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quarta-feira, 29 de setembro de 2010

O sex appeal do bom selvagem


Por Leandro Oliveira

Me esforço para entender como a pregação da valorização do "estado natural" chega até hoje. Como tal idéia sai do âmbito das artes e entra em nossa vida cotidiana? Diversas mudanças comportamentais recentes - como por exemplo, o culto da alimentação orgânica - são desdobramentos das distintas matizes do mesmo projeto estético romântico transformado, como não poderia deixar de ser, em cultura. Quando nos identificamos com a mensagem de "Avatar" - a mensagem , esquecendo o efeito 3D - não percebemos mas estamos por reivindicar idéias caríssimas a Rousseau. Marina Silva não deixa de realizar uma apropriação muito particular dos discursos do jornalista francês.

Original de meados do século XVIII e cultivado em círculos do Iluminismo, atualmente, o sex appeal do "natural" nos alcança travestido em parte por "emoção espontânea". Isso me interessa, mais do que os rigores alimentares e candidaturas presidenciais, por ser o ponto de partida e justificativa para o solipsismo das expressões "intuitivas" e "únicas", tão claramente perseguidas pelo artista moderno e nossos contemporâneos. É quando la liberté se torna le mot para a vaidade.

No século XIX, vários projetos artísticos passam a buscar ser como espelho da natureza. Com estas experimentações dão inicio ao repúdio explícito das convenções supostamente artificiais do domínio e permanente cultivo da linguagem literária, musical ou pictórica. Os intelectuais e artistas românticos abrem, curiosamente, caminho para tornar a arte não mais igualitária e acessível como queriam os ideólogos do boa selvageria. Se assim quisessem, deveriam fazer o movimento contrário (qualquer astro pop sabe) pois acessibilidade se alcança com convencionalidade. Ao pretender extinguir a artificialidade da arte extinguem tudo que nela há de convencional. Ao dizer "o mérito de aperfeiçoar um processo jamais poderá equivaler ao mérito de inventá-lo”, Franz Liszt está apenas tornando consciente e fazendo torcida para uma forma mental que já era dada por favas contadas em Beethoven desde ao menos sua sinfonia Eroica.

Lição número 1: o caminho da estética da naturalidade aos solipsismos da inventividade passa pela necessidade da quebra da convenção, da artificialidade.

Esta é uma importante chave para compreensão da arte contemporânea. Mesmo se não fossem, as peças da Bienal seriam datadas, antes de tudo, por isso. Um pouco de filosofia. A "forma natural" foi discutida por Wilhelm Schlegel (1767 - 1845) em sua XXII "Conferência sobre Arte Dramática e Literatura" (1809). O bruto fala que:

A forma orgânica é inata; ela se desdobra a partir de si, e adquire sua determinação contemporaneamente ao perfeito desenvolvimento de seus germes. Descobrimos tais formas em toda parte da natureza através de todo seu espectro de forças, da cristalização de sais e minerais à plantas e flores e mais uma vez no corpo humano. Nas artes, assim como na natureza - a artista suprema - toda forma genuína é orgânica.

Entre os formalistas (e aqui o dado importante é não confundir formalismo com convencionalismo, por favor), em desespero por relacionar esta expressividade a algum rigor metodológico ou razão, tem início a produção de obras cujo "gesto inicial" seja seu elemento de sistematização; e cá estamos com "dodecafonismos" e "serialismos", "abstracionismos geométricos", etc (uma amiga dizia "e etceteras"). Antes deles, Brahms - na segunda metade do século XIX, a forma sonata já deixara de ser entendido como um discurso para passar a ser construído como uma estrutura.

Para outros, a criação de obras que se apresentam como em permanente processo ou, como dizia Schopenhauer "que dominam-se a partir do todo e se processam livremente em um único ininterrupto - coerente e significativa idéia do princípio ao fim"; o segundo Richard Wagner ou proto-impressionistas como Joseph Turner (1775 - 1851) me vêm imediatamente à cabeça. Desdobramento destes estará na produção dos já flagrantemente "irracionalistas" que, muito antes de Oedipus Rex tornar-se Oedipus Complex (by Philip Rieff) já prevêem a arte como campo de "liberação de forças inconscientes"...

Mas como era dito ao final de "Conan, o Bárbaro" - isso é outra história. E você, bom selvagem, já percebeu a quantas anda seu sex appeal?

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