas muy delicadas por trás da Bolsa de Valores, dispostas a controlar a nova informação numérica que pode prever as flutuações. Inteligentemente, Aronofsky propõe essa linha, mística e matemática, se estendendo também dos meros negócios à ordem mirífica da teologia.

O filme é muito complexo. A onipresença do número na natureza, entrevista na spira mirabilis das galáxias à concha do molusco Náutilus, e às mais complexas descobertas humanas de proporção (cf. Lionardo Da Vinci) lhe dá um princípio que se desdobra, como na mística judaica, em palavra que soletra o código para tudo. Deixei, no começo deste blog em 2007, o trailer de "Pi" passando numa janela que mantinha com links para o youtube. Aronofsky fez outros filmes excelentes, e uma grande besteira, "The Fountain" (2006).

Mas agora realmente atingiu um ponto de excelência semelhante a "Pi", com "Black Swan" ("Cisne Negro"). Não vou falar do filme, uma obra-prima, mas de coisa formidável que o filme suscita intencionalmente, sobretudo se posto sob a luz cegante de "Pi", com o qual tem muitas relações.

Uma das hipóteses de "Black Swan" pode-se traduzir em: o que acontece quando o artista se torna a obra? A gente supõe que exista uma relação profunda entre quem realiza uma obra e esse resultado, a obra ela-mesma. Discutem em simpósios e tudo o mais quanta distância se pode supor entre o artista e aquilo que faz.

Idealmente, não deve existir nenhuma distância. Isso pode ser lido como um romantismo. Não é, ou, sendo, diluiria a força de sua fórmula. A transfiguração do autor no inventar da obra é coisa infinitamente mais antiga, mesmo que “autor”, nesse caso, tenha sido pensado como um canal entre duas instâncias de outra forma isoladas.

A obra de arte perfeita seria aquela em que o artista mergulhasse de tal maneira que se tornasse a obra, & vice-versa; a velha história de abyssus abyssum invocat, ou “o abismo invoca o abismo”: você olha pra ele, ele olha pra você. É o perigo da dissolução na luz ou na escuridão, como toda genuína busca de conhecimento acaba trazendo. "Doctor Faustus", sobretudo o de Marlowe, propunha isso, mas Goethe pensava, é claro, em algo semelhante.

No princípio era o verbo. E depois lemos que o verbo se fez carne. Essa correlação, por mais exclusiva que fosse em sua teológica origem, abriu um precedente, que aliás já estava aberto pela velha idéia grega de poesia como um fazer: a palavra põe algo (seja lá o que for) em ação efetiva.

Os egípcios cobriam de signos seus cadáveres, encomendados com sabedoria a uma vida além desta, por caminhos sagrados e secretos, e as palavras tinham o dom de iluminar essa escuridão da ignorância mortal. A cada uma das portas com guardas o iniciado diria: “sei o seu nome e sua função, permita que eu passe”.

Era também a palavra que punha vivo o Golem (e o desfazia), porque a palavra é, como os poetas concretos disseram, verbivocovisual, e porque, além dessa completude sígnica, ela carrega em si uma ancestralidade que nos retorna ao princípio da apreensão das coisas e de sua nomeação, é um elo vivo com o passado remoto & suas transformações. É como a luz: se a física retraça o trajeto de eras em seu caminho, também a palavra guarda possibilidades semelhantes. O sentido alquímico do homúnculo não era literal, por exemplo, mas uma apreensão simbólica de virtudes e potências.

Em geral, e após o romantismo, esse modo de entender uma obra de arte, de que criador e criatura são estranhamente um, e ambos vivos, virou uma banalidade, que os artistas ruins hoje usam apenas para dizer que lá estão eles, e deram o sangue em sua triste porcaria (alguns pobremente presos à mais simplória literalidade). Ou se tornou uma metáfora do conhecimento que vai além de suas medidas, reduzindo Prometeu a um âmbito caseiro, no "Frankenstein" da Srta. Shelley, cujo irmão poeta sonhava palavras bordadas e rendadas. Porque o conhecimento é medido sem as proporções mágicas que não apenas o autorizavam antes, mas o instrumentalizavam. Como John Dee, matemático, geômetra, médico, astrônomo e feiticeiro da rainha Elizabeth I escreveu em seu "Monas Hieroglyphica": aut discat, aut taceat, "ou aprende, ou cala".

Qualquer um que tiver discernimento, no entanto, perceberá como os grandes artistas encarnam suas obras, e como suas obras se tornaram tão peculiares a eles: não de uma forma banal, de tradução barata daquele arcano verbo encarnar, mas como aquelas coisas que se moviam em suas obras foram animadas de vida, dentro de suas próprias vidas.

É um pensamento desconcertante; de certa maneira, faz supor que o artista canaliza forças muitas vezes além de sua compreensão, que moldam (ou distorcem) o tecido da realidade. Platão era dessa opinião jocosséria, e o banimento que cai sobre o poeta na "República", penso, deveria ser lido em primeiro lugar como o atestado de que o poeta e a sociedade organizada não se entendem, eles se repelem. E se repelem porque a poesia porá complicações e dúvidas numa vida sem imaginação e corriqueira, organizada pelo Estado para funcionar num sentido amplo e geral, republicano.

É o perigo e também a necessidade deste poder muito específico da poesia; não apenas o das palavras de um verdadeiro artesão delas, mas o da imaginação.

Os estóicos antigos tinham uma teoria muito interessante sobre o assunto, in illo tempore, a teoria do pneuma, o calor em que são canalizadas as idéias seminais que produzem o phantastikón, ou o plasmar algo inventado na realidade, como um fantasma, resultando num lutar com sombras, precisamente como em "Black Swan", que, como os melhores leitores dos estóicos fizeram, não decide sobre o que é realidade e o que não é, uma vez que o limite de visão é sempre coisa proporcional às visões e a quem as tem ou não.

As imagens têm poder, a imaginação focalizada, também. As palavras recompõem, por som, desenho e composição, uma parte desse fantasma, dando ao airy nothing a local habitation and a name, como escreveu Shakespeare, justamente sobre esses poderes poéticos, em "A Midsommer Nights Dreame" (Um Sonho de uma Noite de Verão).

Marsilio Ficino sugeria o tipo de som a se ouvir para determinado efeito na pessoa; sugeria a focalização de determinadas imagens e o convívio com elas, para acentuar determinadas qualidades. Era a mesma hipótese que se espelhava no livro sobre poesia, escrito por Lorenzo de’ Medici, o Magnífico, em meados do século XV. Mas não é apenas um pensamento antigo e perdido nas areias do tempo.

Kandinsky e Mondrian eram muito místicos a respeito do efeito de cores e formas, no que essas potências agenciam; Pound tinha perfeita ciência do poder evocatório e invocatório de certas palavras, assim como de certos ritmos; Arnold Schönberg não era nenhum inocente sobre a qualidade encantatória da música. Etc.

Esquecemos disso porque muito da nossa poesia se tornou lixo demagógico, ou por outro lado teórico, sem técnica (tekhné se traduz por ars em latim, de modo que técnica e arte eram sabiamente uma coisa só), sem imaginação, sem poder simbólico algum sobre o que quer que seja.

Sobretudo porque poucos lembraram desse enorme poder organizado pela poesia & pela arte, e muitos dos que lembraram são gente século XVIII demais para conceber e aceitar coisa tão... tão... fantásticas (como os seres aéreos de Shakespeare, lidos em geral como meras gracinhas).

Aronofsky, como todo grande artista, não é um desses. Seu filme, perfeito (palavra oportuna) ao que se propõe, o prova com substância nova para o grande e antigo enigma.

Retirado de O Demônio Amarelo.

Um comentário:

Estevão K. disse...

Que belo texto.
criativo, abrangente e instigante.

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