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segunda-feira, 6 de setembro de 2010

Ainda sobre o talento


O talento é uma aptidão, uma vontade, um cultivo? Em busca da resposta a este dilema é que Paola Secchin Braga se lança em um de seus deliciosos comentários sobre dança. A disponibilidade individual para lidar com as tantas situações da realidade talvez seja uma das mais decisivas distinções da existência: e o talentoso aquele que afinal mostra a todos algo notável mesmo em sua condição humana - inevitavelmente humana e, portanto, cheia de falhas.

Por Paola Secchin Braga

No conjunto de fábulas que permeiam o mundo da dança, a mitologia que ocupa o inconsciente de todos é daquela linda imagem da bailarina etérea, leve e que executa seus passos sem força e “naturalmente”... Por mais que tenhamos andado quilômetros em cena, por mais que os movimentos do quotidiano tenham entrado no repertório moderno, por mais que tenhamos descido ao chão e nos arrastado sobre ele, por mais mudanças que tenhamos passado, atrelada à palavra bailarina vem normalmente a sílfide leve e incansável.

E com esta fantasia, vem atrelada a outra, a do talento enquanto dádiva dos céus, presente divino, que se recebe sem nenhum esforço – e como se não bastasse, tem-se ainda a certeza íntima de que, quando se tem talento, se é notado e escolhido no meio da multidão, garantia de sucesso total!

Pegando carona na pergunta da Talyta, resolvi mergulhar no perigoso assunto “talento”. Talento se tornou com o tempo uma “palavra-gaveta”, onde colocamos todas as definições imagináveis e, no fim das contas, acaba perdendo todo e qualquer sentido. Pedindo ajuda ao dicionário, descobrimos que talento é:

s.m. Nome de um peso e de uma moeda, na antiguidade grega e romana; (fig.) capacidade; inteligência; aptidão natural; engenho; (lus. e bras.) força física; pulso; alento; vigor; pessoa de talento. (Do lat. talentu.)

Várias perguntas imediatas – e talvez alguns esclarecimentos. Nome de um peso e de uma moeda – imediatamente pensamos em valor: será que o talentoso vale quanto pesa? Por outro lado, a parte capacidade, inteligência, aptidão natural nos faz vacilar. O que é natural? Inteligência natural, aptidão natural? Então, a pessoa talentosa seria aquela que faria dança naturalmente? Isso existe?

A dança não é natural, ela é aprendida e duramente trabalhada, como qualquer outro ofício. Força física, pulso, alento, vigor – certamente todos estes atributos são necessários para a profissão, mas apenas ter alento ou ter vigor não definiriam suficientemente a palavra talento.

Em contraponto, resgato uma parábola a ilustrar outro ponto de vista. Um homem chama seus servos antes de se ausentar e dá a cada um alguns talentos (as tais moedas, lá da antiguidade). A um dá cinco, a outro dois e ao terceiro apenas um. O que recebeu cinco talentos vai negociá-los e acaba ganhando outros cinco. O que recebeu dois fez a mesma coisa, ganhando outros dois. Mas o que tinha um, foi e escondeu o dinheiro, sem negociá-lo, apenas guardando-o em local seguro, com medo de perdê-lo. Quando o homem voltou, os dois primeiros servos lhe entregaram os talentos recebidos e mais os outros que ganharam, o que o deixou extremamente satisfeito com esses dois servos. O terceiro, aquele que não tinha feito nada com o seu talento, mas o tinha guardado temendo que algo lhe acontecesse, o devolve. O homem, vendo que aquele talento não tinha sido aplicado ou negociado e que nada tinha sido produzido a partir dele, fica furioso e expulsa o servo de suas terras.

Moral da história #1: quando não se trabalha o que se tem, fica-se sem nada. Não basta apenas receber, é preciso fazer.

Moral da história #2: o maior talento é trabalhar as ferramentas que se possui e fazê-las produzirem a seu favor, através do seu próprio esforço.

Referindo-se a algumas (pobres e infelizes) alunas, uma querida mestra russa costumava dizer com seu sotaque carregado:

- Menina ama a dança... mas dança não ama menina!

Para ela, esse era o fim da história da menina sem talento. Com o passar do tempo a menina que não era amada pela dança hoje usa sua inteligência, trabalha o seu talento e pode inventar uma dança que a ama. E elas vivem felizes para sempre. Ou não - mas isto é uma outra história...

Um comentário:

Ana Enésia disse...

Muito bom!

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