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terça-feira, 31 de agosto de 2010

Parole, parole...


Por Leandro Oliveira

Já que Talyta termina seu mestrado distinguindo o talento do esforço, e Julio comenta en passant sobre as agruras sádicas das bancas de doutorado, vou também falar de educação. Um sistema mais hardcore, para não decepcionar aqueles que me conhecem e sabem que não sou dado a gentilezas.

Por isso, entro de sola no Medievo. E, pois não, o sistema educacional da Idade Média revela surpresas extraordinárias - não para o leitor habitual do Ocidentalismo é claro, mas certamente para boa parte do público brasileiro. No país tropical, tão bonito por natureza, o grande público ainda está acostumado - e percebo isso nas aulas que dou pelo interior de São Paulo - a entender o pensamento do Medioevo como o da "era das trevas"...

O que, aliás, é irônico, estando o Brasil com a educação iluminada que estamos.

"Tudo isso foi documentadamente desmentido, mas pouco importa: os lugares-comuns emocionais são tanto mais indestrutíveis quanto melhor servirem aos interesses dos ativistas políticos", nos ensinava o saudoso Wilson Martins. Então é assim. Hoje as escolas de elite estão mais preocupadas com o ensino de história de uma África idílica e inexistente conquanto reverbere maledicências ignorantes sobre a Europa. Curioso que não deveria sê-lo, mesmo estando nós orgulhosamente mestiços e ecléticos, pois já na primeira metade do século XX, scholars como Mortimer Adler, Robert Maynard Hutchins e Chäim Perelman, cada um a sua maneira, entenderam e advogaram sobre a relevância e atualidade das práticas de ensino medievais não por chauvinismo, eurocentrismo ou qualquer dessas patacoadas. Não por conservadorismo - embora boa parte deles fossem conservadores - mas por sua relevância inquestionável.

Mas onde está a relevância, bicho?

Como assim "onde está"? Dorothy Sayers em seu famoso artigo The lost tools of learning de 1947 (!) já mostrava que a primeira parte das chamadas Artes Liberales condensava muito mais que matérias curriculares como entendemos hoje, mas disciplinas que "ensinavam a aprender". Sofisticado? Sim, e sem "construtivismos" idiotizantes.

Mas como "ensinar a aprender" sem construtivismos idiotizantes? Englobando a Gramática, a Lógica e a Retórica a primeira parte do ensino tinha a preocupação com a própria organização das idéias e por isso era também entendido como "as artes da mente" - seu objetivo era mostrar ao estudante os mecanismos para descobrir, organizar, verificar e expressar corretamente o pensamento - o próprio e aquele dos outros. Totalizavam um verdadeiro "método científico", que deveria ser posto a serviço dos estudos avançados do quadrivium - as artes das coisas, mas aí é uma outra história.

***

Feita a introdução vamos às referências nerd. Marshall McLuhan realizou na década de quarenta sua tese de doutorado sobre o tema. Sua visão - profundamente influenciada pelas aulas do grande medievalista Étienne Gilson - é rigorosa e inventiva, virtuosisticamente culta e para alguns se tornou à época a tese de maior erudição da Universidade de Cambridge.


Ao longo de seus quatro capítulos, lemos a história do ensino da Arte de Cícero a Peter Ramus, passando por Abelardo e Erasmo, entre tantas outras influentes referências pedagógicas da Idade Média. Montando as raízes do conhecimento medieval na tradição clássica, McLuhan defende um ponto que deveria ainda ser devidamente investigado pelos estudiosos contemporâneos: o trivium entendido como um sistema integrado de conhecimento onde cada uma das partes se articula em um permanente jogo interno de forças; partes que, devido a sua natureza, por vez mostravam-se tão antagônicas que sua compreensão permitirá McLuhan o seguinte comentário:

...a Grande Renascença que tradicionalmente é associada a Petrarca é, em primeiro lugar, a reabsorção dos predicados da Gramática contra os ‘godos e hunos’ do aprendizado (Lógico) feito em Paris; do ponto de vista do gramático medieval, o lógico era um bárbaro.

Para quem passou pelos primeiros passos do assunto, esta é uma leitura absolutamente refrescante - mesmo sendo uma tese de doutorado de mais de 60 anos. O livro não é fácil mas é uma preciosidade fundamental para os estudiosos na história da cultura ocidental. Para encomendar, clique aqui.

2 comentários:

Pedro Sette-Câmara disse...

Por um momento, vi Dalida e Alain Delon. :-)

Leandro Oliveira disse...

Pegadinha!

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