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quinta-feira, 2 de setembro de 2010

O Fogo Divino, os santos e os pecadores


A riqueza do simbolismo religioso é uma das permanentes fontes do conhecimento da humanidade - e neste sentido, podemos tranqüilamente falar de um certo ecumenismo, posto que as mais importantes referências simbólicas religiosas, para serem fundamentais devem antes ser universais. Mas, é claro, o problema do símbolo não reside em sua expressão, mas sua interpretação. É ali sobretudo, como objeto de cultura, que tal "ecumenismo" naufraga: a parte a clareza do símbolo, existem distinções teológicas evidentes e importantes que devem ser entendidas e interpretadas permanentemente, e preservadas ou não. No texto abaixo, Joel Pinheiro da Fonseca se debruça mais uma vez sobre um problema universal - a da puniçao e o juízo - relendo-o a partir de sua expressão última e radical: o fogo do inferno cristão.

Por Joel Pinheiro da Fonseca


Partiram de Sucot e acamparam em Etam, na periferia do deserto. O Senhor os precedia, de dia, numa coluna de nuvens, para lhes mostrar o caminho; de noite, numa coluna de fogo para iluminar, a fim de que pudessem andar de dia e de noite.” Êxodo 13, 20-21

"A coluna de nuvens que estava na frente postou-se atrás, metendo-se entre as tropas dos egípcios e as de Israel. Para uns a nuvem era tenebrosa, para outros iluminava a noite, de modo que durante a noite inteira uns não podiam ver os outros.” Êxodo 14, 19-20


Já defendi em outro lugar - e é uma tese em nada estranha à autêntica tradição cristã - que a punição do inferno está intrinsecamente ligada ao estado da alma ao qual ele corresponde: amar uma criatura mais do que ao Criador. Preferir um bem finito e relativo ao Bem absoluto, que é a única fonte possível da felicidade humana, é condenar-se à miséria eterna. A dor sensível é decorrência do mau moral.

Hoje quero explorar um ponto ligado a essa idéia: a dor dos condenados e o deleite dos santos provêm do mesmo objeto. Toda a diferença entre a alma em estado de beatitude e a alma condenada reside na disposição delas perante Deus. Quero ilustrar isso com a imagem do fogo, muito cara à tradição católica, que é composta basicamente da Bíblia, dos ensinamentos magisteriais e dos escritos de santos e místicos.

A primeira imagem que nos vêm à cabeça quando falamos de fogo num contexto cristão é o Inferno. A dor dos condenados sendo consumidos por seus próprios crimes, remorsos e desejos maus é comumente representada pelo fogo, tanto no Antigo quanto no Novo Testamento. O próprio Cristo, por exemplo, explica a parábola do joio e do trigo: “O joio são os filhos do maligno. [...] Como se junta o joio para ser queimado ao fogo, assim acontecerá no fim do mundo. O Filho do homem enviará os anjos e eles recolherão do Reino todos os escândalos e todos os promotores da iniquidade, e os jogarão na fornalha de fogo, onde haverá choro e ranger de dentes” (Mateus 13, 38.40-42). O remorso e o desespero de se saberem claramente maus consome a alma dos condenados; os desejos desordenados de sua vida agora queimam com intensidade máxima; com a morte, a alma dirige-se, determinada e sem titubeios, àquilo que amava em vida. O fogo é uma imagem particularmente forte: é aquilo que a tudo consome e destrói, implacável e doloroso.

Mas essa imagem aparece também em outro contexto: para falar de Deus. A mesma passagem acima continua: “É então que os justos brilharão como o sol no reino do Pai.” João Batista batizava com água, mas anunciava alguém que viria batizar “no Espírito Santo e no fogo”. O Espírito Santo, quando desce aos apóstolos (pouco depois da ascensão de Jesus ao céu), aparece como “línguas de fogo”; e não podemos nos esquecer da sarça em chamas que fala a Moisés e várias outras imagens do Antigo Testamento.

Cristo diz que veio “pôr fogo à terra”. Pensamos em primeiro lugar na justiça terrível a ser feita contra os maus e impenitentes. Mas esse mesmo fogo efetua a salvação dos justos. Explica São Paulo: “Se sobre este fundamento [Jesus Cristo] alguém edifica ouro, prata, pedras preciosas ou madeira, feno, palha, a sua obra ficará manifesta, pois em seu dia o fogo o revelará, e provará qual foi a obra de cada um. Se a obra constituída sobre o fundamento resistir, o autor receberá o prêmio, e aquele cuja obra for consumida sofrerá o dano; ele, todavia, se salvará, mas como quem passa pelo fogo.” (1Coríntios 3, 12-15). Aqui a oposição não é entre os justos e os condenados, mas entre os justos que se santificam ainda em vida e aqueles que, embora estejam no caminho bom, embora ergam suas obras no fundamento de Jesus Cristo, ainda deixam muito a desejar. É o fogo o teste que revela a obra de ambos. E aqueles cuja obra não resistir ainda terão que passar “pelo fogo” mais uma vez, isto é, pela purificação além-morte, pelo mesmo fogo dos condenados, mas numa duração finita. Em suma, o estado que se convencionou chamar de Purgatório. O fogo consome, mas também purifica e endurece. A argila temperada no fogo (imagem minha), resiste àquilo que quebraria a argila mais frágil.

O fogo também é usado para representar o amor, como no “fogo que arde sem se ver” de Camões. São Tomás de Aquino usa a mesma imagem para o efeito do fogo: aquecer. Assim como o mesmo fogo age com maior força no que está perto do que no está distante, assim também a caridade ama com maior fervor aqueles que estão unidos a nós do que aqueles mais distantes; e sob esse aspecto o amor pelos amigos, considerado em si mesmo, é mais ardente e melhor do que amor pelos inimigos.” (ST, II-II, q. 27, a. 7). “Deus é amor”, diz São João. E o que é o fogo do amor-caridade senão o próprio Deus enquanto vive e age na alma humana? Com efeito, o coração de Cristo é sempre representado, na arte sacra, como um coração em chamas.

Nessa mesma linha, o misticismo ocidental usa a imagem do fogo para descrever a ação do Espírito Santo. João de Ruysbroeck (não sei se é o primeiro a usar a imagem a seguir; mas é o primeiro que me lembro diretamente), monge flamengo do século XIII, bota nestes termos: “Se um homem quiser penetrar mais fundo, com seu amor ativo, nesse amor de fruição: então todas as potências de sua alma devem ceder, e devem sofrer e pacientemente suportar a Verdade e o Bem penetrantes que são o próprio Deus. Assim como [...] o ferro é penetrado pelo fogo; de modo que ele faz, pelo fogo, as obras do fogo, pois ele queima e brilha como o fogo. [...] E no entanto cada um permanece com sua própria natureza. Pois o fogo não se transforma em ferro, e o ferro não se transforma em fogo, embora sua união seja não-mediada; pois o ferro está dentro do fogo e o fogo está dentro do ferro...”. Essa imagem é muito rica, e mais tarde rendeu um novo elemento: é pela ação do fogo que o ferro se torna moldável, ou seja, dócil à ação do Espírito na alma que produz a transformação espiritual e moral do indivíduo no próprio Deus (theosis). Como o metal que participa do fogo, a criatura participa do Criador, ainda que ambos preservem suas naturezas. O Céu, lembrou Bento XVI esses dias, é viver no amor de Deus.

E o Inferno é rejeitar esse amor. Voltemos à Bíblia: na parábola do semeador que joga suas sementes pelo caminho, é o mesmo sol que faz as plantas nascerem e crescerem e que faz com que aquelas que crescem em solo pedregoso sequem e morram. Quero, com tudo isso, apenas apontar um fato: depois dessa vida, nos encontramos com Deus. E o estado da nossa alma consiste na nossa reação a esse encontro. Para uns é o fogo do amor unitivo, para outros o da purificação esperançosa e para ainda outros o fogo da destruição. Santos e condenados se encontram na presença de Deus.

A distância que os separa é a distância espiritual entre amar o Bem ou detestá-lo. Para os egípcios a coluna de nuvens/fogo cegava e aterrorizava; para os judeus, guiava e protegia. É como escreveu C. S. Lewis: “No final há apenas dois tipos de pessoa: as que dizem para Deus ‘seja feita a Vossa vontade’, e aquelas a quem Deus diz, no fim: ‘seja feita a vossa vontade’”.

Retirado de Terra à Vista.

Um comentário:

Anônimo disse...

Muito bom, Joel! Obrigada por este lindo texto.

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