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sexta-feira, 27 de agosto de 2010

Quem causa a Causa Primeira?


Joel Pinheiro da Fonseca é um wunderkind. Seu blog "Terra à Vista" é uma boa ilustração de como mesmo nos dias de hoje um jovem pode discutir filosofia e economia com os pés no chão. E pode? Certamente sim, e Joel parece não se fazer de rogado. Em seu texto de estréia para Ocidentalismo.org ele mostra que determinadas agruras do pensamento podem aspirar alturas enormes - intransponíveis, ousaria dizer - como, por exemplo, a que versa sobre a existência de Deus.

Por Joel Pinheiro da Fonseca

A pergunta sempre aparece nas conversas do dia-a-dia. Alguém dá o argumento da causa primeira para provar que Deus existe e o outro retruca: “E quem causou Deus?”. Minha conclusão: o argumento foi ou mal entendido, ou mal apresentado.

Tudo o que existe precisa de uma causa. Portanto, para não se regredir ao infinito, é preciso uma causa primeira. Essa causa primeira é Deus. Convencidos? Eu não estou. Se tem uma coisa que esse argumento não prova é a existência de Deus. O ateu sagaz já percebeu: “Bom, se tudo precisa de uma causa, então Deus também precisa. E se nem tudo precisa de uma causa, por que o universo precisaria?” Vamos esclarecer melhor o ponto, pois nele escorregam muitos apologetas. Bem sei que nenhum ateu sairá da discussão convencido e rumo à igreja; mas o fortalecimento da base racional da fé tem sua importância nesse processo.

Ao argumento. A princípio, não se afirma que tudo precisa de uma causa; isso não é uma premissa. Analisando os seres do universo, como homens, cavalos e prótons, veremos que eles precisam de uma causa. O que os caracteriza? É o fato de que sua essência é diferente de sua existência. Termos estranhos, que precisam ser explicados e justificados para que saiam do campo dos contos de fada e entrem na filosofia. Dizer que a essência de um cavalo difere de sua existência significa dizer que mesmo que se conheça perfeitamente o que o cavalo é (digamos, a descrição perfeita de seu DNA com todas as possíveis variações), nem por isso saber-se-á se existe ou não algum cavalo no mundo. Pode ser que todos tenham morrido; pode ser que nunca tenha havido cavalo nenhum. Como descobrir se os cavalos existem? Não é pela mera análise de suas características. Temos que sair pelo mundo à procura deles. Sua existência (o fato deles existirem) não é dedutível de sua essência (o que eles são, a descrição de suas qualidades). Assim como penso em cavalo, posso pensar em unicórnio. Um existe e o outro não. Mas não há nada nas idéias de um e de outro que me diga isso.

Todos os seres do universo são que nem o cavalo e o unicórnio. Suas existências não estão dadas por suas essências. Chamamos a esses seres de contingentes: podem existir ou não existir. Logo, o universo, que é o conjunto, a complexa malha causal que une todos os seres, também é contingente. Ele poderia ser diferente do que é, e mais, poderia simplesmente nunca ter existido.

Todo ser contingente precisa de outros seres que o gerem e preservem. O cavalinho precisa da égua e do garanhão para nascer, e do feno para comer. O universo também. Se ele poderia tanto existir como não existir, é preciso um fator externo a ele que faça com que ele exista. Ou esse ser que causa o universo também é tal que sua existência seja distinta de sua essência, o que não resolve nosso problema (pois ele também precisa de uma causa), e podemos simplesmente classificá-lo como parte do universo; ou esse ser é de tipo diferente: ele é tal que sua existência está contida em sua essência. Se o conhecêssemos perfeitamente, concluiríamos sem sombra de dúvida, dedutivamente, que ele existe. Não é um mero ser contingente, e sim um ser necessário; um ser tal que seria impossível que ele não exista, pois isso contrariaria sua própria essência.

Não conhecemos diretamente o ser necessário para concluir sua existência a partir de sua essência. Mas dado que existem seres contingentes, o necessário tem que estar na origem do processo, se não ele nunca teria um motivo para começar (pois o motivo precisaria de um motivo e assim por diante). Este é o núcleo do argumento, e é o que deve ser discutido; notem que Deus nem deu as caras.

O último passo, que é o que gera objeções imerecidas, é dizer: “este ser é Deus”. Estamos só dando um nome ao ser necessário. Poderia ser “Javé”, “Alá”, “Rama”, “Google”. O problema verdadeiro reside no passo anterior, que é dizer que sem o ser necessário não poderia haver seres contingentes, afirmação com a qual concordo. Negá-la seria dizer que do nada absoluto pode aparecer um universo, o que basicamente obriga-nos a aceitar que qualquer coisa pode acontecer a qualquer momento, e que nosso raciocínio, com base nas idéias de causa e efeito, e os princípios básicos da lógica que guia nossos pensamentos, não têm relação nenhuma com a realidade. E nesse caso, não só a prova do ser necessário seria falha, como mesmo toda a ciência e todos os nossos pensamentos seriam incapazes de nos comunicar qualquer coisa de verdadeiro.

Chamar o ser de "Deus" só aponta para o fato de que esse necessário concorda em gênero, número e grau com o que os teístas dizem a respeito do Deus no qual acreditam: ele é a causa de tudo, nada existe independentemente dele e é impossível que ele deixe de existir. O filósofo e o crente estão falando da mesma coisa; esse reconhecimento é, em geral, ponto pacífico; a questão é saber se o argumento que o filósofo está fazendo procede.

Retirado de Terra à Vista.

Um comentário:

Leonardo T. Oliveira disse...

Muito bom. E notem que é por isso que a noção judaico-cristã de Deus e a sua relação com a criação - ou seja, o Universo - não é aquela de sujeito-objeto, mas de transcendente-imanente. Vide Êxodo 3:14 e Atos 17:28.

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